Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Propaganda de cerveja não desce redondo

ESTAGNAÇÃO CRIATIVA

José Carlos Aragão (*)

Não foi um dia desses que os publicitários estiveram em Brasília, no Ministério da Justiça e no Congresso Nacional, levando propostas de auto-regulamentação da publicidade de bebidas alcoólicas? Não falaram que acabariam com um monte de coisas nos comerciais, como apelos de caráter erótico ou que pudessem despertar precocemente o gosto pelo álcool entre crianças e jovens?

Pois é: parece que foi ontem. E tudo continua como dantes. Ou quase tudo. É o que se constata, vendo os mais recentes filmes comerciais das principais marcas de cerveja em exibição em nossas TVs.

Primeiro que o tal apelo erótico (entenda-se: mulheres em trajes sumários exibindo corpos esculturais) ainda corre solto como tema preferencial de quem cria os comerciais ? ou de quem consome cerveja, talvez.

Rememoremos:

O que existe em abundância na "Ilha Quadrada", além da "cerveja quadrada"? Mulher gostosa, de biquíni ? mesmo a ilha sendo "quadrada". E quando a imagem corta para a ilha presumivelmente "redonda"? Mais mulher gostosa, de biquíni. Só mudam a música, a coreografia e o contra-plongée [tomada de baixo para cima], que mostra as mulheres em ângulos que as fazem mais pernudas, peitudas e popozudas.

Tempos outros

Próximo break. Entra o comercial da outra cerveja, que nos convida a experimentar uma estranha e inexplicável coreografia de massa, praticada com os membros superiores erguidos. Será que é também para se contrapor ao minueto que se dança na "Ilha Quadrada" ou é apenas é avant-première de alguma daquelas inovações anuais dos blocos baianos para o carnaval vindouro? Não importa: o que também não falta no filme é mulher gostosa, de biquíni.

Outro break, outra cerveja. (Será a "quadrada"?) Ouve-se uma voz conhecida em todo o mundo descrevendo as belezas do verão brasileiro ? praia, sol, calor ?, onde não poderia faltar a decantada beleza da mulher brasileira. E tome mais mulher gostosa, de biquíni.

(E, antes que pensem que eu não gosto de mulher, recomendo que perguntem à minha o que ela pensa a meu respeito.)

Mas o que eu não gosto mesmo é de cerveja. E de propaganda sem criatividade. E de empulhação.

Como publicitário, não preciso gostar do produto para "vendê-lo". Profissionalmente, dá pra se tirar isso de letra. Complicado é entender por que, no Brasil, de uns tempos pra cá, cerveja e mulher são esse casal de periquitinhos.

Pra quem não se lembra, não foi sempre assim. O recall de um comercial de cerveja estrelado por Adoniran Barbosa, há cerca de 30 anos, por exemplo, é tão forte que acabou de ser reciclado para uma campanha atual da mesma marca! E não tinha mulher gostosa, de biquíni ? que os tempos eram outros, de repressão braba…

Continuo não gostando

Insisto em que talvez falte aos nossos criativos hodiernos o jogo de cintura que tinham os de antanho, pra driblarem a censura e as limitações tecnológicas e de costumes da época. Dessa forma, talvez sem se darem conta, insistem na comodidade de repetir uma fórmula fácil, nada original e quase entediante, que beira a saturação. Afinal, o que não nos falta é mulher gostosa, de biquíni (e, em alguns casos, peladonas), em novelas, minisséries, filmes, shows, telejornais, big brothers e até comerciais de xampu. (Sem falar nas nossas praias, claro.) O resto são uns efeitos digitais na edição aqui, outros ali…

Quanto às demais propostas de auto-regulamentação levadas a Brasília, parece que a perniciosa influência de tartarugas e siris sobre nossas crianças e jovens foi momentaneamente afastada. Resta saber se o "Fenômeno" Ronaldo não entrou em campo exatamente para substituir os pândegos quelônios e crustáceos nessa perversa função.

Assim ? me pergunto ? o que terá sido, então, aquilo que aconteceu em Brasília e foi noticiado, com destaque, em nossos telejornais em época recente? Encenação? Embromação? Ou estratégia de marketing, para evitar que o próprio Congresso tomasse a frente na regulamentação da propaganda de bebidas alcoólicas, e acabasse por impor restrições mais duras que as apresentadas, e que poderiam contrariar interesses específicos de quem investe polpudas verbas publicitárias em nossas redes de televisão e em outras mídias no país?

Por essas e por outras, continuo não gostando de cerveja. Nem de seus comerciais de TV. Nem de sentir que estão subestimando minha percepção, meu senso crítico ou a minha inteligência.

(*) Jornalista e publicitário, Belo Horizonte