DOMINGO ILEGAL
Ana Lúcia Amaral (*)
Há o ditado segundo o qual "de médico e louco todos temos um pouco". Eu acrescentaria, com base na última edição online deste Observatório, que "de médico, louco e jurista todos temos um pouco". Os textos ali publicados [remissões abaixo] bem demonstram um traço característico dos brasileiros em geral. Somos todos especialistas em tudo!
Muito embora o que se convencionou chamar Direito tenha muito do senso comum, o fato é que, como em qualquer campo do conhecimento humano, tem o Direito um vocabulário com significados próprios. O direito, que engloba normas, valores, interpretações, não pode estar dissociado da base fática que o sustenta e justifica.
A Constituição Federal deveria ser lida por todos os cidadãos, por trazer as regras fundamentais que regem a vida de todos os brasileiros, bem como daqueles que se decidiram por viver neste país.
Todavia, apesar de redigida em português, o que a tornaria compreensível a todos os que dominam o idioma, o fato é que muito do que ali está escrito necessita um bom tanto de outras informações, quando não uma formação específica.
Apesar de ter um significado específico, a expressão "censura prévia" teve utilização equivocada não só neste Observatório, o que seria perfeitamente perdoável, por não serem todos os que aqui se manifestam especialistas em Direito Constitucional. O aspecto positivo está na preocupação com o respeito às normas constitucionais.
E é assim que percebo o artigo do jornalista Alberto Dines, que abria a última edição do OI.
Seu texto sob o título "Tesoura togada ataca outra vez" associa a decisão judicial que suspendeu a exibição do programa televisivo Domingo Legal, por uma semana, com a censura da época do regime militar, os chamados anos de chumbo. O respeitabilíssimo jornalista considerou aquela decisão como um ato de censura prévia.
Ameaças à vida
A classificação daquela decisão judicial como ato de censura prévia talvez tenha sido motivada pelo muito do que se lê e se ouve dos assim denominados "juristas" ? que têm proliferado no Brasil. Não raro alguns advogados, dentre esses os que no período militar fizeram a defesa de presos políticos, e por tal razão, acabaram alçados à condição de paladinos da Justiça, vêm a público bradar expressões que à época significavam protesto político contra os detentores do poder. Ocorre que, de lá para cá, muita coisa mudou. Se àquela época a polícia era usada para prender os opositores do regime então em vigor, hoje não quer dizer que os conduzidos à prisão pela polícia sejam todos presos políticos.
Da mesma forma se, à época da ditadura militar jornais, livros, filmes e programas televisivos tinham seu conteúdo analisado previamente pela polícia censória, que decidia o que poderia ser visto e/ou lido pelos brasileiros, segundo o que poderia representar afronta aos detentores do poder, o que aconteceu com a exibição do programa Domingo Legal no dia 21/9 nada tem a ver com a famigerada censura prévia anteriormente mencionada.
Antes de tudo: há anos lêem-se, ouvem-se críticas à programação televisiva, que se vale da exploração de "atrações" ? sem qualquer custo para que sejam divulgadas ? de péssimo gosto, quando não deletérias de uma sociedade cuja falta de escolaridade é a grande característica. Todavia, quando diante do abuso abominável, decorrente da sabida ausência de qualquer tipo de controle, mesmo que a posteriori, que acabou por violar a lei penal, instituições públicas cuidam de cumprir sua obrigação, surgem as vozes dos arautos da constitucionalidade.
A decisão da juíza federal da 10? Vara Federal da capital paulista, confirmada pela presidente do Tribunal Regional Federal da 3? Região, atendendo, ainda que parcialmente, a pedido do Ministério Público Federal formalizado por meio da competente ação civil pública, talvez possa merecer até críticas, mas não padece do vício de inconstitucionalidade. A decisão pela suspensão de uma apresentação do programa Domingo Legal em nada se assemelha à "censura prévia".
O programa Domingo Legal, de 21/9/03, deixou de ser exibido não em função do que nele seria apresentado em 21/9/03. A não-exibição do programa foi o meio de a Justiça impor alguma sanção àquele ato consistente na veiculação de entrevista com pessoas que se diziam integrantes de grupo criminoso, durante a qual fizeram ameaças à vida e/ou integridade física de pessoas conhecidas do grande público.
"Direito contra direito"
A despeito de ter sido apurado tratar-se de fraude, entretanto tida por verdadeira naquele momento, configurara o crime de ameaça, previsto no art. 147 do Cóoacute;digo Penal. A despeito do que podem ter sentido as pessoas ameaçadas, aquela cena foi levada ao ar em horário de grande audiência, da qual parcela expressiva é composta por crianças e adolescentes. Esses telespectadores, cuja personalidade e caráter são mais suscetíveis a manifestações de infração à lei, mormente quando o veículo tende a tudo "glamourizar", ficaram submetidos à sua incidência e influência. Os supostos integrantes do PCC, ao exibirem o seu arrojo, ao conseguirem minutos caríssimos da TV para veicular a sua ameaça a pessoas de projeção no cenário político e midiático em geral, podem ter feito crer àqueles telespectadores que o crime seria o meio para se afirmarem perante a sociedade, vez que "aparecer na televisão" para muitos significa ser importante, ter sucesso.
