DOSSIÊ GUGU
[Copyright O Estado de S.Paulo, editorial, 27/9/03]
Não foram poucas as autoridades ou personalidades públicas que já tentaram combater o baixo nível dos programas de televisão no Brasil ? caracterizado pelo excesso de apelo ao sexo, à violência e à exposição mais degradante que se pode imaginar de mazelas humanas, como se apenas isso fosse a "realidade da vida" a ser levada ao lares brasileiros. Essas tentativas ? todas fracassadas ? sempre se basearam na simples persuasão, dentro do esforço de convencer os donos das redes e emissoras de televisão a elaborar (e, mais importante, cumprir) um código de conduta e de responsabilidade inerente à exploração de uma concessão pública, vale dizer, o respeito aos valores "éticos e sociais da pessoa e da família" ? para citar textual mandamento constitucional ? bem como a atenção ao direito à informação, ínsito às prerrogativas da cidadania.
E aqui é bom esclarecer que a plena liberdade de expressão, consagrada por um estatuto constitucional, como o nosso, que por motivos históricos repele quaisquer mecanismos de censura prévia, constitui um direito muito mais do cidadão do que dos veículos de comunicação. Nisso copiamos as garantias consignadas na Primeira Emenda da Constituição norte-americana e a interpretação jurisprudencial da Suprema Corte (caso Red Lion, de 1969), segundo a qual o primordial não é o direito de quem transmite a informação (jornalistas, veículos de comunicação), mas, sim, de quem a recebe (leitor, ouvinte, telespectador).
Será possível usar os consagrados princípios da liberdade de expressão e de informação, para justificar uma farsa abjeta, grotesca, como a praticada pelo programa Domingo Legal, sob o comando do apresentador Gugu Liberato, no SBT, em mais do que boa hora suspenso pela Justiça Federal, por meio de decisão liminar da juíza Leila Paiva, da 10.? Vara Cível, confirmada pela desembargadora Ana Maria Pimentel, presidente do Tribunal Regional Federal da 3.? Região? Será possível defender-se, em nome da livre informação transmitida ao público ? pelo que tanto combatemos as censuras das ditaduras ?, um gesto de tamanha desmoralização do jornalismo, da profissão de comunicador e da função dos veículos de comunicação, perante a sociedade?
Na verdade esse episódio, que ultrapassou todos os limites da falta de escrúpulos, na busca alucinada de audiência a qualquer custo ? numa mistura de falso jornalismo com espetáculo de baixo nível ?, tornou-se emblemático porque conseguiu juntar um espectro amplo de figuras delituosas, tais como fraude, falsidade ideológica, estelionato ? para com o telespectador/consumidor ?, apologia do crime na forma de ameaças contra autoridades, o padre Marcelo Rossi e jornalistas de veículos concorrentes, etc. E, diante de tal atentado moral ? este, sim ? à liberdade de expressão e comunicação, fica até derrisório restringir-se a questão à filigrana jurídica de saber se a punição judicial referiu-se à edição do programa Domingo Legal, em que foi apresentada a farsa dos "encapuzados do PCC" ? como reitera a juíza Leila Paiva, que proferiu a sentença de primeira instância ? ou a edições posteriores, o que poderia caracterizar uma "censura prévia" (que é inconstitucional) como opina o ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos.
Em muitas situações das empresas, da Administração pública, e da própria vida, é muito melhor uma decisão discutível ? que propicia correções ? do que a omissão, que nada faz andar. Por isso, o aspecto mais importante do caso em pauta é a própria interferência da Justiça que, finalmente, abre um precedente auspicioso. Se de nada valeram as tentativas de fazer as redes e emissoras de televisão estabelecerem um código de ética consistente, vislumbra-se agora a possibilidade de a Justiça vir a "segurar" a baixaria da TV. A suspensão do Domingo Legal ? independentemente de outras conseqüências judiciais e administrativas que o inominável desrespeito ao telespectador venha a acarretar para o apresentador e o veículo ? já foi uma punição capaz de gerar reais prejuízos financeiros a seus realizadores.
Lembremo-nos de que a pressão mais eficaz contra os programas de baixo nível ? em outros países, nos quais, como no nosso, desfruta-se de plena liberdade de expressão ? é a que afugenta os patrocinadores, que não querem ver seus produtos, suas marcas e suas imagens institucionais comprometidos com práticas que enojam a sociedade. É possível que, graças a medidas como essa, da Justiça ? mesmo que suscitem controvérsias jurídicas ?, a sociedade brasileira comece a merecer mais respeito dos responsáveis pela exploração dessas concessões públicas.