QUALIDADE NA TV
MANIFESTO FALADO
Gustavo Acioli (*)
Na sexta-feira, 27 de outubro de 2000, o Jornal do Brasil noticiou, sob o título "Manifesto Televisivo", um fato de extrema relevância. Na véspera, dia 26, numa mesa-redonda sobre a TV no Brasil durante um encontro de Ciências Sociais, em Petrópolis, Rio de Janeiro, a atriz Regina Casé leu um proto-manifesto que trouxe a público os descontentamentos e reflexões de um grupo constituído por ela mesma, Hermano Vianna, Pedro Cardoso, Guel Arraes, Marcelo Tas, João Moreira Salles, Jorge Furtado, o "pessoal" da Conspiração Filmes e Cacá Diegues (essa descrição é do próprio jornal).
Segundo a matéria, esse grupo tem discutido diariamente, via internet, os rumos da televisão brasileira e pretende abrir um fórum de discussão com a sociedade. O texto lido por Regina Casé abordava temas como "a questão popular na TV, a relação com o cinema, a segmentação da TV por assinatura, a necessidade de sair do eixo Rio-São Paulo e a possibilidade de fazer televisão inteligente para o grande público". Não admitiram que se chamasse o texto de manifesto, nem tampouco o quiseram publicar; mas também não
negaram a possibilidade de fazê-lo em breve.
Alvíssaras! Esse era o movimento que faltava no jogo de xadrez que tem sido travado na sociedade brasileira. Finalmente, expoentes da cultura brasileira detentores de amplo reconhecimento popular assumem o papel social de criticar publicamente o sistema e formular propostas, mostrar para as pessoas que existem alternativas, que as coisas podem ser diferentes e melhores.
Quem tem se dedicado a fazer o devido garimpo nas bancas de jornal, nos meios de comunicação em geral e nas livrarias, sabe que tem muita gente boa nesse país diagnosticando com precisão nossos problemas e construindo um pensamento que poderá servir de base para que se corrijam as distorções históricas da nossa sociedade. No entanto, esses intelectuais – acadêmicos, jornalistas, escritores, políticos… – estão guetificados pelo sistema. Apesar das sessões de cartas de certas publicações revelarem uma alentadora diversidade de leitores, gente de todos os rincões, idades e atividades, manifestando uma lucidez e um ímpeto participativo estimulantes, ainda assim tem-se a
impressão de que o nível de ressonância de todas essas vozes em conjunto está mantido sob controle. Tanto é que o poder oficial pode fazer-lhes ouvidos moucos. E, na verdade, se considerarmos que estamos tratando dos brasileiros que são leitores e têm algum poder aquisitivo e suficiente interesse para comprar jornais, revistas e livros, ou acessar a internet, realmente estamos falando de um gueto.
"Está tudo bem"
Quantos brasileiros já leram o Verissimo e quantos assistiram aos episódios do Comédia da Vida Privada dirigidos pelo Guel Arraes e estrelados pelo Pedro Cardoso? Esse é um ponto importantíssimo. O peso específico que podem ter essas vozes é, por hora, inestimável.
Há quem sustente que alguns grandes nomes da música popular brasileira, por exemplo, poderiam ter desempenhado um papel de participação na vida brasileira – durante todo esse processo de redemocratização que estamos vivendo – mais incisivo e sistemático, posto que são (ou, ao menos, foram) importantes formadores de opinião junto a alguns setores da elite e da classe média. Pois bem, tal participação foi ou esporádica, ou tímida, ou nenhuma, de modo que, respeitando-se os limites individuais de participação de cada um, pois é questão de foro íntimo, o fato é que ficamos desprovidos de luminares da cultura dispostos a fazer esse tipo de interlocução.
Numa afirmação propositalmente reducionista, quem se propõe a falar ao povo, hoje, ou quer vender alguma coisa ou pede voto de quando em quando. Estamos diante, mais uma vez, de um ponto-de-virada da sociedade brasileira. A história do Brasil pode ser vista como uma luta intestina entre os que querem um Brasil para todos os brasileiros e os beneficiários do sistema de dominação fundado há quinhentos anos, onde o prevalecimento dos interesses destes últimos tem sido logrado às custas de algumas concessões aos anseios dos primeiros.
Vivemos, entre 84 e 89, um destes pontos-de-virada. Jogo intrincado em que, apesar de ter-se estendido até 94, os vencedores tradicionais nunca estiveram em desvantagem, consolidando sua vitória quando encontraram o equilíbrio ameno de um colorido pastel. Desde então, o pacto de poder reinante tem-se sustentado numa combinação tácita dos seus partícipes de afirmarem a todo momento e a todo custo que tudo está muito bem.
