DEVER DE CLASSE
Roberto Della Santa Barros (*)
"Em última análise, as possibilidades de manipulação, proporcionadas pelos meios de comunicação de massa, são tão significativas quanto as potencialidades da desalienação e autoconstrução consciente se tais meios forem pensados numa perspectiva revolucionária e efetivamente socialista" (Genro, 1987)
O próprio desenvolvimento do modo de produção capitalista, na segunda metade do século 19 ? na Europa e nos Estados Unidos ?, possibilitou historicamente as grandes transformações na imprensa, coincidindo com a expansão mundial do capital e as diversas inovações tecnológicas do mesmo período. Assim, numa perspectiva histórica totalizante, podemos concluir que o fenômeno jornalístico apresenta sua gênese material no bojo do capitalismo, mais especificamente, relacionada de forma mais imediata à Revolução Industrial.
Os meios de produção da imprensa moderna e as relações sociais de produção do jornalismo, bem como sua subjacente divisão técnica do trabalho e a especialização necessária à sua concretização, certamente foram "geridas no ventre do capitalismo", nas palavras de Adelmo Genro. Porém, esta dinâmica revela-se um processo eminentemente contraditório e profundamente dialético no qual evidenciam-se suas possibilidades históricas de superação. Contudo, ao passo em que o jornalismo condiciona-se historicamente enquanto estrutura de comunicação, é hegemonizado (evidentemente) em torno da lógica mercantil que o dirige e condiciona.
Da mesma forma e inseridas na mesma dinâmica social constroem-se potencialidades inequívocas que ultrapassam a mera funcionalidade a esse modo de produção, ou seja, o jornalismo ? enquanto "forma social de conhecimento" ? torna-se "indispensável ao aprofundamento da relação entre o indivíduo e o gênero humano nas condições da sociedade futura" (Adelmo Genro Filho, 1987). Do desenvolvimento desta forma social de conhecimento centrada na categoria filosófica do "singular" (de maneira distinta, autônoma e complementar em relação à universalidade das ciências e à particularidade das artes) ? dependeria a consumação da liberdade humana.
Ao longo do presente trabalho tentaremos mapear (futuramente) de alguma forma como se dão na atualidade as diversas mediações relacionadas ao jornalismo informativo contemporâneo em sua concreticidade histórica, este entendido justamente como "fenômeno histórico-social concreto". Dessa forma, os problemas levantados neste decurso nos apresentam dados das conjunturas materiais e ideológicas engendradas no bojo do capitalismo imperialista contemporâneo para que ? a partir de sua análise ? possamos levantar questões básicas para a transformação de tal realidade social. Aqui, assentamo-nos referencialmente na indicação de Karl Marx, quando afirmou que a humanidade só se coloca problemas quando, potencialmente, já existem as condições necessárias para equacioná-los.
A crítica dos críticos
Antes de tudo, afirmamos que a caracterização de uma "perspectiva crítica" ? à qual aludimos logo de início ? não se refere a um dado da consciência (que supostamente atribuímos a uma modalidade de conhecimento social determinada e submetemos aos desejos e intenções de nossos teóricos), mas sim à própria constituição que radica na essência de tal concepção e abordagem. Jornalismo sócio-histórico, da maneira como o pensamos, é então o conjunto sistematizado dos saberes e fazeres ? da teoria e da prática articuladas entre si ? de um jornalismo engajado contra a manutenção da Ordem do Capital (filosofia da práxis) e por sua superação, tal qual se expressa nas formulações de Marx. A sistematização conceitual proposta por Adelmo Genro Filho em sua teoria marxista do jornalismo, tomando como método o materialismo histórico-dialético, serve-nos de importante referência. A base social e as experiências históricas em torno das lutas operárias e populares e seus desdobramentos em termos de comunicação, agitação, propaganda e jornalismo s&atilatilde;o as objetivações, captadas em seu devir histórico, que nos situam social e historicamente. E por que sócio-histórico? Quais são as diferenças entre o "jornalismo crítico" e a abordagem sócio-histórica?
