Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Pés molhados sob as meias

CASO JOELMIR

Lázaro Magalhães (*)

A resposta de Joelmir Beting não poderia ser pior. Sobre a suspensão recente de sua coluna nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo ? por ter ligado sua imagem a uma peça publicitária do Bradesco ?, o analista econômico disparou: "(…) Se o jornalismo se envergonha da publicidade ? que trate de sobreviver sem ela." Betting ainda emendou mais: "Não me parece nada ético cuspir no prato em que se come. Quem mistura jornalismo com publicidade, sem distinguir uma coisa da outra, são precisamente os que aprovam acriticamente o banimento de minha coluna de O Globo e O Estado ? com a claque dos que tomam por ética da profissão o que não passa da estética do jornalismo (…)"

O que Beting parece não ter percebido ainda é que, justamente por ter ligado sua imagem à de um grande grupo financeiro, acabou entrando na mesma seara daqueles que, em sua opinião, confundem jornalismo e publicidade. Como ele poderia vender a partir de então seu produto, segundo ele isento, limpo (atenção a esta palavra) e de qualidade, se o principal objetivo da peça publicitária do Bradesco é justamente emprestar a imagem sólida de Beting a uma empresa? Pergunte à agência que bolou a campanha.

Ou seja, deliberadamente, o objetivo da peça publicitária é misturar as imagens, embaçar limites ou possíveis interseções de credibilidade e competência. Beting pode argumentar que ainda assim, após receber o cachê, poderia ter autonomia para falar mal do Bradesco em futuro suposto ? caso achasse necessário. Mas o estrago está feito na cabeça da audiência mais atenta, tanto quanto na da mais desatenta.

Estranha lógica

O observador mais atento verá nas entrelinhas o jogo de confusões e ilusionismo a que se propõe a peça publicitária ? e poderá pensar ainda: como este homem pode falar de mercado financeiro ganhando dinheiro do Bradesco? Estará mesmo ele isento? Já o desatento, por sua vez, não perguntará nada e absorverá a mensagem como ela quis ser colocada pela agência publicitária. Beting pode mesmo não ter feito isto de propósito. Mas deveria ter pensado no que resultaria. Beting, a meu ver, ou é um ingênuo ou realmente compactua com os ilusionistas.

É óbvio que a grande imprensa depende (ainda) da publicidade. E esta interdependência, que fique claro, pode ser saudável, sim. No entanto, seja na página de jornal, seja na tela de TV, no monitor ou no rádio, o que o público mais deseja mais é limpeza, clareza, e menos embaçamento, névoa, confusão e ilusionismo, como dizíamos.

Como leitor, tenho satisfação em saber que o conteúdo publicitário de uma área centimetrada do anúncio está ali, represado completamente muma página ímpar inteira, ou por um fio-limite identificável por todos. Daqui para cá eu quero ser persuadido pela propaganda, e me permito a isto. De lá até aqui ? sim, até aqui ?, eu quero a crítica isenta, a verdade, o esclarecimento, os fatos bem pesados e apurados, os dois lados das questões.

Nada pior que ler uma matéria que deriva de uma campanha que você sabe que foi paga ? ou que resulta de uma vantagem política proporcionada pela propriedade de um veículo de comunicação. Ali, no espaço da isenção e do equilíbrio, o leitor, o ouvinte ou o espectador se encontra com os pés encharcados de propaganda. O José Serra no Jô Soares e na capa da Época no mesmo mês é algo gritante. Tanto quanto a contínua propaganda política da família Barbalho no jornal Diário do Pará. Nada mais irritante do que pés molhados sob as meias, para quem sabe disso.

No Pará, como em poucos lugares do Brasil, pratica-se uma lógica (?) de relacionamento entre anunciantes e veículos mais do que estranha. Salvo em raríssimas ocasiões, o grande anunciante nunca verá uma matéria publicada que lhe seja desfavorável.

