TV CULTURA
Laurindo Lalo Leal Filho (*)
A crise vivida atualmente pela TV Cultura de São Paulo nada mais é do que uma nova fase cíclica que se repete regularmente ao longo de sua história. Mantida desde 1969 por uma fundação de direito privado, o que lhe dá total independência gerencial em relação ao Estado, a emissora tem como fonte de recursos prioritária ? e em muitos momentos ? única o Tesouro estadual. Criou-se dessa forma uma relação tensa entre quem libera as verbas e quem as gerencia. Essa é a raiz institucional de todas as crises nesse tipo de instituição.
O modelo público consagrado internacionalmente é aquele que se mantém independente do Estado e do comércio, política e financeiramente. Para tanto criam-se conselhos gestores autônomos, formados por representantes da sociedade que detém a última palavra na administração de emissoras em que a participação financeira do Estado é pequena ou simplesmente inexiste.
No Brasil a idéia de serviços públicos de radiodifusão foi sempre subordinada ao modelo comercial. Podemos destacar apenas três momentos significativos na história da radiodifusão pública brasileira: o primeiro, na fundação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 1923, por Roquette Pinto, quando o objetivo era a criação de sociedades e clubes de ouvintes que manteriam com suas contribuições as emissoras de rádios voltadas para fins informativos, culturais e educativos. Dai a existência pelo país, até hoje, de emissoras comerciais que ainda mantém no nome as palavras clube ou sociedade. O modelo sucumbiu ao comércio com a regulamentação da publicidade em 1932.
O segundo momento foi o da já referida criação da Fundação Padre Anchieta em São Paulo que, institucionalmente, reproduzia o modelo da BBC de Londres. Como na emissora britânica, o rádio e a televisão pública de São Paulo seriam dirigidos por um Conselho Curador representativo da sociedade e com uma autonomia de gestão garantida pela figura jurídica do direito privado. Fator determinante para evitar qualquer tipo de interferência estatal. A esse Conselho é dada autonomia total, mas deve ser cobrada responsabilidade pública. Na Fundação Padre Anchieta o órgão hoje é formado por 45 conselheiros, número diferente do original e que foi ampliado pelo próprio Conselho ao longo dos anos. O que parecia ser uma prática democrática por ampliar o número de integrantes, hoje se revela causador de uma aparente inoperância, com a diluição de responsabilidades. Como a referência inicial foi a BBC de Londres, cabe lembrar que o Conselho gestor daquela instituição é formado por 12 membros.
Referência histórica
Voltando à história brasileira, o terceiro momento significativo da radiodifusão pública, foi o da explicitação na Constituição de 1988, em seu artigo 223 de que "compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas público, privado e estatal". Pela primeira vez esboça-se, na Lei maior, o tripé sobre o qual deveria funcionar a televisão brasileira. Infelizmente, a realidade não apresenta qualquer referência com o texto legal. O Brasil prossegue com um modelo comercial hegemônico, com um reduzido serviço de rádio e TV estatal e com a solitária experiência pública da Rádio e TV Cultura de São Paulo, às voltas com suas constantes crises.
Essa é a breve e minguada história da radiodifusão pública no Brasil. Cabe agora apontar caminhos para inverter esse quadro. Para tanto são necessárias ações simultâneas e combinadas no sentido de se criar uma estrutura gerencial e de financiamento efetivamente públicas, evitando a entrega total do modelo à iniciativa privada ou ao Estado sem, no entanto, desprezá-los.
Como fazer isso? Do ponto de vista institucional criando um Conselho Coordenador Nacional das Emissoras não-comerciais, reunindo neste primeiro momento todas as instituições que se enquadrem nesse perfil. Ou seja, desde fundações como a Padre Anchieta de São Paulo, passando por emissoras estatais federais, estaduais e municipais, do Poder Legislativo em seus diversos níveis até as emissoras universitárias e comunitárias. Estaria formada aí uma poderosa rede pública de televisão, enraizada nacionalmente, com um poder de produção e irradiação capaz de competir com as emissoras comerciais.