O jornalismo sócio-histórico apresenta diferenciações fundamentais em relação ao jornalismo crítico (J. Habermas e Ignacio Ramonet, Le Monde Diplomatique). De um lado, os "críticos" propõem reordenamentos puramente subjetivos (e idealistas), movidos basicamente pelos "esforços volitivos" de uma suposta "cidadania militante" ? do corpo de uma abstrata "sociedade civil internacional" composta majoritariamente por setores de "classe média" do trabalho improdutivo "de serviços" ("atividades intelectuais relacionadas ao ensino, à informação, ao serviço social, à consultoria e ao recrutamento, à apresentação e à representação etc.). Evocam preceitos liberais clássicos contra o que classificam de "irracionalidade do neoliberalismo". Parecem estar referenciados em outro momento histórico, tomando como centralidade o Estado de Bem-Estar Social ? como que saudosos com relação ao que consideram os "tempos áureos" do capital (neokeynesianismo).
De uma forma radicalmente oposta, o jornalismo sócio-histórico não se vê de maneira alguma como uma extensão do jornalismo de opinião desenvolvido pela burguesia no processo de sua constituição enquanto classe dominante ? e não se deixa encantar por uma "institucionalidade desnecessariamente edulcorada" da conjuntura internacional do pós-guerra (como diz Valério Arcary). Diferentemente, nossa base epistemológica parte da própria materialidade ? em sua dimensão social e histórica ? e reivindica um claro posicionamento na história da humanidade e na luta de classes. Sua radicalidade crítica, mais do que um dado subjetivo ou "intencionalidade", faz parte de um processo dialético no qual se afirma epistemologicamente como superação da ordem social vigente e assim se constitui enquanto racionalidade ? dentro de uma perspectiva marxista e revolucionária. A visão de mundo que apresenta, desta forma, é uma abordagem eminentemente sócio-histórica.
Desde uma perspectiva política e teórica marxista, partimos de uma concepção de homem como sujeito histórico-social; e de sociedade como produção histórica dos homens que, pelo trabalho, constroem as condições materiais de produção e reprodução de sua existência. Desta forma, consideramos as idéias "como representações da realidade material" e a realidade material "como fundada em contradições que se expressam em idéias" (Psicologia Sócio-Histórica, 2001). São estes princípios que nos nortearão numa concepção de "jornalismo sócio-histórico".
A perspectiva que se expressa, então, é a de imprensa operária e popular, organicamente inserida no cotidiano material da maioria da população e colada à realidade social concreta dos trabalhadores, bem como ao nível de consciência das massas. A abordagem sócio-histórica do jornalismo se fundamenta no materialismo histórico e no método de Marx para daí orientar sua práxis (atividade material consciente e objetiva), assim como sua concepção de homem e de mundo. A discussão que propomos é material e concreta, no sentido de que nos exige algo mais do que a mera especulação intelectual. Equacionamos o problema da propriedade privada dos meios de comunicação de massa, da alienação do trabalho, da luta de classes e posicionamo-nos claramente desde o ponto de vista daqueles que produzem as condições de existência do gênero humano e carregam o futuro em suas mãos: a classe operária. Para tanto é preciso travar as lutas que correspondem às diferentes tarefas revolucionárias, nacionais e internacionais, as mais diversas. Operários, sem-terra, sem-teto, funcionários públicos, desempregados, setores do movimento sindical e estudantil, militantes e intelectuais socialistas, negros e índios, mulheres e homens são aqueles que se dispõem às batalhas que se darão pelo controle popular dos veículos de comunicação.
Com a licença de Brecht
Desde há muito foram concentrados importantes esforços em desenvolver a comunicação popular (como no período da ditadura fizeram numerosas comunidades eclesiais de base, sindicatos e a própria UNE), a imprensa operária, a agitação e propaganda socialistas, a imprensa sindical e partidária do proletariado e mesmo os setores mais combativos da imprensa alternativa ? mas é preciso avançar. Os passos que daremos adiante, firmes e fortes, serão no sentido de construir um pólo comum entre os companheiros que defendem de forma intransigente o comunismo, para então constituir um plano de luta pela hegemonia proletária da imprensa operária-popular e do jornalismo sócio-histórico.
Necessitamos para isso de um foco de influência que tenha condições técnico-científicas, materiais e ideológicas de disputar abertamente o poder com a imprensa burguesa ? para competir num nível superior ao que se dá hoje. Aglutinar, no campo da comunicação social, um bloco suprapartidário classista e combativo ? que envolva partidos anticapitalistas, organizações de classe, centrais sindicais e movimentos populares (como o MST e a CMP).
No movimento histórico da luta de classes, disputaremos então os melhores militantes, ativistas e intelectuais (e até mesmo jornalistas) com ONGs, organizações-cidadãs e partidos reformistas (e a imprensa burguesa) certos de que "um outro mundo socialista é possível". Desde aí constituiremos uma importante frente de batalha pela hegemonia proletária. É preciso elaborar estrategicamente os passos que seguiremos no campo do jornalismo e da comunicação de massa. Na véspera da queda de nossos inimigos, preparemos então nossos quadros ? se me permite Bertold Brecht.