Mais lucrativo

Lembro certa vez em que, integrando equipe de reportagem em O Liberal na década de 90, produzimos matéria em que a Terraplena era exposta pelo fato de "quarteirizar" seus serviços ? já terceirizados pela prefeitura ? de recolhimento de lixo urbano na Grande Belém. A matéria foi suspensa em troca da promessa de novos anúncios de página, embora antigaris de empreitada ? contratados verbalmente todo início de manhã por caçambeiros irregulares ? pudessem ser flagrados em franco trabalho nas ruas da cidade, sem luvas de proteção, sem botas ou qualquer mínimo benefício trabalhista.

Sabe-se há muito que a grande campanha supostamente em favor do Pará e contra a Vale do Rio Doce levantada pelas Organizações Rômulo Maiorana derivou de um motivo muito forte: um desentendimento sobre valores de dívidas de anúncios. No caso da Vale, a cruzada jornalística veio à tona porque a empresa se recusou teimosamente a concordar com determinado acerto de contas.

Algo muito semelhante é descrito nos livros de biologia e medicina, ao se falar das doenças provenientes de relações em que o parasita mata o hospedeiro. Vamos passo a passo: o problema não são os grandes anunciantes ? muito pelo contrário, já que eles são a solução de nossa condição industrial de massa. O problema são os péssimos grandes anunciantes. E os jornais em Belém não tratam de se livrar desses da maneira como deve ser feita: expondo sempre a verdade.

Ainda não compreendi o que faz um dono de jornal, rádio ou TV acreditar que é mais seguro para seus negócios extrair matérias "perigosas" ? para os anunciantes ? das edições. A outra alternativa, apostar numa imagem sólida de veículo de comunicação que consegue cumprir seu papel de oferecer um produto isento junto ao público, parece bem mais lucrativa, segura e inteligente.

O nome Bradesco

Não é este o fim do jornal e de outros produtos noticiosos? Informação correta, esclarecimento, questionamento, imparcialidade? A meu ver, mercadologicamente, este é um grande atrativo para a conquista de público cativo e anunciantes cada vez mais fiéis ? que desejam ver seus nomes ligados a este veículo. Acredito que a decisão contrária, menos ilógica, só pode estar embasada em medo, o velho grande freio-de-mão da humanidade. Acho também que, se não estivéssemos tão pouco acostumados com o trato da informação, este problema de jornal que omite ou mente já seria certamente um problema corriqueiro de Procon.

Não sejamos ingênuos: o leitor, o ouvinte e o espectador já sabem de nossos rabos presos. E a opinião do leitor sobre a dita imagem de credibilidade parece vir mesmo tomando cada vez mais devida importância até para os veículos.

Diário do Pará e O Liberal, os dois maiores jornais concorrentes em Belém, passaram os últimos meses se bombardeando em peças publicitárias sobre as pesquisas de liderança do Ibope. Por seqüência, ao calor da hora, também desaguaram larga propaganda sobre as suas habilidades de dizer ou não a verdade. Este é um termômetro importante.

Mas, voltemos ao Beting, que disse no início deste texto que aqueles que pediram o fim das suas colunas misturam ética com estética. Ele também parece querer esquecer que a estética, por bem ou por mal, define padrões de credibilidade. Ninguém daria razão a um surfista de bermudas no Jornal Nacional, melhor que fosse sua análise financeira. Tanto se sabe disto que Beting, ao criar sua carreira para o Brasil, na TV Globo, teve de amparar-se em bons cortes de terno, paletó e gravata para falar sobre economia em cadeia nacional.

Este é o jogo estético da subliminaridade. A tez do Betting importa. A cor do terno importa. O tom de voz importa ? tanto mais para a TV. Por que não importaria então saber que atr&aacuteaacute;s das linhas de análise econômica de Beting alguém verá o nome Bradesco?

