MORDAÇA PARA MÉDICOS
Carlos Nina (*)
Segundo o noticiário nacional, o meio jornalístico foi sacudido por uma resolução do Conselho Federal de Medicina, publicada no Diário Oficial da União do dia 25 de setembro, pela qual o médico deve exigir do repórter que o entrevistar a apresentação do texto da entrevista antes da publicação.
Para Odete Medauar, professora titular da Faculdade de Direito da USP, com essa norma o médico poderá cercear a informação, promovendo efeito semelhante à censura prévia. Entende, também, que tal condição cria obstáculos ao jornalista, cuja atividade, não raro, exige rapidez na atuação. "Existe a possibilidade de distorções entre o que é declarado e o que é publicado, mas não se deve legislar com base em exceções. Além disso, o profissional e o veículo de imprensa podem ser responsabilizados se causarem qualquer prejuízo", afirmou Medauar.
Por outro lado, para Fábio Konder Comparato, professor titular da mesma faculdade, a exigência se justificaria pela possibilidade de o jornalista errar na tentativa de simplificar as declarações do entrevistado. E ressalta que essa possibilidade não se restringe à medicina.
Decência, moral e ética
Entendo que a matéria é cristalina, apesar de estar sendo polemizada. É censura mesmo. Se esse direito de "revisão", que jornalistas sensatos se permitem conceder para aclarar questões não-esclarecidas, duvidosas ou eminentemente técnicas, se torna uma exigência, aí se estabelece a censura, indubitavelmente.
A preocupação com as distorções nas notícias, reportagens e entrevistas é procedente, mas não justifica a censura. É evidente que no jornalismo, como em todas as profissões, há os profissionais competentes, éticos, responsáveis, mas há os despreparados, violadores da ética e os deliberadamente mal-intencionados, venais. Em conseqüência, uma divulgação pode desinformar, em vez de informar corretamente, quer por conta do despreparo de um profissional, quer por conta da intenção de prejudicar ou beneficiar alguém.
O primeiro caso é fácil de resolver, porque a retificação pode sanar o ruído. No segundo caso é quase impossível, pois os pedidos de retificação podem ser mais distorcidos, ainda, exatamente pela desonestidade do profissional, comprometido com interesses que não respeitam normas mínimas de decência, moral e ética.
Lei Fleury
Nesses casos, o mais sensato é nem tentar retificar a falsidade, até porque o público acaba percebendo, distinguindo e identificando os profissionais tendenciosos, que são diferentes daqueles que, assumidamente, defendem determinadas causas, sem, contudo, veicular inverdades e deboches. Os próprios veículos de comunicação ganham ou perdem credibilidade de acordo com sua independência ou parcialidade. Quem não conhece esses exemplos?
Mas nem esses crápulas, que existem em todas as profissões, justificam medidas tendentes a cercear direitos fundamentais. Temos que conviver com eles e dar-lhes o tratamento que merecem. Para esse tipo de jornalista essa censura prévia não funciona, e o resultado é que trará constrangimentos apenas ao profissional sério e responsável.
É o caso, também, da Lei Fleury, que foi editada para beneficiar uma das maiores expressões da tortura no Brasil. Não será pelo fato de que ela beneficia, também, perigosos marginais que se deva revogar essa lei, pois é ela quem garante a liberdade a milhões de brasileiros que, sem essa lei, estariam sujeitos a abusos de autoridade. Diga-se de passagem que, apesar da existência dessa lei, centenas, senão milhares, de pessoas sofrem, diariamente, esse constrangimento, porque, marginalizadas pela pobreza, pela miséria, são tratadas sem o mínimo respeito por policiais despreparados, que assim agem por iniciativa própria ou ordem de algum superior, político ou endinheirado irresponsável.
Solução improvisada
Vale registrar a resistência de um delegado de Polícia em São Luís que, na semana passada, recusou-se a cumprir uma dessas ordens ilegais, mesmo sabendo que isso pode lhe trazer represálias. É o preço da dignidade, que nem todos têm a coragem de pagar.
No caso da tentativa de produzir uma notícia asséptica, o Conselho Federal de Medicina abre precedente perigoso, pois estará nivelando por baixo os profissionais da mídia e tentando transformá-los em meros escribas, violando, no mínimo, duas das principais garantias constitucionais: o direito de informar e de opinar. E mais: esse "direito" não poderia ser apenas dos médicos, mas de todos os que prestarem alguma informação.
A conclusão de tudo isso é que, mais uma vez, a solução é o improviso e a consolidação de imperfeições que deveríamos tentar corrigir. No caso, a especialização do profissional, para que, ao entrevistar ou abordar algum tema, conheça o assunto para não desinformar o destinatário da informação. Não é uma solução difícil. Basta vontade pessoal para isso. E consciência da importância que o verdadeiro jornalista, o profissional responsável e ético tem para a construção de uma sociedade livre e democrática.
(*) Advogado e conselheiro federal da OAB (MA)
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