Contribuições do marxismo
Para Adelmo Genro ? autor da teoria marxista do jornalismo ?, a produção jornalística compreende aspectos como a luta de classes, a hegemonia ideológica das classes dominantes e, ainda, contradições internas deste processo. A dominação ideológica burguesa, porém, é entendida enquanto especificidade ? uma constituinte da generalidade do fenômeno. Desse modo, faz-se necessário diferenciar tais dimensões e "estabelecer uma relação dialética entre o aspecto histórico-transitório do fenômeno e sua dimensão histórico-ontológica".
Partimos então do documento de referência de política editorial da Oficina de Informações, mais precisamente, quando estabelece a caracterização de uma imprensa popular "que tenha como objetivo a elevação do padrão de vida material e cultural dos trabalhadores". Assim, constatamos que o jornalismo se trata de um produto histórico da sociedade burguesa ? mas também um fenômeno social cujas potencialidades a ultrapassam e se expressam de forma contraditória. Ou seja, constitui-se numa nova modalidade de apreensão do real (ou uma "nova forma social de conhecimento"), condicionada pelo advento do capitalismo, mas sobretudo "pela universalização das relações humanas que ele produziu, na qual os fatos são percebidos e analisados subjetivamente (normalmente de maneira espontânea e automática) e, logo após, reconstruídos no seu aspecto fenomênico".
Genro afirma categoricamente que, apesar dos efeitos de reprodução da ideologia burguesa, o jornalismo teria "características próprias enquanto forma de conhecimento social", ultrapassando dessa maneira a mera e simples funcionalidade do sistema capitalista "por sua potencialidade histórica concretamente colocada". A universalização das relações e fenômenos sociais com as técnicas da produção jornalística, numa dimensão desconhecida até então pela imediaticidade do mundo sensível, sobrepaira, então, ao fator de dominação ideológica do qual está contemporaneamente impregnada.
Outras modalidades de representação simbólica da realidade, como a ciência e a arte, estariam numa relação (com o jornalismo) marcada pela autonomia e complementaridade na processual "apreensão do real". Assim, enquanto as formas sociais de conhecimento ciência e arte, respectivamente (e sendo que a última não se reduz a esta dimensão), estariam referenciadas pelas categorias do universal e do particular ("típico", segundo a estética marxista-lukacsiana); o jornalismo ? por sua vez ? teria como categoria central o singular.
Nesta dinâmica, tal qual o autor, entendemos a Comunicação como um aspecto do trabalho relacionado a uma forma social de produção do conhecimento, a História ? movimento fundado em contradições do saber-fazer humano ? como um processo de desenvolvimento e autoprodução ontológica do gênero humano e tomamos a Política como a dinâmica dos conflitos em torno da qualificação da práxis social ? daí decorre, sob uma nova concepção, o potencial desalienante e humanizador que atribuímos ao jornalismo, nos termos que reivindicamos. Ao passo que Genro coloca-se numa perspectiva humanista lukacsiana (e helleriana, até onde identificamos) ao evidenciar a categoria marxista de historicidade, também se debruça sobre questões estratégicas do marxismo político ? relacionadas à tradição revolucionária do bolchevismo-leninismo, bem como às contribuições também insuperáveis do universo gramsciano, notadamente as categorias de hegemonia e de guerra de posições.
Indivíduo, sociedade e gênero humano
Numa abrangência ontológica-epistemológica-metodológica francamente crítica, em sua concepção, o que ocorre é que, na mesma medida em que se desenvolve o potencial técnico-científico dos meios de comunicação e do jornalismo, ampliam-se as possibilidades de percepção e interpretação da realidade social, estas entendidas de forma distinta da universalidade da ciência e da particularidade da arte. A imediaticidade do mundo humano e natural estende-se nos novos e alargados limites espaço-temporais possibilitados historicamente pelos meios de comunicação de massa e suas contraditoriedades. Assim, o acúmulo histórico, tecnológico, científico, artístico-cultural e filosófico da genericidade humana possibilita saltos quantitativos e qualitativos nos processos de humanização duma futura nova sociedade ? bem como no processo dialético e contraditório da luta pela sua construção, de seu vir-a-ser.
