Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

À procura de um novo modelo

CRISE NA MÍDIA

Carlos Alberto de Almeida (*)


Exposição apresentada no Seminário "A ética na TV e o controle social da mídia", promovido pela Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara Federal, Brasília, 16/12/2003; título e intertítulos da Redação do OI; título original "Ajudar as empresas de comunicação endividadas ou construir outro modelo de comunicação?"


Na democracia brasileira, o povo sempre esteve em jogo. Nunca no jogo. ? Jésus Rocha

Em primeiríssimo lugar quero hipotecar a irrestrita solidariedade do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal a este grande brasileiro, o Dr Carlos Lessa, que à frente do BNDES vem sendo alvo de alguns segmentos da mídia brasileira, justamente pelo fato de conduzir aquela instituição com o mais elevado espírito de brasilidade, de soberania nacional e de recuperação e fortalecimento do papel do Estado, enfrentando com destemor e lucidez as pressões das forças interessadas em dar continuidade ao desmonte do setor público, abrindo passagem para uma completa internacionalização da nossa economia, cuja PIB, em 70 por cento, encontram-se já, perigosamente, nas mãos de não residentes no País.

Esta é a segunda vez no ano que tenho a satisfação de comparecer ao plenário Comissão de Comunicação, Ciência e Tecnologia da Câmara Federal e é sintomático que, nos dois casos, fosse para debater a crise do setor da comunicação. No primeiro semestre, nosso debate foi em busca de soluções para a crise da TV Cultura de São Paulo, uma emissora de altíssima qualidade e rigorosamente sintonizada com as disposições constitucionais para a comunicação social, reiteradamente premiada internacionalmente, e que se vê no constrangimento de apagar imagens de arquivo, um tesouro, dada à falta de recursos para compra das indispensáveis fitas. Daquela vez, além de apontar o desmonte do estado como elemento central na crise da TV Cultura, como também na educação pública, na saúde, nos transportes, na segurança, lembramos o grande dispêndio de recursos públicos prioritária e crescentemente direcionados ao setor financeiro. A responsabilidade por este crime contra a população deve ser debitada na conta das autoridades que sustentam as políticas neoliberais.

No painel deste Seminário, onde examinamos os parâmetros éticos para a aplicação de recursos públicos nas empresas de comunicação, temos o mesmo pano de fundo da oportunidade anterior. Os efeitos do neoliberalismo são tão devastadores que até mesmo os segmentos da mídia que mais sustentaram editorialmente suas supostas vantagens, como a provar o retumbante erro político-editorial em que incorreram, estão pateticamente batendo às portas do Estado que tanto agrediram para escaparem da crise financeira que os afeta mortalmente.

Obrigação de todos

Não deixa de ser altamente ilustrativa e instrutiva a leitura de editoriais dos jornais mais tradicionais, e mais endividados, atacando a selvageria estatizante do presidente Carlos Lessa quando o BNDES atua com a responsabilidade indispensável para recuperar o controle acionário sobre a Vale do Rio Doce, doada de forma fraudulenta a operadores externos, e, num outro dia, ler, no mesmo diário, uma defesa editorial de que realmente o banco público, com recursos do FAT, dos trabalhadores, deve sim ajudar as empresas endividadas sim, mas que controlam de modo oligopolizado o setor de mídia.

Portanto, o que se constata é que a mídia que fez a trilha sonora da privataria confessa publicamente que precisa da ajuda do Estado, mas se recusa reconhecer, por experiência própria, que o mercado, endeusado e apresentado com a solução mágica para todos os problemas da civilização, não foi uma opção válida para a indústria da mídia, apenas agravou a elevadíssima concentração do setor e de sua histórica e crônica dependência dos recursos públicos. As recomendações e as defesas muitas vezes antijornalísticas que segmentos da mídia fazem em seus editoriais, não são aplicados em casa. Pura pirotecnia!

Assim, as questões chaves neste painel são: há realmente garantias de que critérios e contrapartidas sejam suficientes para justificar a ajuda com recursos do FAT à mídia que, aliás, apregoa a demolição da legislação trabalhista, e que esta seja bem utilizada?

Ou não seria este o momento histórico ? governo novo, com um presidente que foi vítima em toda a sua trajetória desta mesma mídia sempre munida de recursos públicos para uma linha editorial antidemocrática e violadora da Constituição ? para se lançar o debate sobre a necessidade de um novo modelo de comunicação social no Brasil?