Do ponto de vista do financiamento, nenhuma das alternativas hoje existentes deveria deixar de ser considerada, com exceção do anúncio comercial, incompatível com a linguagem de uma televisão pública. O apelo ao consumo, conquistado através da emoção, é inconciliável com uma programação mais reflexiva, balisadora do modelo público. Mas devem ser considerados recursos provenientes do Estado, cuja política cultural não pode excluir a radiodifusão; aqueles provenientes de apoio culturais bancados por empresas que queiram associar suas marcas a programas de qualidade; os vindos de doações efetuadas por pessoas físicas e jurídicas, com deduções fiscais como ocorre com a televisão pública norte-americana; de taxações que possam ser aplicadas sobre grandes consumidores de energia elétrica, como aventou o governo do estado de São Paulo em anos recentes e, finalmente, da cobrança de aluguel pelo uso do espectro eletromagnético, que é público, feito pelas emissoras comerciais levando à constituição de fundo mantenedor da rede pública nacional de televisão.
Essa última fonte de recursos não pode ser encarada como irreal. Ela tem pelo menos uma referência histórica concreta que é o canal experimental do Reino Unido, o Channel Four que, durante cerca de dez anos teve sua sobrevivência garantida por recursos advindos da comercialização dos espaços publicitários realizados pela ITV, a emissora independente britânica, mantida pela propaganda.
Janela para o mundo
O ideal, ainda do ponto de vista do financiamento, é que neste momento as emissoras não-comerciais sejam mantidas com recursos de diversas fontes, simultaneamente. Tal procedimento serviria como uma defesa aos problemas que podem advir quando se tem apenas um financiador que, em determinados momentos, pode se valer da situação para impor seus interesses aos do público telespectador. Cabe ao Estado, no entanto, participação constante e significativa, no financiamento para dar viabilidade e permanência ao projeto e para cumprir sua responsabilidade com a difusão da informação e da cultura. Sustentada por essa base institucional e financeira a nova rede iria disputar audiência com as redes comerciais, como ocorre hoje em países como a França, a Alemanha e o Reino Unido, onde apesar da onda privatista, as emissoras públicas são vistas por, pelo menos a metade dos telespectadores desses países. Ou como nos Estados Unidos onde a PBS é a terceira rede nacional de televisão.
Mas ai chegamos ao ponto mais importante. O suporte institucional e financeiro é fundamental, mas só ele não garante qualidade capaz de conquistar o público. É preciso a abertura dos canais públicos aos criadores brasileiros, espalhados por todo o país, e impedidos pelo oligopólio de mostrar o que fazem. Abrir para a experimentação e a criatividade deve ser a missão central da televisão pública. A ela se associa o papel crítico da própria televisão que só uma emissora não-comercial pode fazer, fenômeno já registrado várias vezes na programação da TV Cultura de São Paulo e finalmente, o mais importante: oferecer ao público programas de qualidade em toda a sua grade horária, e não só em alguns momentos como fazem esporadicamente algumas redes comerciais.
Com isso estaria sendo dada oportunidade ao público de experimentar e de se acostumar com o "biscoito fino", no dizer de Oswald de Andrade. Sem conhecer o que é bom fica difícil exigir o melhor. O resultado de uma programação desse tipo seria não só de dar diretamente ao público o melhor da arte, da cultura e da informação existentes no país, mas também o de levar a televisão comercial a rever seus padrões, como aliás já aconteceu quando a programação infantil da TV Cultura de São Paulo atingiu dois dígitos de audiência e forçou um dos concorrentes a investir numa grade infantil de melhor qualidade.
A nova crise da TV Cultura coincide com a chegada ao poder nacional de um novo governo. Da combinação desses dois fatos, havendo vontade política, pode surgir uma verdadeira rede pública de televisão no Brasil com a missão de elevar o grau de cultura e cidadania da absoluta maioria da população brasileira que tem na TV a sua única janela para o mundo.
(*) Jornalista e sociólogo, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo; esse texto foi base para a exposição em audiência pública da Câmara dos Deputados, em 5 de junho de 2003, destinada a debater a crise da TV Cultura de São Paulo