DOSSIÊ GUGU
Rubens Approbato Machado
[Copyright Folha de S.Paulo, 27/9/03]
Ao proibir a veiculação do "Domingo Legal", a Justiça extrapolou suas funções?
SIM
A democracia elege como fundamento político e ético o direito ao livre acesso à informação. Esse direito ao livre acesso se eleva à categoria de direito fundamental, tendo a Constituição Federal firmado que a liberdade de expressão da atividade de comunicação independe de censura ou licença. A esse direito de livre acesso à informação têm sido impostos limites nas legislações modernas, particularmente na esfera da privacidade.
Diante da tendência crescente dos abusos que se cometem em nome da liberdade de expressão, urge repensar o sistema de gestão da informação e rever a participação do poder público como instrumento de controle democrático dos meios de comunicação. O papel do Estado em relação aos meios de comunicação eletrônicos deve ultrapassar seu raio de ação como poder concedente. Deve o Estado prover os meios para controlar de maneira mais atenta e rigorosa as concessões de autorização de emissoras de rádio e TV, os conteúdos de sua programação e propiciar a maior democratização dos meios, a fim de evitar sua alta concentração.
O texto constitucional, ciente da importância da liberdade de imprensa -mas esse conceito não tem caráter absoluto-, fixou princípios que devem ser atendidos pela produção e programação das emissoras de rádio e televisão. Por se tratar de serviço público concedido, a Constituição determina a instituição, pelo Congresso Nacional, de um órgão auxiliar, denominado Conselho de Comunicação Social.
Qual é o papel desse conselho de comunicação, instrumento constitucional já formado e em plena atividade, se não analisar as concessões e controlar os conteúdos dos meios de comunicação? Onde estão as políticas que orientam as concessões de TV e rádio, livrando-as da chancela política? Por que as emissoras não cumprem as normas éticas? A verdade é que o Estado não está cumprindo a missão de fiscalização e, por omissão, abre caminho para as mazelas que infestam a programação.
São programas que exibem desfiles que suscitam repulsa ante a sua escatologia. São comunicadores populares que se arrogam o direito de vestir o manto da Justiça, aparecendo como "justiceiros" das demandas populares mais comezinhas.
É ingênuo pensar na imparcialidade e objetividade tão preconizadas para inspiração editorial dos meios de comunicação nas sociedades democráticas. Mas a busca de parâmetros que procurem a simetria entre os anseios maiores da sociedade e os interesses mercantilistas dos "donos" de programas de cunho populista deve nortear os órgãos que tratam da comunicação a serviço do Estado, no fundo a serviço da sociedade.
Tal recomendação não pode ser entendida como uma forma indireta de censura, como alguns podem querer ver. Nos Estados Unidos, as comunicações estão submetidas a rígidos controles, entre os quais regras para difusão em cadeia, para limitar o controle das redes de TV sobre a programação, para vedar o acesso das redes de distribuição de programas, para limitar o número de emissoras de rádio, por controlador, em uma mesma área e, por fim, para limitar, por mercado, a exploração e concessão dos veículos.
Tivéssemos esse guarda-chuva protetor, os problemas decorrentes dos abusos na programação da mídia seriam bem menores. E a Justiça só seria acionada para decidir sobre os planos da legalidade ou ilegalidade, cumprimento ou desobediência à lei.
Por isso, nesse episódio comandado pelo comunicador Augusto Liberato, a Justiça, sob o ângulo das observações aqui expostas, foi além de suas funções.
Sob o plano meramente técnico, a ultrapassagem dos limites se dá porque a Justiça toma decisão antes de o caso ser devidamente apurado. O réu tem o direito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, não se justificando a chamada antecipação de tutela, que acaba tornando inertes os preceitos do devido processo legal. No caso em tela, com a devida vênia, está sendo condenado o comunicador, por antecipação.
A nossa esperança é a de que, em futuro muito próximo, cheguemos a uma modelagem que garanta o acesso de grupos sociais significativos aos meios de comunicação, respeitando o pluralismo da sociedade. Na Espanha, essa é uma garantia da Constituição. No Brasil, apenas os partidos políticos detêm essa possibilidade. O espaço público da cidadania requer uma democracia verdadeiramente comunitária, que passa pelo direito de comunicação social, ou seja, pelo direito da sociedade organizada de ser sujeito, e não objeto, da mídia. Censura nunca mais. [Rubens Approbato Machado, 69, é o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.]
