ARGENTINA
Jorge Marcelo Burnik (*)
Na quinta-feira 30/5, em nova amostra do autismo com o qual atuam os políticos na Argentina, o povo vivenciou mais uma vez, e ao vivo (TN, Crônica TV, CVN, entre outros canais), como uma ação calculista resultava na eliminação da Lei de Subversão Econômica, a lei que teria levado à prisão muitos ? senão todos ? banqueiros do país, e que foi motivo de intricadas chantagens entre o FMI, o governo de Duhalde, o Congresso, os governadores etc.
Com quase a mesma expectativa de um jogo de futebol, o povo seguiu o fim de um cataclismo anunciado. Ficou claro, mais uma vez, que a veracidade dialética acaba quando começa a prática política ? no caso senatorial ? no já exaurido país. Nos dias anteriores à votação do projeto incutido pelo governo para invalidar a lei já existente, muitos dos senadores se manifestaram na mídia contrários a tirar uma normativa que garanta a impunidade penal e financeira. Mas, não adiantou. No último minuto, e como o número de senadores favoráveis e contrários era idêntico, numa assombrosa ação de "amnesticismo" mágico, a senadora Amanda Isidoro, da província de Rio Negro e pertencente ao partido UCR, contrário ao governo de Duhalde, abandonou o Senado inexplicavelmente, ficando ainda mais às claras a suspeita de pacto entre os dois partidos políticos que polarizam ? ou polarizavam ? o cenário eleitoral argentino. Os fatos conferem ao povo que: a cada dia as normas legais perdem legitimidade de ofício (prática).
Com o mesmo efeito midiático de um pênalti contra no último minuto do jogo, a transmissão em cadeia nacional continuou. Infelizmente, o interesse de muitos, não. Para os que optaram por continuar observando na TV à indigna sessão, a surpresa foi maior ao descobrir que o tema seguinte a ser tratado pelo Senado era, paradoxalmente, o projeto de ajuda social às províncias; mas, com o maior desrespeito, a quase totalidade dos senadores levantou-se e foi embora. Eis um bom exemplo em que uma imagem vale mais que mil palavras.
Dádivas do tempo
Na mesma noite de quinta-feira passada, o povo ? assistido pela mídia ? avançou até as grades que isolam o Congresso do resto do país para manifestar sua indignação, mas não adiantou; somente os policiais ouviram estoicamente a cólera da turba. No dia seguinte, as reclamações sobre a então já extinta Lei de Subversão não demoraram a aparecer na mídia também. O deputado nacional Mario Cafiero (ARI) qualificou a sentença como "a saída indene do ponto de vista econômico e penal para os banqueiros" (América TV). Traduzindo: foi legalizado o calote sem culpados, somente com vítimas. Segundo os prognósticos midiáticos, os passos a seguir serão, indubitavelmente, maiores ajustes nas províncias, redução do financiamento para instituições e ações sociais, provavelmente uma disparada maior do dólar em relação ao peso, conseqüentemente, aumento do custo de vida, entre outras maravilhas que a mídia apresenta como o grande antagonista na nossa versão do Mundial 2002.
O presidente Duhalde apressou-se a anunciar a "saída do corralito", por meio de bônus de cinco e 10 anos, com valor de mercado bem inferior às poupanças que representam. Para o analista econômico Marcelo Bonelli (canal 13, do Grupo Clarín, 31/5), trata-se de um "certificado do governo legitimando o que perdeu cada poupador com a grana que ficou nos bancos", bônus cujo valor de venda no mercado não superaria os 30% do papel nominal, aliás, só um pequeno grupo de pessoas poderá reter os bônus por cinco ou 10 anos para receber 100% do valor ? isso se a economia argentina melhorar, e se o Banco Central tiver como pagar os bônus. Caso contrário, eles poderão ser usados para pagar impostos ao Estado. Segundo o jornalista Sietecase (Detrás de las Notícias), "o governo já está reconhecendo que não poderá pagar o bônus: antes de ele sair, o prognóstico de falência vem do mesmo criador do certificado".
Aliás, cabe mencionar o prognóstico do Nobel em Economia Joseph Stiglitz, que afirmou que se a Argentina seguir a receita do FMI o pais inevitavelmente piorará sua situação, pois "o que o Fundo pede à Argentina é que faça de sua recessão uma depressão". E comparou essa situação ao monitoramento que a instituição financeira internacional fez durante a crise da Ásia (ver em www.clarin.com/diario/2002/06/01/i-02815.htm).
E, como se tudo isso não fosse suficientemente funesto, totalmente fora da realidade de muitas pessoas, o ex-presidente Carlos Menem lançou sua candidatura à presidência para 2003 (na Fazenda Sierra de la Ventana), com propostas, no melhor dos casos, risíveis: a mágica solução seria ? segundo ele ? "dolarizar a economia" (com um Banco Central quase sem reservas), dividir Buenos Aires em dois distritos, um dos quais se chamaria "Província del Plata". Inexplicavelmente, a mídia é a mesma, mas a Argentina dos políticos e a do povo sem dúvida é diferente.
Sem saber como driblar a situação, a cúpula tenta ganhar tempo até que apareça mais dinheiro, e simultaneamente perde autonomia, credibilidade e confiança interna, tudo aquilo que o dinheiro não compra, só o tempo.
(*) Jornalista graduado na Universidade Nacional de Misiones, Argentina