Para responder, registre-se que além de suas dívidas financeiras, a mídia carrega consigo uma gigantesca dívida informativo-cultural para com o povo brasileiro. Um povo proibido economicamente de ler jornal, cuja tiragem de todos os diários, somada, não atinge a casa dos 7 milhões de exemplares apenas! Num país carente de bibliotecas, onde os livros são objetos de luxo, e onde, segundo o Ministério da Cultura, menos de 8 por cento dos brasileiros têm acesso ao cinema ? analfabetismo cinematográfico ? a mídia eletrônica deveria ser um grande instrumento estratégico para saldar esta monstruosa dívida informativo-cultural.

O que ocorre é o contrário. Sustentados por recursos públicos, estes segmentos da mídia vêm praticando um insultante processo de embrutecimento do nosso povo, torturando-o com programas inspirados e ambientados no culto à violência, sendo que alguns são verdadeiras escolas sobre a criminalidade em linha direta com uma realidade apavorante de um país com um dos mais altos índices de homicídios do mundo, 93% dos quais impunes. A mídia realimenta esta espiral de sangue que corre em vão, especialmente de brasileiros pobres, insultando-os e pedindo que a pena de morte que já existe na prática, via grupos de extermínio, seja legalizada. São estes os que pedem dinheiro público!

Ainda para responder as questões colocadas, vale citar que nos relatórios da Campanha contra a Baixaria na Mídia, que tem abrigo nesta Casa Legislativa, boa parte dos que descumprem as normas constitucionais e que espalham uma comunicação degradante e pré-civilizatória são exatamente as empresas endividadas interessadas no socorro do Estado, que não pode permitir que a legislação seja descumprida como é e sempre foi pelo setor. Acaso há alguma emissora estatal, pública ou universitária praticando este tipo de barbarismo audiovisual? Não. E é o setor de comunicação nas mãos do poder público o que menos recursos recebe, muito embora pratiquem uma comunicação com sintonia constitucional.

Circula pela internet um documento do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação admitindo a ajuda às empresas endividadas mediante observância a certos critérios e contrapartidas. É surpreendente constatar que entre as contrapartidas colocadas pelo Fórum estão a observância da Constituição, o cumprimento rigoroso da legislação trabalhista, o respeito ao fisco etc. Ora, isto não é, absolutamente, contrapartida! Cumprir a Constituição, as leis e as exigências fiscais são obrigações de todos os brasileiros!

Recursos públicos

Como sabemos, vários expedientes são utilizados para burlar a proibição de monopólio e oligopólio no setor de comunicação, como também seriam para burlar contrapartidas e eventuais critérios para a ajuda financeira solicitada pelos grandes empresários endividados. No mesmo modo como também é público e notório que, desde o seu surgimento, a televisão brasileira possui crônica relação de dependência frente ao estado. A defesa dos valores da eficiência empresarial, da livre concorrência, da independência do Estado, da superioridade do mercado, jamais foi assumida pra si e nem praticada por amplos segmentos da grande mídia brasileira.

Para os que com candura acreditam que se possa firmar um pacto fiador de uma conversão da mídia aos dispositivos constitucionais e às exigências vigentes para as demais empresas, de outros ramos, basta lembrar alguns episódios recentes.

1. O governo federal suspendeu em maio passado a Portaria Interministerial 568, datada de 1980, que obrigava as emissoras comerciais a destinação de 5 horas semanais para programação educacional gratuita. Agora, bastam 5 minutos por dia, 35 minutos semanais, o que dá uma idéia prática da disposição e da vontade do governo e da mídia de garantirem aos brasileiros uma programação educativa;

2. Para a cobertura dos Jogos Pan-Americanos de Santo Domingo, a maior rede de televisão do Brasil recebeu da Caixa Econômica Federal um total de 2 milhões 468 mil reais e da Empresa de Correios, mais 2 milhões e 400 reais. Estamos citando apenas duas empresas estatais e um único evento desportivo.

3. Na gestão anterior do BNDES, na era FHC, foi feito um aporte de capitais no valor de 268 milhões de reais para uma empresa de tv paga. Ou seja, dinheiro do FAT, dos trabalhadores, para sustentar uma televisão de ricos e classe média alta, com menos de 3,5 milhões de assinaturas, em crise crônica porque este é um país com maioria pobre. Além disso, a programação deste serviço de tv paga é majoritariamente estrangeira, veiculando predominantemente valores anti-nacionais. Ou seja, completamente indefensável num país em que se alega falta de recursos para a merenda escolar e para a construção de estradas e escolas.