Num processo de ruptura com a burguesia, as relações com o simbólico-cultural ? nesta perspectiva ? residem na afirmação histórica da revolução socialista, da emancipação dos trabalhadores, e conseqüentemente, da libertação da humanidade (liberdade entendida assim como a entendia Marx). Em formulações gerais, aponta-se no sentido duma sociedade sem classes, sem Estado, e sem a exploração do homem sobre o homem. O que se afirma de maneira radical é que o mesmo potencial jornalístico que hoje é hegemonizado em torno da dominação ideológica burguesa pode servir ao processo social revolucionário. Há tempos os movimentos sociais populares já se apropriaram das técnicas, saberes e espaços de comunicação social (seja protagonizando processos de comunicação operária, sindical, partidária e popular ou decodificando a imprensa burguesa).
Radicalizar os elementos com os quais se dão esta apropriação, neste sentido, seria tornar o próprio processo de apropriação uma relação que ultrapasse os limites históricos da própria dinâmica da comunicação social, esta entendida em seu sentido mais amplo, tal como ela se dá hoje. Assim sendo, apresenta elementos conclusivos para uma práxis jornalística revolucionária.
É bastante claro que o que se encontra em questão vai no sentido da difusão de valores e crenças de uma nova sociedade que, necessariamente, terá que expropriar revolucionariamente os atuais proprietários dos meios de produção econômica e de bens simbólicos ? o que será a base material e concreta que sustentará essa nova cultura, de uma nova sociedade de valores novos e de uma nova sociabilidade ? e portanto de uma nova comunicação social e de um novo jornalismo. Não é possível pensar, porém, o jornalismo em si como novo portador histórico da revolução ? a classe revolucionária continua sendo a classe operária, lado a lado com o conjunto dos trabalhadores e despossuídos em geral. Como bem disse Carlos Pompe: "Dentro das contradições e antagonismos do mundo capitalista, as necessidades e ideais da classe operária coincidem completamente com as da humanidade."
Superando as contradições
Uma das contradições que o professor explicita no fenômeno jornalístico seria a oposição entre a ideologia de que todos são iguais e de que existe uma condição universalizada de existência, e as condições reais de antagonismo de classe e "desigualdades sociais" radicalmente profundas. Ou seja, ao mesmo tempo em que o gênero humano se desenvolve aceleradamente mediante o sistema capitalista, a liberdade que o constitui universalmente é negada à maioria esmagadora de homens e mulheres que s&atilatilde;o escravizados pelos grilhões do capital ? o que constitui o dilaceramento histórico (através da alienação do trabalho) de todas as "vítimas da fome" (proletariado). "É essa a contradição que forma a base histórica para que o jornalismo seja um fenômeno ambivalente, já que esse conflito atravessa a lógica jornalística."
Neste momento, em específico apresentamos a iniciativa do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) ? frente ampla composta por setores progressistas da sociedade ? como sindicatos, movimentos sociais e associações comunitárias ?, o qual vem se rearticulando após alguns anos de desmobilização generalizada, e levanta reivindicações colocadas no sentido da regulação e do controle social dos serviços públicos que constituem os meios de comunicação. Talvez com uma composição social mais próxima da classe operária e com a participação de organizações sindicais classistas e combativas, bem como o engajamento de partidos do socialismo proletário (e não partidos da burguesia, como o PDT), seu programa não fosse tão evidentemente legalista-constitucionalista ? apontando dessa forma uma perspectiva de luta e ruptura com o capital.
As vigorosas contradições tendem a expressar-se, pela dinâmica de tais manifestações, evidenciando o dilaceramento social (e histórico) inerente ao modo de produção capitalista ? avolumando objetivamente os elos frágeis de seus antagonismos, e assim, lançando sementes de crise (como coloca Adelmo) sobre a "objetividade burguesa do jornalismo". Além disso, o jornalismo expressa de alguma forma ? por meio dos novos canais de comunicação que emprestam as condições técnicas para a sua realização ? uma determinada orientação para a ação e a dinâmica das relações sociais, e "não para a contemplação e a estática". Ainda, a tensão para captar o singular enquanto apreensão subjetiva da realidade social, gera inúmeras possibilidades críticas que se abrem em relação a este processo. E deste processo mesmo aponta-se na concreticidade do cotidiano e da história o "desvendamento do sujeito coletivo" que se expõe através dos meios de comunicação interpostos ? revelando uma visão de mundo ideologicamente situada. As relações sociais aprofundam-se, então, na perspectiva de uma sociedade futura.
(*) Estudante de Jornalismo da Unesp-Bauru, SP