TELEJORNALISMO
Paulo José Cunha (*)
Copa é legal. Todo mundo gosta: eu, você, o Zé, o Alfredo, o Fernando Henrique, o bispo, o Galvão, o Mundico da oficina, o Lulalá, seu Hermógenes da farmácia, o Digão irmão do Armando. Até o papa gosta. O Osama, o Bush, o Arafat, o Serra, todo mundo gosta. Futebol é paixão nacional, não é mesmo? Paixão nacional pra qualquer nacionalidade: tanto faz aqui como na Escócia ou no Cazaquistão, não é mesmo? O planeta agora é uma bola dentro da outra. Legal pacas, não é mesmo? Importante é trazer o caneco. Claro que todo mundo vai gostar de saber tudo sobre a Copa, até a cor das cuecas do Ronaldinho e outras informações tão ou mais importantes, não é mesmo? Portanto, tome Copa, de manhã, de tarde, de noite, de madrugada. Não é mesmo? Oba! Copa nas revistas, nos jornais, nos telejornais, nos intervalos dos telejornais, nos programas infantis. Tão lindo, né?, o nacionalismo à flor da pele, Brasil!, Brasil!, Brasil!, pessoas de verde-e-amarelo, as ruas enfeitadas, a paixão pela pátria de chuteiras, 90 milhões (desculpe, a população cresceu e se atualizar o número pode não caber no hino do Luiz Gustavo). Mas vale o esforço. Vamos lá, todo mundo cantando, mesmo que não dê na métrica: 160 milhões em ação, pra frente, Brasil varonil do céu de anil e do amor febril, salve, salve!
Fica até difícil ? quase impossível ? entender por que é que ainda tem editor de telejornal abrindo espaço para um arranca-rabo que está acontecendo por aí, parece que numa tal de Caxemira, um pedaço de terra que não vale o que o gato enterra lá pras bandas do raio que o parta, fronteira com a PQP, uma porcaria qualquer que fica do fim do mundo pruma banda, lá onde Judas perdeu as chuteiras (desculpe de novo, Judas não jogava, embora fosse chegado a uma propina). De novo: lá onde Judas perdeu as botas, não é mesmo? Pois é, me diga: que diabo é que nós, aqui das margens plácidas, povo heróico do brado retumbante, moradores da patriamada, temos a ver com isso? Tanto assim que nenhuma emissora brasileira mandou alguém pra lá, porque a tal da Caxemira não tem a menor importância, né não? E ainda tem gente dizendo que eles podem começar a terceira guerra, só porque Índia e Paquistão têm armas nucleares… Quem disse que vão usar? Vão usar coisa nenhuma, onde já se viu, não é mesmo? Todo mundo por lá está é ligadão na Copa, todo mundo só quer saber é dos dribles do Denílson, da vitória da Coréia em cima da Croácia, da contusão do Zidane, não é mesmo? Paquistaneses e indianos estão é com a bola na cabeça. Vão lá pensar em guerra.
No meio de toda essa euforia cívica (não é mesmo?), eis que um estudante universitário de Mogi das Cruzes me envia um e-mail pedindo alguns exemplos capazes de explicar a “agenda setting” (a pauta de assuntos ditados pela mídia e que faz a cabeça de leitores, ouvintes, telespectadores e internautas). Agora vê lá se eu tenho cabeça pra pensar nisso numa hora dessas? A bola está rolando bonita lá na Coréia, a gente anda por aí, feito zumbi, todo mundo morto de sono por causa das madrugadas insones em frente à tevê (se assim não fizermos como é que vamos ter assunto pra conversar com a turma no boteco da praia, na roda do cafezinho, em frente à banca do jogo do bicho?) e ainda vem você querendo saber de “agenda setting“?
Desculpe, meu caro, mas não dá mesmo. Imagina se vou ter algum exemplo pra te dar, logo agora que não consigo pensar em outra coisa a não ser nos gramados verdejantes de Seul, no sabor de um bom churrasco de cachorro, na belezura dos desenhos dos tecidos coreanos, no design das camisas dos atletas, no comprimento dos cabelos dos jogadores e temas que tais, tão bem cobertos pelos nossos bravos repórteres e cuja importância salta aos olhos tal como um goleiro salta atrás da bola na hora do pênalti.
Talvez não dê pra ajudar, amigo. Pois desde que fui acordado pelos foguetes naquela madrugada em que o Brasil jogou com a Turquia e caí na besteira de ligar a tevê (logo eu, que até então não dava a mínima pra esse troço de futebol) fui definitivamente fisgado e não consigo fazer outra coisa. O emprego, então, está por um fio, o serviço todo encalhado, porque não dá pra desgrudar os olhos das páginas esportivas, o radinho de pilha ligado nos comentários, a tevê portátil ali ao lado da bandeira e de vez em quando uma soprada na buzina (só pra manter o clima, não é mesmo?). Portanto, veja se consegue um outro assunto aí pra estudar. Dê uma olhada num livro do velho Cohen, aquele que dizia que a mídia não consegue ditar o que as pessoas devem pensar, mas, sim, sobre o que as pessoas devem pensar. É por aí, velho. E vê se te orienta, mano, e larga do meu pé. Pega umas mina estilo big brother (essas que batem tampa de panela melhor do que o Rivaldo bate pênalti), bota umas latinhas de skol pra gelar ? convida pra te acompanhar aquela tartaruga boa de bola ? e senta o rabo diante da tevê que o barato está é ali, cara.
E se teu professor vier te perguntar de novo sobre esta tal de “agenda setting“, pede a ele pra responder, na bucha, quanto foi o placar de França e Uruguai. Ou então, quem é que a Fátima Bernardes considera o homem mais bonito da Copa. Melhor ainda: pergunta a ele se, em plena euforia proporcionada pelo esporte bretão, alguém, além dele, tem coragem de aparecer com uma pergunta besta como essa. Aposto que em vez de te dar uma espinafrada ele vai te surpreender com uma nota bem maneira. É, sim, porque tua pergunta vai conter a resposta direta e precisa sobre a tal de “agenda setting“. Só não me pergunta por que, maninho. Não vou ter tempo pra te responder. É que está pra começar uma mesa-redonda na Band e eu já larguei tudo pra assistir. Vão discutir pela milésima vez se o Felipão deve mesmo convocar de novo aquele juiz pra reforçar nosso ataque. Parece que o Falcão vai estar lá, no debate. Ou será que vai ser o Juca Kfouri? Aliás, nem sei direito se vai ser mesmo na Band. Talvez seja na Record, com a participação do Kajuru e do Casagrande. Ou então vai ser na Globo, com o Datena… Sei lá, é um troço assim.
Então, que “agenda setting” que nada, amigo. Bacana é todo mundo em frente à tevê, ligadão, cantando sem desentoar, pra empurrar os meninos em direção a mais um caneco, não é mesmo? Todos juntos, vamos, pra frente, Brasil, Brasil…
(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>