MÍDIA & GOVERNO
Claudio Julio Tognolli (*)
É pois de saber que os requebros da cobertura da mídia sobre a profundidade do fenômeno PT não satisfazem. Discrepam, antes de mais nada, quaisquer interpretações clássicas do que seja o Brasil. E levemos em conta aqui os arcanos tão benjaminianos de que uma época, em seus matizes mais sublunares (portanto, inapreensíveis de pronto), dá sinais daquilo que essa época pode estar prenhe. Ok, terão dito: toda a contracultura é pendular, nasce no off broadway. E depois vira objeto de consumo. Não foi Lula assim? Passou de blue collar (no termo fordista tão usado para designar o operário) para white collar ? termo que hoje, infelizmente, dadas as patranhas pontuais da turma da fatiota, significa apenas um sinônimo de crime de colarinho branco.
No mundo das significações, estamos prenhes de um outro barbudo contracultural: que vive também no off broadway, anda em desalinho, em silhueta adelgaçada que lembra esmoleres, e atende pelo nome de João Pedro Stédile. Não capturou a nossa mídia ainda o efeito Orloff da coisa: no mundo da fenomenologia, Lula aparece para José Rainha e dispara: "Veja, eu sou você amanhã".
Na semana passada, laivos bem superficiais desse espírito de época desfilaram encolhidamente nas páginas dos jornais: um dos fundadores do PT, Chico de Oliveira, disse o que pensava a respeito do donaire petista. Eis a notinha do UOL mesclada com a da agência UNB, de 15 de julho:
O sociólogo Francisco de Oliveira, um dos fundadores do PT, disse hoje, durante palestra na 55? Reunião Anual da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), que o ministro Ricardo Berzoini (Previdência) é um imbecil.
Chico Oliveira, como prefere ser chamado, classificou como "débil mental" quem analisa a realidade e pensa em políticas públicas para o país sem considerar que 40% da população vivem abaixo da linha da pobreza. "Para a lógica capitalista radical, parece que os indivíduos escolhem sua opção. Nessa linha de raciocínio, esse conceito de indivíduo nem existe", disse, exemplificando com a proposta de Reforma da Previdência:
"Estão tentando de novo no país ter uma escolha racional estratégica. Será que o Berzoini (ministro da Previdência) é tão sofisticado a esse ponto? Não. Ele é um imbecil. Não dá para pensar em uma medida com projeção daqui a 30 anos com essa sociedade abissal."
Oliveira é professor titular aposentado da Universidade de São Paulo(USP).
Procedem das mesmas grifes que hoje analisam o PT diariamente, nos jornais, análises, até que bastante cadenciosas, que no alto de páginas gritavam ter o PMDB de 15 anos atrás o mesmo futuro do PRI mexicano: dominar o país em mandarinatos que se estenderiam por dilatadas décadas políticas. Erraram feio, que o diga FHC.
O pensamento de Chico Oliveira, cujos livros representavam, nos anos 1980, o à rive gauche fernandista no âmbito da Universidade de São Paulo, deveria ter sido levado mais a sério nas análises da mídia. Não foi.
Ainda se interpreta o PT de hoje como o PT dos anos 1980. E o que a mídia nos prodiga, diariamente, é que tudo vai nos conformes: Lulinha paz e amor fala mal do Bush e dos EUA no Reino Unido, em gritas nas quais se cifram as perpétuas águas que moviam o discurso contestatório e off broadway do PT de 15 anos atrás. O que faltou, então? Faltaram boxes críticos e explicativos de que quem manda no país ainda é o PFL. Como? Bastaria ter perguntado às autoridades judiciais que investigam a ablução monetária de 30 bilhões de dólares, a partir da agência do Banestado de Foz do Iguaçu, sobre os impedimentos e barragens anunciativas que os políticos pefelistas têm imposto, in illo tempore, às investigações que mesmo tangencialmente esbarram nos colarinhos que de fato comandam este país.
Sonho de inverno
Nos anos 1920 tínhamos aquela tão repassada visão de que éramos um país agrário, que vai de Oliveira Vianna, passa por Paulo Duarte, encastela-se nas balaustradas dos Mesquita do Estado de S.Paulo, e chega a Eugênio Gudin. Passamos, no dizer de Bresser Pereira, pela visão "nacional-burguesa", que se instalava nos Cadernos do Nosso Tempo, no Iseb, e no pensamento tardo-marxista de Nelson Werneck Sodré e os quejandos de Roland Corbisier, Cândido Mendes de Almeida etc. Ainda com espectros ideológicos bem definidos pela mídia, chegamos às interpretações do autoritarismo "entreguista" que se fazia de Golbery do Couto e Silva, Roberto Campos (Bob Fields). Passamos pelas críticas de Caio Prado Jr., João Cardoso de Mello. Batemos na teoria da "nova dependência" de FHC et caterva.
E agora? Nossa mídia não dá sinais do que se deva interpretar do PT. Pior: não investiga a ponto de mostrar como os caciques do PFL têm comandado o país (alguém se lembra do discurso de renúncia do ex-senador ACM, cujo ghost writer foi o atual ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos?)
Pensando bem, que se inverta o efeito Orloff: num candente e politonal sonho de inverno, Lula fala outra frase para José Rainha: "Caro José, eu fui você ontem".
(*) Repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor da ECA-USP e do Unifiam (SP), filiado ao International Consortium of Investigative Journalism (ICIJ)