4. da negociação para a aprovação da PEC que abriu o setor de comunicação ao capital estrangeiro, mencionava-se a inadiável entrada de recursos para o setor. Não vieram. O setor continua em crise. E a instalação do Conselho de Comunicação Social, amputado de poderes, não ofereceu até o momento qualquer alteração de fato, sequer uma fiscalização sobre a programação ilegal e degradante foi feita, como faz a Comissão de Acompanhamento da Mídia, da Câmara dos Deputados.

5. Nunca é demais relembrar que o aporte de recursos públicos a setores da mídia é sistemático e tradicional, e sempre houve, tendo como "contrapartida" o descumprimento da legislação mais básica. Relembremos a crise da extinta TV Tupi, até hoje sem pagar seus credores, entre os quais milhares de trabalhadores. Ou o caso da TV Manchete, a quem se tolerou o não recolhimento do FGTS, das taxas do INSS etc. Ou o crédito de 35 milhões para a construção do Projac no Rio de Janeiro, ou os 257 milhões de reais para uso subsidiado, durante anos, do satélite da Embratel, quando era estatal.

6. Para não nos fixarmos apenas no passado, tomemos o presente. Só a Caixa Econômica Federal estima destinar à Rede Globo, 16 milhões de reais em 2003. Mas a CEF, para a TVE, vai destinar, no mesmo período, apenas 70 mil reais, a mesma quantia para a TV Cultura de São Paulo e apenas 20 mil reais para a TV Nacional, pertencente à Radiobrás. Fato curioso: apenas um dos canais da tv paga, o Telecine, inacessível às esmagadora maioria dos brasileiros, receberá no ano, 48 mil reais para exibir filmes estrangeiros. Dura realidade num país que no ano passado gastou 500 milhões de dólares na compra de produção audiovisual estrangeira, quando o cinema brasileiro pena para encontrar recursos para seu fortalecimento indispensável se queremos ter um projeto de nação. Mais surpreendente ainda é que uma revista que cuida exclusivamente de TV paga, a Pay-TV, deve receber este ano 260 mil reais em patrocínio da Caixa Econômica Federal, isto é, muito mais que o volume de recursos públicos destinados para a TVE, a TV Cultura e a TV Nacional juntas. Enquanto isto, não há registro de qualquer linha de recursos públicos destinados às tvs universitárias ou às emissoras comunitárias.

Autorização legal

Como atender a Constituição que proíbe o monopólio e o oligopólio na comunicação social se os patrocínios mais volumosos destinam-se preferencialmente a reforçar as posições dos segmentos de mídia que operam com esta característica num mercado altamente concentrado?

Bem sabemos que o setor empresarial protestará contra a idéia de que uma maneira de desmontar o perfil oligopólico da comunicação brasileira seja a destinação mais equilibrada de recursos para os diversos ramos da comunicação, atendendo às emissoras públicas, estatais, universitárias e comunitárias, que permanecem desprezadas, o que inviabiliza uma democracia plena, pois a sociedade permanece refém do poderio dos que controlam a opinião pública. Claro, as grandes empresas de mídia querem reserva de acesso aos recursos públicos para si exclusivamente.

Entretanto, podemos afirmar que em mais de meio século de tv brasileira a generosidade do Estado para com estes mesmos grupos, os favoritismos creditícios, as isenções fiscais de todo tipo, deram como resultado uma sistemática ineficiência financeira, o que serve de alerta para que não se coloquem novamente recursos públicos em situações de risco e que a oportunidade seja aproveitada para uma mudança de fundo no modelo de comunicação social no Brasil.

Assim, a única garantia de que recursos do FAT não sejam novamente utilizados em projetos aventureiros e indefensáveis como a de tv paga que exclui a maioria dos contribuintes, é a de que o BNDES, em primeiro lugar reoriente a aplicação de seus recursos, fortalecendo a soberania nacional ante um sinistro processo de internacionalização da mídia em conluio com a voracidade militar dos países hegemônicos do mundo hoje.

Seria dar continuidade às linhas de ação que o BNDES vem aplicando para recuperar soberania nacional nos setores elétrico e mineral, no que haveria também sintonia com a novo modelo elétrico lançado pelo Governo Federal.

