Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Por uma internet democrática

CONSELHO DE GOVERNANÇA
(*)

Nos dias 26 e 25 de fevereiro, nas dependências do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro, realizou-se o seminário "Governança da Internet no Brasil", organizado pela Rede de Informação para o Terceiro Setor (Rits), Instituto Florestan Fernandes, Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong) e Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), com apoio da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e do Comitê Gestor da Internet Brasileira (CGI-BR).

Foram apresentadas duas palestras: "O Comitê Gestor da Internet do Brasil", dada pelo coordenador do CGI, Ivan Moura Campos, e "Governança na Internet no Brasil ? princípios e funções", apresentada pelo Diretor Geral da RNP, Nelson Simões.

No documento final do seminário, as organizações participantes propuseram a criação de um Conselho de Governança da internet composto paritariamente pelo governo, pelo setor privado e pelo terceiro setor, e dotado de atribuições como a defesa da democracia na internet, a operação segura e confiável da sua infra-estrutura, a promoção dos direitos humanos e o estímulo à participação da sociedade.

Abaixo, a íntegra do documento:

Preâmbulo

A "governança" da Internet inclui a gestão segura, confiável e eficaz dos sistemas que permitem a localização de computadores para o acesso a seus serviços de rede, bem como dos respectivos protocolos de intercâmbio de dados.

A atual estrutura mundial de gestão é piramidal, tendo como topo da pirâmide a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN), um organismo civil sem fins de lucro registrado nos EUA. A ICANN administra os servidores-raiz, a delegação de números IP e nomes de domínio (que permitem identificar e localizar os computadores na Internet), bem como a padronização dos protocolos que permitem o acesso aos serviços Internet.

A ICANN opera por delegação do governo dos EUA ? em tese, o Departamento de Comércio americano pode mudar qualquer das regras de operação da rede a partir dos servidores-raiz administrados pela ICANN. Entre outras razões, isso já justifica o movimento internacional crescente que pretende substituir a ICANN por um verdadeiro organismo internacional com participação paritária de cada país.

Em cada região há "filiais" da ICANN administrando nomes de domínio e números IP. Em cada país há uma entidade gestora com atribuições similares às da ICANN, mas restritas ao domínio-raiz do país, delegado pela ICANN à entidade gestora. Em cada país a entidade gestora é organizada (quando é) de modo distinto ? muitas são departamentos de governo, outras são entidades civis sem fins de lucro, algumas são acadêmicas e outras ainda são empresas privadas.

A Internet no Brasil é gerida desde 1995 por um comitê de voluntários renovado a cada dois anos e designado pelo governo federal ? o Comitê Gestor da Internet Brasil (CG). Sob a responsabilidade ou supervisão do CG estão:

** gestão e administração de nomes de domínio e números IP, incluindo a operação dos servidores respectivos e a administração dos recursos arrecadados;

** gestão do tráfego Internet (interconexão de redes nacionais e internacionais, otimização de tráfego e outros);

** segurança operacional da rede (sistemas de contingência, monitoramento, proteção e controle);

** representação da Internet brasileira junto aos organismos internacionais de gestão e operação da Internet (LACNIC, ICANN e outros).

Essa estrutura, criada no início da comercialização dos serviços Internet no Brasil, teve um papel fundamental no início desse processo, garantindo várias conquistas que não foram possíveis em muitos outros países, entre as quais:

** separação operacional e legal entre os serviços Internet e a infra-estrutura de telecomunicações, com a caracterização dos serviços Internet como "serviços de valor adicionado";

** centralização do serviço administrativo de distribuição de nomes de domínio em uma operação sem finalidade lucrativa, evitando a comercialização e o uso indevido dos mesmos;

** preservação do domínio ".br" para uso exclusivo dos brasileiros (o que não ocorre com muitos outros países, da China a Tuvalu);

** interconexão nacional das espinhas dorsais de modo a otimizar o tráfego nacional da rede.

Ao longo dos últimos anos, porém, constatou-se que essa estrutura de gestão não institucionalizada não proporcionou a devida transparência e controle social necessários a um serviço de interesse público e de tamanha importância.

Entre outros fatos preocupantes, verificou-se em 2002 que os recursos arrecadados ficaram sob controle da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que se apropriou dos mesmos unilateralmente para seus próprios projetos. O montante até o final de 2002 é da ordem de R$ 60 milhões e a arrecadação anual é estimada em R$ 15 milhões.

Há dúvidas sérias também sobre a estratégia de otimização de tráfego, envolvendo empresa dos EUA sem uma análise da real necessidade dessa transformação de um serviço público em uma operação comercial privada. Isto pode ter implicações também sobre um possível controle do conteúdo trafegado pela Internet no Brasil a partir de leis dos EUA.

Por fim, apesar de ter recursos para tanto (estima-se que o custo total da operação hoje é metade dos recursos arrecadados com o serviço de nomes de domínio), o CG não promoveu atividades fundamentais para o desenvolvimento da rede no país, tais como, entre outros:

** monitoramento e pesquisa sobre a penetração da rede e o estado do acesso universal;

** desenvolvimento de critérios de certificação de qualidade para os principais serviços da rede (e-mail, serviços Web, e-comércio etc), em que o próprio CG poderia atuar como entidade qualificadora;

** estratégia de alocação do excedente em projetos de desenvolvimento da Internet no país;

** consolidação de uma estrutura institucional transparente fiscalizada por conselho efetivamente representativo e paritário.

