TERRA DE LUNÁTICOS
Gustavo Barreto (*)
É pouco provável que alguém consiga entender a sociedade norte-americana sem passar por uma profunda análise da televisão e seu papel. Não há aqui a pretensão de tentar entendê-la completamente, mas existem algumas coisas patentes e que merecem alguma atenção.
Recentemente vi um filme com o ator Jim Carrey intitulado The cable guy (Ben Stiller, EUA, 1996), que no Brasil foi erroneamente traduzido para O pentelho. São dois os motivos para tal equívoco: a falta de visão mais aprofundada dos tradutores e o próprio preconceito que sofre o ator.
Jim Carrey, como se sabe, é um ator pouco valorizado pela Academia por conta, basicamente, de seu ecletismo artístico. Sabe fazer rir e chorar num mesmo quadro ? e tal virtude nem sempre é bem-aceita segundo a visão estreita e maniqueísta de Hollywood.
Sonhos e vícios
No filme, Carrey representa the cable guy, cuja personalidade é quase que exclusivamente formada pela televisão. Por conta disso, constitui-se num cidadão muito, muito doente. Sua obsessão maior não é pela TV, e sim por arranjar a qualquer preço um amigo.
Uma das cenas mais fortes ocorre quando Carrey acaba por reviver boa parte de sua vida em flashes de programas de televisão. As piadas demasiadamente doentias denunciam o que o ator Martin Sheen ? que interpreta o presidente dos Estados Unidos no seriado The West Wing ? chama de "terra de lunáticos", referindo-se ao próprio país: "Todas as vezes em que cruzo essa fronteira [a do Canadá] sinto ter deixado para trás a terra dos lunáticos", disse ele, em setembro de 2003.
Outro filme que abordou de forma brilhante o tema foi Réquiem para um sonho (Requiem for a dream, Darren Aronofsky, EUA, 2000). O diretor percorre a vida de diversos personagens que se envolvem sobremaneira com seus sonhos e vícios. O fim é dramático para todos, inclusive para quem tem estômago fraco. Entre os viciados está uma senhora cujo grande objetivo de vida é aparecer num programa de auditório. A obsessão vai crescendo de tal forma que a TV acaba se tornando sua maior inimiga, o que a leva fatalmente à loucura. Seu filho, cujo vício está relacionado a drogas ilícitas, tem a melhor das intenções, mas falha em perceber que o que sua mãe precisava, de fato, era atenção e afeto.
Estruturas mais complexas
Urge fazermos uma análise aprofundada sobre o sistema cultural do país que influencia grande parte do planeta. Na opinião do pensador francês Jean Baudrillard, de 74 anos, autor do famoso Simulacros e simulação, a cultura americana é marcada por "dualismos maniqueístas". E prossegue: "Um país que se construiu a partir das simulações, um deserto da cultura no qual o vazio é tudo. Os Estados Unidos são o grau zero da cultura, têm uma sociedade regressiva, primitiva e altamente original em sua vacuidade." [Época, 7/6/03]
Não se trata de demonizar toda uma nação, muito menos generalizar alguns aspectos pertinentes. Por mais que pareça, não é essa a minha intenção ? seria ignorância ou má-fé de minha parte. No entanto, as diversas análises que se fazem sobre o tema apontam para a sociedade norte-americana como caso importante para interpretar-se um paradoxo pouco estudado.
A constatação me chegou pelo pesquisador Evandro Vieira Ouriques, da Escola de Comunicação da UFRJ. Segundo o autor, vivemos numa sociedade cada vez mais populosa e, paralelamente, a grande e mais fatal doença que nos atinge é a depressão. Em outras palavras, as pessoas estão sofrendo de solidão em grandes e populosos centros urbanos; estão tristes mesmo com a multiplicação de programas de entretenimento. É no mínimo intrigante.
Estamos formando toda uma geração de lunáticos e empobrecidos de alma, já que a televisão é, nas palavras dos próprios produtores, um meio mais fluido e menos reflexivo do que outros meios de comunicação. A TV é como o próprio capital: ágil e dinâmica. Resta saber se os seres humanos, que têm estruturas mais complexas do que as técnicas de comunicação ou os números da economia, podem funcionar de tal forma.
Modelo vacinado
Por outro lado, estou falando, obviamente, deste modelo de televisão que temos, e não da televisão em si. Tenho algumas experiências com ela que considero, sem dúvida, essenciais na minha formação ética e cultural. A alguns seriados norte-americanos devo imensa gratidão, pois me ajudaram a entender importantes e profundas questões filosóficas que não são muito populares nas conversas da família ou nas salas de aula.
Também não podemos, como vão supor muitos, responsabilizar os sistemas educacionais cada vez mais caóticos. Certamente têm alguma participação no conjunto do problema. Contudo, o fenômeno, como se sabe, não é exclusivo dos clientes mais fiéis do Fundo Monetário Internacional.
Creio que o escritor brasileiro Millôr Fernandes tem a melhor definição para o nosso maior problema: "Só depois que a tecnologia inventou o telefone, o telégrafo, a televisão, todos os meios de comunicação a longa distância foi que se descobriu que o problema de comunicação mais sério era o de perto". [Conversa com Adolpho Bloch em 1958]
Com a devida pesquisa sobre a influência da televisão na formação de cidadãos mais plenos, faz-se necessária a criação de uma alternativa viável para o atual modelo de televisão. Certamente nada como o que temos, porém um modelo que se vacine contra a monotonia e a excessiva moralidade politicamente correta, cujos resultados já se demonstraram largamente inócuos.
(*) Estudante de Comunicação da UFRJ e editor da revista Consciência.Net <www.consciencia.net>