Todavia, se levado ao extremo, o discurso do "está tudo bem" depara-se com duas dificuldades: passa a ter que minimizar os problemas estruturais históricos e se vê forçado a contradizer os fatos. Para sobrepor-se às evidências da realidade, precisa valer-se de uma máquina de propaganda goebeliana. A TV aberta é o coração, o motor, o corpo principal desta máquina.
O uso bem sucedido da máquina de propaganda acarretou, no nosso caso, uma vantagem adicional aos seus usuários. Como pode negar os fatos, mas não pode apagá-los da realidade, o discurso do "está tudo bem" é transmitido junto com um ruído-de-fundo: o pavor de ser excluído do sistema. O pavor paralisa, emudece, afeta o comportamento natural do indivíduo. Se você é um incluído, é melhor dizer que está tudo bem, porque, se amanhã você for excluído, sabe que não vai adiantar reclamar.
Acomodação de interesses
Como entre as concessões mais recentes está o direito ao usufruto da democracia formal, a dissonância se fez ouvir nas urnas das eleições municipais, dando sinais claros de que o jogo realmente está posto para 2002. Mas, para que o resultado não seja o de sempre, é preciso que novos jogadores se apresentem e que as táticas sejam renovadas. Renovar as táticas significa, sobretudo, trazer à pauta os grandes temas nacionais. Fugir do debate econômico para tirar a política de um certo gueto discursivo em que se meteu. Economia é meio, não é fim. É preciso que retomemos o exercício de imaginar como seria esse Brasil para todos os brasileiros, o que está faltando, o que tem de ser diferente.
A TV tem de ser diferente. O surgimento desse grupo é testemunho irrefutável. São cidadãos brasileiros que chegaram ao topo do seu segmento profissional e agora, quando imaginavam ter respaldo suficiente para desfrutar de maior liberdade de criação, que poderiam dar vazão a seus projetos mais preciosos, a seus sonhos pessoais mais acalentados, verificaram que estão inseridos numa sociedade que não oferece condições para que se desenvolvam na plenitude de suas potencialidades e desejos. Quando se preparavam para o vôo, sentiram o peso frio do teto sobre suas cabeças. Ainda segundo a
reportagem do JB, o "manifesto" foi motivado pela "frustração" com o fim do programa Muvuca, de Regina Casé, e por uma "recente crise" do núcleo dirigido por Guel Arraes na TV Globo.
Insisto em dar maior dimensão ao caso. Não estamos falando de profissionais insatisfeitos aos quais diríamos: mudem-se daí. Esse fato deve ser entendido como a prova concreta de que o Brasil não oferece alternativas nem para a "nata" dos seus produtores audiovisuais. As empresas de TV aberta, a despeito da concorrência que travam entre si, constituem um cartel sim, porque vendem todas o mesmo produto. Vendem o grotesco, o baixo nível, a superficialidade, baboseira aos montes. O povo brasileiro assiste diariamente à depreciação da inteligência, da inovação, da sofisticação e de todos os valores necessários para que não se rume para a barbárie. E como todo o sistema de comunicação de massa do Brasil orbita em torno da TV aberta, seus padrões estéticos e ideológicos são reproduzidos nas TVs por assinatura, nos jornais, nas revistas, nas rádios…
A própria reportagem do JB sobre o "manifesto" é um grande exemplo. Texto raso. Não tece considerações, não faz ponderações, nem sobre a pertinência, nem sobre as conseqüências das declarações. O fato e o tema deveriam ser suficientes para o jornal mudar, não só as pautas do dia, mas de toda a semana, destrinchando ponto a ponto tudo o que foi dito, buscando novas opiniões, acompanhando as repercussões. Mas caíram em desuso a responsabilidade e o compromisso social. É mais importante repetir que está
tudo bem.
Quando membros da mais alta elite sentem necessidade de protestar, temos a confirmação do ponto-de-virada. Os desfechos possíveis são dois: ou teremos a oportunidade de promover algumas transformações, ou teremos mais uma leva de concessões e acomodação de interesses.
Para quebrar esse ciclo é preciso levar a democracia para além das urnas. A democratização dos meios de comunicação é a chave para que se estabeleça um diálogo nacional amplo e enriquecedor, capaz de conduzir o conjunto da sociedade brasileira a assumir cotidianamente a responsabilidade sobre seu destino.
(*) Cineasta.
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