Contato muito frágil

Esteticamente falando, misturar anúncios a matérias jornalísticas não é bonito. Eticamente, menos ainda. Ajuda a embaralhar o entendimento das coisas, atrapalha o esclarecimento, a leitura. Sobre esta clareza necessária à nossa área de atuação, o comentarista econômico comenta, ácido: "(…) Transparência, eis a questão. Anunciar fundo mútuo, carro zero ou creme dental não faz mal à população. O que, no jornalismo, coloca o povo brasileiro em perigo (e a ética na sarjeta) é o antigo e até festejado merchandising jornalístico de caráter político, partidário, ideológico, cultural, religioso, militante. Isto não é informação. É manipulação. Ou desinformação. De tal gravidade que não está sequer em discussão no jornalismo, o agente, e, muito menos na sociedade, o paciente."

Acho que esta frase diz muito sobre Beting. Primeiramente, porque, se as tais discussões sobre manipulação de informação a que ele se refere não estivessem em curso no Brasil, ele não precisaria retirar sua coluna dos jornais, nem estaríamos falando sobre isto neste site. Confuso, talvez por suas próprias imagens embaralhadas, o ilusionista mistura o bom jornalismo com o mau ? claro, há maus jornalistas assim como há maus médicos e maus economistas. Ele também, como é de praxe para quem constrói um discurso tendencioso, omite fatos, esquecendo que há escolas de comunicação que há anos se debruçam sobre os tecidos da comunicação e seus problemas. Que pensar então de alguém que diz que a mídia é o agente e a sociedade é o paciente? O jornalismo não faz parte da sociedade?

Concordo: a transparência, aqui, realmente é nossa maior questão. O grande problema é que Betting parece ter sua visão própria sobre o assunto. Apesar da mais que óbvia questão ética levantada pelas conseqüências da aliança de sua imagem à de uma empresa financeira, o analista econômico quer colocar, quase que por força, seu caso do lado oposto da margem onde figura o "merchandising jornalístico" (aí vem o ilusionismo de novo).

Beting parece ter mesmo um contato muito frágil com as regras do jornalismo profissional. Aquele que, sim, também comporta muita gente ? não necessariamente saída dos bancos das universidades ? que luta para manter uma ordem de ética e princípios que são as únicas coisas que fazem valer a pena estar no ramo.

Iogurte vencido

Sobre isto, a sua resposta ao Globo e ao Estadão ? incrivelmente, dois jornais que nem representam absolutamente grandes exemplos de jornalismo isento ? traz um trecho ainda mais esclarecedor sobre o que é o jornalismo segundo a cartilha do senhor Joelmir Beting, acima de tudo e de todos, e nas alturas. "Minha relação com cada um dos jornais não é de empregado. É de fornecedor de um produto isolado. Produto tido como de boa qualidade, limpo e isento. Não tenho por contrato seguir normas de redação ou de conduta de nenhum dos jornais signatários (…) Nada me impede de fazer publicidade comercial, propaganda política ou passeata de protesto (…)".

Se notícia, reportagem, crítica literária ou análise econômica são produtos ou não, valeria um outro texto por aqui. A questão, obviamente, não se resume às regras dos jornais A, B ou C. Isto é blefe, apelação ? ou será que Beting não notou mesmo ainda que algumas regras valem para o jornalismo como atividade, e não apenas para cada um de seus veículos?

De qualquer forma, eu particularmente não bebo iogurte com prazo vencido, nem como pão dormido. Também não tenho notícia de que a vigilância sanitária, embora lerda, aprove pelo menos em teoria a venda de queijo estragado ou abobrinha contaminada. Se o Estadão e o Globo não tomassem providências, acho que até mesmo a associação das donas de casa de Minas Gerais mandaria o Joelmir Beting para o Procon: o produto está estragado, a propaganda enganosa, e o grandão não quer devolver o dinheiro que pegou.

Mas que sem-vergonha!

(*) Jornalista, Belém do Pará