A prioridade é a utilização de recursos para o cumprimento da Constituição que preconiza a complementaridade entre a comunicação pública, estatal e privada, o que necessita de tradução orçamentária.

Evidentemente, a mídia comercial endividada pode e deve buscar uma solução de mercado para seus males, aliás, é a recomendação que veicula aos telespectadores, o que nos permite imaginar que até acredita nela. Já as emissoras nas mãos do poder público não possuem autorização legal para recorrerem a esta opção mercadológica, Além do mais têm outra destinação e finalidade, pelo o que têm direito a receber os recursos públicos hoje praticamente negados.

Escola de cidadania

O equilíbrio entre a comunicação pública e a privada, a exemplo do que existe na Austrália, com forte presença das emissoras públicas, é o caminho a ser considerado pelo BNDES. Por que não podemos ter no Brasil uma Radiobrás fortalecida, com suas emissoras de televisão bem equipadas, com profissionais qualificados e bem remunerados, atuando tanto na área da tele-dramaturgia como na cobertura dos desfiles das Escolas de Samba e do futebol? Por que estes segmentos de programação têm que ser reservados como privilégio da mídia comercial, embora sustentada, como vimos, por recursos públicos? Por que não podemos ter nas emissoras nas mãos do poder público uma teledramaturgia dirigida , por exemplo, pelo talento de um Ariano Suassuna, mas emissoras com capacidade e força suficiente para disputar pra valer a audiência?

Portanto, em primeiro lugar, a prioridade para a atuação do BNDES num setor cronicamente em crise, visando a soberania audiovisual e o não desperdício de recursos públicos em alternativas já fracassadas, é o apoio da instituição ao fortalecimento da mídia estatal, pública, universitária, comunitária, cooperativa e regional, apoiando a produção audiovisual nacional, expandindo o mercado de trabalho, dinamizando a indústria de equipamentos, desconcentrando e regionalizando a produção jornalística, artística e cultural, como diz a Constituição.

Por fim, a única contrapartida realmente capaz de garantir que os recursos públicos não sejam usados em vão num setor em crise sistêmica, é que o BNDES , a quem se solicita ajuda financeira, possa também assumir parte do controle acionário das empresas a serem ajudadas. Se os recursos públicos são indispensáveis para solução financeira, também é essencial a participação parcial do Estado, zelando para que estes recursos não sejam aplicados sem observância à legislação e ao direito do cidadão à informação de qualidade. O que evidentemente, implicaria numa rigorosa alteração dos conteúdos da programação que passaria a atender objetivos muito mais nobres e inadiáveis do que a este deletério e degradante "vale-tudo" pela audiência. Através deste, submetem-se os brasileiros a uma tortura audiovisual que os impede a elevação como seres humanos, seu progresso, informativo, cultural e educacional, desagregando a nacionalidade e a auto-estima, com o que se prepara, posteriormente, o controle não somente da opinião pública, mas de todas as riquezas, dos territórios, da biodiversidade, etc. Basta verificar a campanha da Monsanto visando controlar a agricultura brasileira que contém aspectos que afrontam as normas elementares de saúde pública.

Parafraseando o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em brilhante artigo intitulado "Por uma política cultural eficaz", a indústria da mídia deve ter sintonia com os mais elevados valores da nacionalidade, a identidade e a soberania entre elas. É isto que as nações hegemônicas fazem para submeter os países da periferia. Estas são questões estratégicas por demais elevadas e nobres para estarem nas mãos de um de setor de mercado que sequer prova a sua própria capacidade de ser eficiente. E que, pior ainda, veicula sistematicamente os valores das nações hegemônicas, suas políticas de recolonização moderna e trágica e uma linha de destruição da auto-estima popular e nacional, de desinformação e aprisionamento de consciências, uma espécie de "senzala eletrônica". Ou, na expressão do Prof. Bautista Vidal, uma "tirania vídeo-financeira".

O mercado oligopolizado jamais ofereceu soluções para saldar a dívida informativo-cultural que o Brasil tem para com o seu povo. É hora de construir um outro modelo de comunicação, com uma maior e mais qualificada presença do poder público no setor, experiência bem sucedida que podemos captar de outros países que sempre consideraram a mídia uma escola de cidadania, com responsabilidade social, e não um negócio com outro qualquer.

(*) Diretor do Sindicato dos Jornalistas de Brasília e presidente da TV Comunitária de Brasília