Luiz Flávio Gomes
[Copyright Folha de S.Paulo, 27/9/03]
Ao proibir a veiculação do "Domingo Legal", a Justiça extrapolou suas funções?
NÃO
Seria uma enorme ilusão supor que programas televisivos marcadamente mercantilistas (que só pensam em lucros imediatos e audiência) nos transmitissem grandes lições de civismo e de moralidade intocável. Mas para tudo há limites, e cada qual deve assumir a responsabilidade pelo que faz.
Se na ditadura funciona a censura, na democracia não pode prosperar a farsa ou o crime. No programa do Gugu Liberato, ao se forjar uma entrevista bombástica (e perversamente ameaçadora) com dois supostos membros do PCC, ultrapassaram-se todas as fronteiras do razoável ou do tolerável.
Émile Zola, renomado romancista francês do século 20, em seu famoso "Decálogo", criado para os intelectuais, jornalistas e, hoje, comunicadores sociais, sublinhava que as duas deusas dos profissionais da palavra ou da escrita são a liberdade e a verdade. A única limitação válida que se concebe para a liberdade é a imposta pela verdade. Quem mente, nessa perspectiva, comete pecado, mas não só isso, conspurca toda classe e se torna indigno de fé e de confiança, além de destruir sua credibilidade.
A decisão liminar da Justiça Federal de São Paulo, de proibir a exibição do "Domingo Legal", apesar de controvertida, inclusive nos seus fundamentos, tem coerência com os valores constitucionais que norteiam nosso Estado democrático de Direito.
Não se discute que toda e qualquer censura, de natureza política, ideológica e artística, está proibida (CF, art. 220, par. 2?). Mas também não se pode esquecer que compete à Lei Federal estabelecer os meios legais que garantam a possibilidade de nos defendermos quando programas televisivos contrariem o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa ou da família (CF, art. 220, par. 3?, II).
Esses textos constitucionais bem demonstram que não pode haver abuso em nenhuma atividade. A razoabilidade e o equilíbrio são o que se espera, sobretudo de um programa que é visto por milhões de pessoas. A decisão que proibiu a transmissão do programa do Gugu no último domingo, numa espécie de antecipação de tutela, não deve, nesse contexto, ser interpretada como censura, mas sim como repulsa à farsa ameaçadora forjada no "Domingo Legal" do dia 7 de setembro.
Note-se que a Justiça não examinou o conteúdo do programa que foi vetado, para dizer que não podia ser levado ao ar. Isso nenhum juiz pode fazer, porque é censura. A base estrutural da intervenção do Judiciário não foi, desse modo, prospectiva (não se olhou o programa vindouro), mas retrospectiva (o programa foi sancionado pelo que ocorreu, não pelo que iria apresentar).
É mais do que louvável abominar a censura, mas, mesmo na democracia, não podemos concordar com a manipulação que difunde o medo e a intranquilidade.
Já é hora de criarmos os anticorpos necessários para combater as patologias às vezes geradas pela televisão brasileira. Sobretudo quando se prioriza o desespero desenfreado pela conquista de audiência a qualquer preço.
A televisão no nosso país, como em qualquer outro, conta evidentemente com aspectos positivos. Em todos os lugares há gente extraordinária, sensível e com grande talento, que sente que o próximo é algo muito valioso e que o planeta em que vivemos é apaixonante, valendo a pena conhecê-lo, compreendê-lo e salvá-lo. O objetivo máximo de muitos programas de televisão é testemunhar o mundo que nos cerca, assim como mostrar os muitos perigos e esperanças que ele nos proporciona.
De qualquer modo, os meios de comunicação também devem agir responsavelmente. Não podem gerar, com seus programas, efeitos claramente danosos para a sociedade. Não se pode atuar só em busca de resultados rápidos, valendo-se para isso de meios questionáveis. Ramonet bem esclarece que o que falta na atualidade não é a informação, senão a seleção que conduza a evitar a prepotência, a arrogância e o puro mercantilismo.
Tolera-se o inútil ou até mesmo a futilidade, o bizarro e o grotesco. É uma questão de bom ou de mau gosto. Mas ninguém pode colocar em risco a vida, a liberdade, a tranquilidade ou a honra de outras pessoas. Esse é o limite da liberdade de expressão, que só se converte em expressão da liberdade quando divulga não o engano ou a mentira, mas a verdade. [Luiz Flávio Gomes, doutor em direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, é diretor-presidente da primeira TV Jurídica do Brasil (www.ielf.com.br). Foi juiz de direito em São Paulo (1983-98) e presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), do qual é co-fundador.]