Durante os minutos de duração da falsa entrevista, além do crime de ameaça, a exibição daquelas falas poderia configurar o crime de apologia de crime ou de criminoso (art. 287 do CP), que se insere nos rol dos delitos contra a paz pública, por dar publicidade, ou seja, ser percebida por número indeterminado de pessoas. Aquela entrevista, todavia, por ter se dado em programa televisivo, como se fosse uma reportagem, de responsabilidade da equipe e do apresentador do referido programa, configura delito punido pela Lei de Imprensa (art. 19, ? 2?, Lei n? 5.250/67), por configurar um dos tipos de "abuso no exercício da Liberdade de Manifestação do Pensamento e Informação", que aquela lei busca coibir.
Apurando-se ao depois que se tratava de uma fraude, cujo único objetivo parece ter sido o mero "sensacionalismo", sem qualquer conteúdo informativo e/ou formativo, mas tão somente para manter índice de audiência maior do que o concorrente no mesmo horário. É do conhecimento geral que a violência, a criminalidade organizada, ao lado do desemprego, são os grandes problemas que mais aterrorizam a população. A aparente audácia dos "entrevistados" manteve a audiência em estado de pasmo e medo, presa àquela emissora, podendo fazer todo tipo de ilação. Afinal, tratava-se de facção criminosa se valendo do horário televisivo para exibir a sua força, o seu desprezo pelos poderes públicos, o seu poder.
Alegar que tais programas não causam qualquer dano aos espectadores, ainda mais aos mais jovens, é negar anos de pesquisas e conclusões de estudos sobre os efeitos nefastos de programação cuja linguagem é a violência.
Entretanto, mesmo diante de tamanha gravidade, logo surgem aqueles que repetem princípios constitucionais como se fossem mantra, tentando reconhecer algum direito à emissora de TV e ao seu apresentador. Sim, estão reconhecendo direito àquele tipo de programação sob o falacioso argumento do direito à liberdade de expressão e informação. Tanto teriam direito àquele tipo de programa que seria inconstitucional a sua não-exibição. Se for considerada inconstitucional a proibição de sua exibição, passaria aquele programa a ser perfeitamente legítimo, pois não existe direito contra direito. Vale dizer: ou a decisão judicial é inconstitucional e aquele tipo de programa, com entrevistas forjadas dando notoriedade à conduta criminosa, seria legítimo, lícito, constitucional, ou é exatamente o contrário.
Mau uso
O programa Domingo Legal de 21/9/03 não foi impedido de ser levado ao ar por força do que seria exibido durante o seu horário naquele dia. A sua não-exibição foi parte da sanção que o Ministério Público Federal requereu fosse aplicada diante dos danos causados à população, que assistiu indefesa àquela abominável "entrevista", fosse ela verdadeira ou falsa. Logo, levantam-se os arautos da constitucionalidade: a pena foi aplicada antes da condenação, e sem o devido processo legal.
Princípios constitucionais não são mantras. A sanção requerida e concedida, em parte, pela juíza da 10? Vara Federal aceitou as razões do MPF que, considerando todos os direitos consagrados em tratados e convenções internacionais, além de dispositivos constitucionais, entendeu que aquele programa, ao exibir a falsa entrevista, causou danos à população que tenha assistido ou não àquele programa, vez que repercutiu para além de seu horário de exibição.
Embora seja vedada a censura prévia (? 2? do art. 220 da CF), o mesmo texto constitucional deixa claro que a liberdade de informação jornalística deve respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos expressos nos incisos III, IV, V, VI, IX e X do art. 5?. No mesmo art. 220 está prevista a possibilidade de as pessoas, as famílias defenderem-se dos programas que violem o que prevê o art. 221, que define os princípios orientadores da produção e programação das emissoras de televisão e de rádio, destacados os respeitantes às finalidades educativas, culturais e informativas ao lado do respeito dos valores éticos e sociais da família e da pessoa.
A Constituição Federal se harmoniza com documentos internacionais que o Estado brasileiro subscreveu. Assim é que, conforme preceitua o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, o denominado Pacto de São José da Costa Rica, o exercício do direito à liberdade de pensamento e expressão, embora não possa estar sujeito à censura prévia, estará sujeito a responsabilidades ulteriores que se façam necessárias para assegurar a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. Esse mesmo documento prevê a possibilidade de certos espetáculos públicos submeterem-se a censura prévia com o objetivo de regular o acesso a eles, sempre visando a proteção moral da infância e da adolescência, razão pela qual necessário o conhecimento do conteúdo de certos programas para definir a faixa etária que poderá ter acesso a eles.