É consenso hoje que essa estrutura precisa ser mudada para garantir transparência e controle social sobre a operação segura e eficaz da Internet no Brasil, sem perder as conquistas já mencionadas.

Com o novo governo, abre-se a oportunidade de uma reorganização em consulta com o governo e os vários setores da sociedade na elaboração de uma nova proposta para essa gestão. Esse processo precisa ser agilizado ? o atual CG termina seu mandato em março de 2003 e é preciso ter consenso sobre os caminhos a seguir a partir de então.

Com o objetivo de contribuir para este novo modelo de gestão, organizações da sociedade civil estiveram reunidas no Rio de Janeiro, em 25 e 26 de fevereiro de 2003, para discutir uma proposta de governança da Internet no Brasil. O resultado destes dois dias de trabalho está consolidado neste documento, como segue:

Proposta do grupo de entidades do terceiro setor, abaixo assinadas, interessadas na estrutura de governança da Internet e participação do terceiro setor nesta

Considerando que:

** as Tecnologias de Informação e Comunicação são a principal forma de acessar, organizar e produzir informação e conhecimento;

** a Internet é a principal expressão das TICs;

** na sociedade da informação a estratificação social e a capacidade de acumular poder e riqueza passam pela capacidade de acessar, organizar e produzir informação e conhecimento,

Os signatários consideram que devem ser princípios norteadores da ação da estrutura de governança da Internet no Brasil:

** A promoção do acesso universal à rede, aos equipamentos e à capacitação para seu uso efetivo;

** A promoção dos direitos humanos com destaque para os direitos de comunicação e a liberdade de expressão;

** A defesa de princípios democráticos na governança da Internet no Brasil e no mundo;

** O estimulo à participação da sociedade brasileira na governança da Internet;

** O estimulo ao debate público sobre os temas relevantes gerados pela Internet ? ex. propriedade intelectual, crimes digitais, etc.;

** A operação segura e confiável da infra-estrutura da Internet no Brasil;

** A promoção de condições que favoreçam um ambiente democrático para o desenvolvimento econômico da Internet no Brasil;

** A defesa dos direitos dos consumidores.

Desta forma os signatários propõem um Conselho de Governança da Internet:

** Composto paritariamente por membros indicados pelo governo, pelo setor privado e pelo terceiro setor;

** Que defina de forma autônoma sua governança interna, respeitando o principio de alternância da presidência entre os setores representados em mandatos sucessivos;

** Onde cada setor defina de forma autônoma sua representação;

** Onde os conselheiros tenham mandato de 2 anos, com a possibilidade de uma recondução;

** Que alterne de forma paritária parte do Conselho a cada ano; para isso, se propõe que o mandato de parte dos conselheiros na gestão 2003 seja de apenas um ano;

** Em que os representantes do terceiro setor e da iniciativa privada sejam indicados por colégios eleitorais abertos, específicos para cada setor, com regras próprias, estabelecidas de forma transparente por cada um deles e divulgadas publicamente;

** Onde cada entidade só poderá se credenciar para votar e ser votada em um setor;

** Que estabeleça fóruns intermediários entre representantes e representados nos três setores;

** Que garanta o princípio de transparência em seus atos e debates;

** Que promova mecanismos de interação com a sociedade, como por exemplo consultas públicas, ouvidoria etc;

** Que garanta aos conselheiros eleitos condições de trabalho tanto pessoais quanto institucionais;

** Onde os recursos arrecadados e captados pelo Conselho de Governança devam ser utilizados exclusivamente para a promoção de seus princípios e execução de sua missão;

** Onde o Conselho tenha controle integral sobre uma instituição sem fins lucrativos formalmente constituída para implementação de suas políticas por meio de um corpo profissional;

** Onde os únicos membros do conselho controlador da instituição serão os membros do Conselho de Governança da Internet durante o exercício dos seus mandatos. Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 2003

Entidades civis signatárias

Afirma Comunicação e Pesquisa, Rio de Janeiro

Agência Nacional dos Direitos da Infância (Andi), Brasília

Associação Brasileira de ONGs (Abong), São Paulo

Central Única dos Trabalhadores (Cut), São Paulo

Centro de Assessoria Multiprofissional (Campo), Rio de Janeiro

Comitê para a Democratização da Informática ? São Paulo (CDI-SP), São Paulo

Comunicação, Educação e Informação em Gênero (Cemina), Rio de Janeiro

Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), Rio de Janeiro

Fundação Pensamento Digital, Porto Alegre

Grupo Origem, Recife

Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs), Rio de Janeiro

Instituto Florestan Fernandes (IFF), São Paulo

Instituto Socioambiental (Isa), São Paulo

Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits), Rio de Janeiro

Saúde e Alegria, Santarém

Sociedade Digital (Socid), Rio de Janeiro

Viva Rio, Rio de Janeiro

(*) Fontes: Rits <http://rets.rits.org.br/> e Notícias RNP <http://www.rnp.br/noticias>