Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Quando a comunicação fere e mutila

PRECONCEITO CAMPESINO

Thea Tavares (*)

Amigos de profissão, sacerdócio, vocação ou qualquer um que se dedique a praticar a comunicação social com responsabilidade, mesmo na produção de entretenimento; tenho um apelo a fazer: cuidado com o cultivo ou o reforço a preconceitos difundidos. Faço um convite para ficarmos atentos e refletirmos bem sobre muitas “pregações” em comunicação de massa.

Na sociedade em que a escola é gradativamente desvalorizada, os veículos de comunicação ganham status de material didático e a manipulação das informações passa a ser um dos mais eficazes métodos pedagógicos.

Um dos preconceitos ainda não descritos em lei, mas tão nocivo à dignidade e à auto-estima das pessoas quanto o ódio racial, é a sutil discriminação contra a população do interior, mais concretamente, com os jovens rurais. E é tão arraigado à cultura da gente que as próprias famílias de agricultores, fundamentadas nas dificuldades pertinentes à produção de alimentos em pequenas propriedades no Brasil, pregam aos filhos que saiam das roças e tentem “fazer-se” nas cidades grandes.

As grandes cidades, numa sociedade consumista, posam de locais privilegiados, sinônimos de ascensão social e econômica, fontes de maiores oportunidades e de ganhos materiais. Para quem vive da “lida na roça”, ver a cor do dinheiro colhido com muito sacrifício é um prazer sazonal, que obedece aos caprichos e rigores da ampulheta da mãe natureza.

Além disso, a educação formal que é praticada em sala-de-aula se mostra essencialmente urbana e, ainda nos dias de hoje, contribui para difundir esse conceito ilusório de valorização do modo de vida urbano, em detrimento do rural. É muito raro encontrar, nos livros didáticos, situações, expressões e ilustrações próprias da cultura campesina sem descambar para a ridicularização ou que engrandeçam o ser humano do interior do país.

Se estiver errada, que me corrijam os caipiras Jeca Tatu do Monteiro Lobato, Chico Bento do Maurício de Souza, o Oscarito, o Zacarias de Os Trapalhões, o Nersu da Capitinga e muitos outros ícones da cultura brasileira. Os “tabaréus” e “matutos” da Bahia, os “bugres” de Mato Grosso do Sul, bem como os “colonos” da Região Sul, sintam-se à vontade, também, para opinar sobre o assunto.

Num encontro com jovens rurais que participam do Conselho Municipal da Juventude (quem mais tem esse nível de organização?), lá no Alto Uruguai Catarinense, os ataques culturais ao seu modo de vida foram apontados como uma das tantas razões para o forte êxodo de jovens na região.

Assim como deveria ser impossível ir ao Paraguai sem sentir o peso da nossa culpa histórica pelo genocídio americano, deveria ser doloroso para a consciência de qualquer urbanóide, especialmente para o comunicador, ouvir dos próprios agricultores a forma cruel com que a sociedade consumista fere a auto-estima e mutila a dignidade dessa nossa gente.

Eles simularam a seguinte situação:

Num baile na sede do município, três rapazes e algumas moças. Durante a conversa, os rapazes são sabatinados sobre suas vidas. No melhor estilo “bom partido”, os dois primeiros estufam o peito para dizer (só como exemplo daquela realidade): “Eu trabalho na Sadia”; “Eu trabalho na Perdigão”, que são agroindústrias locais, empregadoras de mão-de-obra, em especial, de jovens que trocaram os parcos ganhos no sítio da família por um salário mensal.

Após a identificação do terceiro, “eu sou colono”, que é um termo pejorativo por aquelas bandas, instalam-se o silêncio e os incômodos olhares de compaixão ou desprezo.

Flagelo cultural

O que faltou ao terceiro rapaz foi um certo orgulho em dizer: “Sou agricultor. Trabalho para minha família e para mim mesmo, pois sou proprietário de um meio de produção e meu próprio patrão. Ah! E trabalho para vocês todas, também, além dos meus amigos aqui e suas famílias. Graças ao trabalho de minha família é que vocês se alimentam como bem quer que aconteça a todos o novo presidente do Brasil, ou seja, no mínimo três vezes ao dia. Diferentemente de vocês, com todo o respeito, não gasto parte do meu salário na compra de comida, pois eu produzo o meu próprio alimento e, o que sobra, vendo na feira. E se vocês querem saber, protejo a minha saúde, a de vocês e a do planeta, por não utilizar agrotóxicos nas minhas lavouras.” De quebra, o rapaz garantiria o mercado consumidor local com esse golpe de marketing.

O preconceito contra a população rural, a bem da verdade, atinge também os grandes proprietários de terra, não só os seus trabalhadores assalariados ou os agricultores familiares, a ponto de eles usarem os assistentes técnicos de agronomia, medicina veterinária ou zootecnia como tradutores nos encontros com pesquisadores (os “doutores”) sobre as novas tecnologias no ramo agropecuário.

Essa discriminação precisa acabar. Somos um país de tradição agrícola; nossa economia e o bem-estar de nossa população dependem muito do impulso à produção no setor primário; o desenvolvimento dos pequenos municípios, que todos os anos expulsam milhares de pessoas para as periferias das grandes cidades, é dependente da produção local e da manutenção das famílias trabalhando no campo; o desenvolvimento é dependente de jovens que estudem, se capacitem e sejam valorizados nas suas escolhas profissionais, como a de, por exemplo, se dedicar a produzir o alimento de todos.

O que a literatura já chamou de “vida besta” pode ser visto, também, como um modo de vida mais saudável e qualitativo sob vários aspectos: da relação com o ambiente às relações sociais. Via de regra, o cultivo da terra está diretamente ligado ao fortalecimento de laços familiares, às relações de amizade, às formas de organização social, de cooperação e a uma visão de sociedade que semeia um desenvolvimento sustentável e solidário. Isso tudo não rima com o individualismo e as diversas formas de desperdício pregadas pela sociedade de consumo, na qual tudo é descartável e facilmente substituível, desde que a pessoa tenha poder aquisitivo que permita a ela gozar do que a vida supostamente teria de melhor a oferecer.

As marcas desse flagelo cultural podem ser vistas nos rostos das pessoas do interior do país e sentidas nas projeções de vida de muitos filhos e filhas de agricultores. Por isso, convido os colegas de ofício a fazerem uma boa reflexão sobre esse ou quaisquer outros preconceitos e discriminações veiculados sob a forma de notícia e entretenimento. Disfarçados de informação ou com finalidade lúdica.

(*) Jornalista, Chapecó, SC