Diversamente, pois, da afirmação de Alberto Dines, em seu artigo, a liberdade de expressão, como direito, não pode se sobrepor a outros direitos, violar outros direitos, pois, repita-se, não há direito contra direito. Observe-se que o exemplo invocado, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, a respeito de publicação gaúcha sobre o holocausto dos judeus, serve para demonstrar exatamente o contrário: a liberdade de expressão não se sobrepõe aos demais direitos constitucionalmente garantidos.
Os críticos da decisão judicial ora comentada também não atentaram para o fato de que a emissora de TV, o SBT, tem a concessão de um serviço público (art. 223 da CF). Ou seja, devem prestar um serviço público. Estão mal usando essa concessão, de sorte que a cassação seria a medida correta.
Proposta ignorada
É de se lamentar que a iniciativa do Ministério Público Federal, em cumprimento aos comandos constitucionais que descrevem as suas funções, e a decisão judicial, que lhe deu parcial provimento, tenham sido tão mal-interpretadas, exatamente quando se mostra possível algum tipo de reação contra a tão criticada baixaria na TV.
Foi observado, anteriormente, que a decisão judicial não é inconstitucional, embora pudesse merecer algumas críticas. E a crítica que se poderia fazer volta-se contra a leve sanção: somente um programa. Se atendido o pedido original do MPF, suspendendo por um mês o referido programa, seria aberta à população, que normalmente o assiste, a possibilidade de descobrir outras formas de lazer, de entretenimento para a família. Talvez pais brincassem com filhos; filhos adultos conversassem com os pais idosos, que carentes de outras atenções têm na televisão o seu único lazer. Lembre-se, ainda, das pessoas enfermas, as com dificuldade de locomoção que só têm na televisão o entretenimento sem maiores ônus.
Será que essas pessoas não merecem mais que baixaria que nada custa ao dono da TV? Será que a população de baixa renda terá que continuar refém da vã esperança de melhorar um pouco de vida graças a baús e seus cassinos televisivos? Será que a população de baixa renda nada mais merece do que continuar enriquecendo o dono da emissora e seu apresentador, só porque algum tempo atrás, quando, por adularem o regime militar ? lembram-se da Semana do Presidente? ?, foram premiados com concessões de emissoras de rádio e de TV?
Cumpre lembrar que, antes da propositura da ação civil pública, o MPF chamou a direção da emissora para lhe dar a oportunidade de reparar os efeitos danosos perpetrados por seu programa contra sua audiência, o que poderia se dar se aceitassem o termo de ajuste de conduta, comprometendo-se a produzir programação em prol de seus telespectadores, propiciando-lhes entretenimento educativo, respeitando seus valores, sua dignidade. Entretanto, sentindo-se acima do bem e do mal, ignoraram solenemente a proposta do MPF. Ao se recusarem, evidenciaram, mais uma vez, o seu desprezo pelo público espectador. Enriqueceram graças àquela programação, sem maiores investimentos, por que mudar? Não consideraram, por outro lado, que detêm a concessão de um serviço público.
População desrespeitada
Em outro artigo, integrante da mesma edição do OI (n? 243, de 24/9/03), o jornalista Nelson Hoineff considerou a força destrutiva de tais programas ? todos tão iguais, ao afetar a capacidade crítica do espectador. Quem sabe se alguma emissora se arriscasse a ser criativa essa mesmice medíocre não soçobraria? Porém, se a emissora levou ao ar, no lugar do seu Domingo Legal, um enlatado tão ruim quanto o programa substituído, a magistrada que decidiu pela suspensão da exibição daquele programa não pode ser responsabilizada por mais essa manifestação de desprezo pelo telespectador.
O mesmo jornalista ataca aquela decisão judicial por nada ter sido feito em relação às chamadas pegadinhas. Não é correto comparar as ditas pegadinhas com a fraude perpetrada. Há muito os telespectadores já sabem que aquelas são meras "armações" da produção do programa, já tendo perdido a capacidade de enganar a audiêecirc;ncia. As medíocres pegadinhas não atingiram o grau de "requinte" de ofensa contida na farsa da entrevista com os integrantes do PCC. Seguindo o raciocínio do referido jornalista, não se deveria punir os grandes desvios de recursos públicos porque, no passado, houve os pequenos desvios que não foram igualmente punidos.
Ao que parece, pouco conta a população desrespeitada, e não é só para a os mentores do Domingo Legal. Àqueles ciosos do seu direito à "liberdade de expressão", também.
(*) Procuradora regional da República e associada do IEDC