GOVERNO LULA
Luiz Weis (*)
Lide da principal matéria de O Estado de S.Paulo de sexta-feira (22/11):
"Os programas sociais do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva poderão ter um reforço de US$ 6 bilhões a US$ 10 bilhões do Banco Mundial (Bird), anunciou ontem o presidente da instituição, James Wolfensohn. ?O número é esse, mas essa não é a manchete?, brincou. ?A manchete é: há uma mudança na cultura brasileira no combate à pobreza e à fome. Sem isso, US$ 6 bilhões a US$ 10 bilhões são só um curativo?."
Como presidente da maior agência financiadora de projetos de "reconstrução e desenvolvimento" do mundo, o homem até que podia ter não declaradas "razões de Estado" para aconselhar o reportariado que o entrevistava à saída de seu encontro com Lula a dar menos destaque ao tamanho do empréstimo a ser concedido ao futuro governo do que à nova mentalidade a que fez referência.
Mas, querendo ou não, ele mexeu com um problema de nascença do jornalismo: a definição da ordem de importância da multiplicidade de elementos que compõem um "fato" e podem compor uma "notícia"; e da massa de notícias que competem permanentemente por espaço e localização privilegiada em um meio de comunicação.
Essa é uma das tais questões constitutivas da atividade de informar que será debatida até o fim dos tempos nas escolas, redações e instâncias de crítica de mídia como este bicentenário (em número de edições) Observatório da Imprensa. E é também uma questão que, para mal dos pecados, antes se dissolve do que se resolve no plano das formulações mais gerais e abstratas sobre o que é o interesse público e como a imprensa de qualidade deve orientar a atenção do eleitor na direção desse interesse.
Sem querer fazer apologia do empirismo vulgar, como dizia um barbudo pensador alemão do século 19, que, feliz ou infelizmente, já deixou de ser notícia, parece fora de dúvida que quanto mais rarefeita ? mais "acadêmica" ? for essa discussão da importância das coisas que merecem divulgação, menos útil ela será para ajudar a fazer jornalismo que sirva (em todos os sentidos do verbo).
Partindo, então, do aqui e agora, não há dúvida de que Mr. Wolfensohn (cuja propensão para o bom humor pode levar um repórter, como o autor da transcrita notícia do Estadão, a achar que ele está brincando quando só está falando sério) cutucou o nervo de um tema que não está atraíndo tanto quanto deveria o olhar da imprensa brasileira.
Esse tema são as novas atitudes diante dos problemas brasileiros que podem estar sendo gestadas no pré-governo do PT para nascerem em 1? de janeiro ? a "mudança de cultura" para a qual o bom doutor Wolfensohn chamou a atenção dos coleguinhas outro dia. (O assunto, de diferentes ângulos, já entrou neste sítio, no texto "Olhar o passado e corrigir o futuro", de Alberto Dines, e na entrevista de Mauro Malin com o cientista político Bolívar Lamounier, "Mídia e a cobertura do novo governo", ambos na edição 198 ? com remissões abaixo.)
Imaginação jornalística
Corre solta na imprensa, em entrevistas, artigos e editoriais, uma discussão sobre as possíveis semelhanças e diferenças entre o governo Lula e o atual. Essa é uma discussão interessante menos por iluminar o futuro do que por deixar à mostra os desejos, os receios (quando não as tentativas de influenciar o rumo do país) de vários setores da elite nacional e suas prováveis reações se o que vier por aí não bater com o que gostariam.
Embora se ouçam cada vez menos vozes sustentando que a nova gestão estará para esta como o dia para a noite, e cresça o coro dos que prevêem que, se tudo der certo, Lula será "um Fernando Henrique melhorado" ? e olhe lá ?, o fato é que a imprensa está diante de uma questão que lembra o clássico dito de que "a guerra é um assunto muito sério para ficar entregue aos generais".
Pelo seguinte: não havendo a mais remota dúvida de que a eleição de Lula foi um acontecimento extraordinário e de alcance mundial, levar ao prezado público os indícios garimpáveis de como isso se traduzirá em concepções, formas e práticas de governo é uma obrigação que a mídia não pode deixar entregue ao opinionismo dos doutos e partes interessadas, enquanto a apurática se concentra no imediato óbvio (a escalação do time de Lula, o dia-a-dia do presidente eleito, o jogo dos partidos no Congresso em relação ao aumento do salário mínimo, a interlocução de Lula com os governadores novos e reeleitos).
Uma coisa é o urgente, outra é o importante, dizia o pensador inglês (nascido na Rússia) Isaiah Berlin. O jornalismo burocrático, pavloviano, não só ignora essa distinção como parece incapaz de supor que o urgente pode não ser o verdadeiramente importante ? o que exigiria, nessa eventualidade, uma abordagem não rotineira dos fatos e uma hierarquia diferente da convencional entre eles. Em outras palavras, o acionamento, a plena carga, da imaginação jornalística.
Ponto de partida
É onde torna a entrar o presidente do Banco Mundial com a sua heterodoxa sugestão de manchete. Não se está sugerindo, de modo algum, que o título da mencionada matéria de que ele é o principal personagem devesse ser, em vez de "Bird oferece ajuda de até U$ 10 bi a Lula", algo como "Combate à fome tem nova cultura no Brasil", ou mesmo "Bird diz que combate à fome muda no Brasil".
Tudo bem que US$ 10 bilhões (ou mesmo US$ 6 bilhões, o piso da ajuda extra do Banco Mundial) seja uma nota preta e que, além disso, a bolada valha manchete por ser prova do crédito de confiança em Lula da instituição parceira do FMI. Mas o que foi que se fez com a formidável pensata de Wolfensohn, segundo a qual toda essa grana seria "só um curativo" não fosse a tal "mudança na cultura"? Salvo engano, coisa nenhuma.
O noticiário registrou as suas impressões sobre Lula e os homens do presidente eleito com quem tinha acabado de conversar: "Senti que estava lidando com pessoas responsáveis que têm um sonho; para mim, essa é uma combinação genial". Mas ninguém lhe perguntou (ou se perguntou, não saiu uma linha) no que consistia, a seu ver, essa todo-importante mudança cultural, que decerto não há de se resumir à combinação que ele achou genial. E ninguém, muito menos, foi atrás dessa história, a partir do gancho proporcionado pelo risonho interlocutor de Lula, para esmiuçar (e submeter ao crivo da crítica) a suposta mudança manchetável.
O que, por sua vez, serviria de ponto de partida para essa importante matéria (ou pacote de matérias) sobre a provável embocadura da era Lula. Gente como Palocci, Dirceu, Gushiken e seus companheiros do primeiro time petista deviam estar sendo espremidos para falar, substantivamente, sobre o assunto. Se só tivessem abobrinhas para declarar, isso também renderia mercadoria de primeira. E uma senhora manchete.
(*) Jornalista
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? Mauro Malin