BUSH TOP GUN
Paulo José Cunha (*)
Até outro dia os fatos midiáticos (eventos produzidos com a única finalidade de sair no jornal, no rádio ou na tv) mereciam simples, ingênuo e bovino registro no jornal, no rádio ou na tv, cumprindo ao pé da letra a função para a qual eram concebidos, uma vez que a imprensa não cultivava o salutar hábito de levantar a ponta do véu para revelar a armação por trás deles. Poucos eram os analistas que se dedicavam à tarefa de explicar ao distinto e respeitável público que tal fato ou gesto não era espontâneo, ao contrário: teria obedecido a um script fechado, com o objetivo de produzir tal ou qual efeito na audiência ou no leitorado.
Ainda bem que o tempo não pára, como diria o filósofo Cazuza. Na semana passada, praticamente todas as grandes agências de notícias do mundo, ao distribuir os informes sobre a espetacular aterrissagem de George Bush no porta-aviões Abraham Lincoln pra anunciar o fim dos combates no Iraque, fizeram-no "traduzindo" o que se escondia por trás da meticulosa operação. A AFP, por exemplo, classificou as imagens de Bush desembarcando de um avião S3-Viking (no lugar do tradicional helicóptero presidencial), vestindo um uniforme de aviador depois de viajar no lugar do co-piloto, de "estilo Top Gun". Isso logo na abertura da matéria, pra não deixar qualquer dúvida.
Se Bush descesse do helicóptero presidencial não teria como usar o uniforme que caracteriza o guerreiro de volta do campo de batalha. Este era o objetivo: apresentá-lo ao mundo ? mais especificamente ao mundo norte-americano, que costuma reeleger presidentes ? como o combatente de missão cumprida que, envolto pela aura do herói, retorna cansado ao lar, ainda envergando o traje da batalha. Para consumar a pantomima, nada foi esquecido. O próprio porta-aviões deslocou-se em velocidade reduzida ao porto de San Diego, na Califórnia, para evitar que a costa fosse vista ao fundo da imagem. O avião em que Bush voou foi rebatizado de Navy One, alusão ao avião presidencial Air Force One. No vidro da cabine, podia-se ler a inscrição: "George W. Bush, comandante-em-chefe". Vale a pena transcrever um trechinho da matéria da AFP:
"Com o cabelo ao vento, sorriso aberto e capacete sob o braço, Bush desceu da nave como se voltasse da guerra."
Em vez da tradicional saudação militar, o presidente deu tapinhas nas costas dos soldados, enquanto uma enorme bandeira norte-americana proclamava "missão cumprida". O evento, realizado em seqüência ? o embarque, o desembarque e um discurso "emocionado", pronunciado simultaneamente à exibição de uma foto de um militar morto, eleito soldado-símbolo da campanha "contra o terrorismo" (distribuída com antecedência às redes de televisão) ? garantiu que Bush ocupasse a tela das principais redes de tv durante todo o dia.
Clark Gable & John Wayne
Os americanos são craques neste tipo de encenação. A diferença é que, ao contrário de outros tempos, quando a imprensa não acionava o desconfiódromo, agora as próprias matérias relatando o fato já contêm sua tradução, dispensando até mesmo a leitura dos analistas. Prato feito de lá pra cá corresponde a prato feito daqui pra lá. Muito provavelmente, essa nova forma de transmissão da informação poderá traduzir-se na desmistificação dos engodos, sobretudo os visuais, que encobrem a natureza real desses fatos elaborados com a exclusiva finalidade de provocar determinado efeito na audiência.
Só para citar, até bem pouco tempo a massa de eleitores mais manipuláveis no Brasil, ou seja, os das classes menos informadas, respondia praticamente no bate-pronto aos estímulos dos efeitos especiais construídos através dos recursos da computação gráfica. Com o tempo, o eleitorado começou a não responder tão prontamente a essa pirotecnia passando, pelo contrário, a desconfiar que toda aquela parafernália destinava-se apenas a esconder a ausência de conteúdo de determinados candidatos.
Se a cobertura dos fatos midiáticos continuar a ser feita "por dentro", como aconteceu na semana passada com o candidato à reeleição à Casa Branca, provavelmente o povo norte-americano, de ordinário passivo e crédulo nas pirotecnias mais ostensivas, talvez comece a desconfiar. Talvez descubra que tinha alguma coisa errada com aquele simpático senhor vestido de aviador, incluindo pára-quedas e kit de sobrevivência, com um capacete debaixo do braço, distribuindo sorrisos e tapinhas. Ou será que os americanos acreditam até hoje que aquele bigodinho do Clark Gable e aquele jeitão do John Wayne eram de verdade?
(*) Jornalista, pesquisador, professor da professor da Faculdade de Comunicação da UnB. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>