O JORNALISMO PODE MATAR?
Luiz Weis
A Grã-Bretanha ficou em estado de choque ? e o primeiro-ministro Tony Blair, pela bola sete ? com a morte do cientista David Kelly, suspeito de passar ao repórter Andrew Gilligan, da BBC, em off, a informacão devastadora (para Blair) de que o seu governo tornou mais sexy ? "sexed up" foi o termo utilizado no noticiário da emissora ? os relatórios dos serviços secretos sobre as armas de destruição em massa de que Saddam Hussein estaria de posse e seria capaz de acionar "em 45 minutos", para justificar a invasão.
Em depoimento numa comissão da Câmara dos Comuns, Kelly admitiu ter conversado com Gilligan, mas negou ter sido a fonte de Gilligan. Este, por sua vez, fez o que tinha de fazer: ficou quieto. Antes e, mais ainda, depois do interrogatório de Kelly, os operadores de Blair puseram a cúpula da BBC no pau-de-arara ? e, pelo que se sabe, a metáfora não é exagerada ? para que abrissem o jogo.
Nem pensar, foi a resposta. Onde já se viu?
Tinha-se a impressão de que não foi apenas por uma sagrada questão de princípio que os diretores da BBC se recusavam a entregar o que o governo não tinha o direito de pedir.
Era lícita a suposição de que os barões da BBC não abriram o jogo porque não tinham jogo a abrir. E não tinham porque não teriam ousado perguntar ao repórter quem lhe passara a explosiva inconfidência.
Diante da morte de Kelly ? pela qual a imprensa britânica responsabilizou, em última análise, tanto o governo e a BBC ? a posição inicial ficou insustentável para o repórter e a emissora.
Não só ela acabou confirmando que o cientista era mesmo a fonte principal de Gilligan, como ainda admitiu a possibilidade de que este também tenha "sexed up" as informações recebidas. O inquérito judicial sobre o caso tentará pôr as coisas em pratos limpos.
Trata-se, obviamente, de um caso extremo, em mais de um sentido da palavra, envolvendo a definição dos limites da responsabilidade jornalística no uso do off.
Alto risco
Agora, da prática à teoria. O ombudsman da Folha, Bernardo Ajzenberg, conta na edição de domingo (20/7) que a editora-executiva Eleonora de Lucena determinou aos repórteres que devem comunicar a origem das informações em off, sempre que os seus "superiores hierárquicos" o solicitarem. E estes, "conhecendo a identidade das fontes que são mantidas no anonimato, devem cuidar da manutenção do sigilo".
A preocupação da editora parece procedente. Ela acha que "o emprego de informações ?off the record? está banalizado no jornal" e, por isso, "é preciso redobrar os cuidados na apuração e os controles na edição de notícias obtidas desse modo".
Mas, salvo melhor juízo, este jornalista acha que ninguém tem o direito de exigir de um repórter que revele a fonte de sua informação.
É óbvio que isso torna mais difícil "redobrar os controles" etc. Mas o uso do off ? ou do not for attribution, para ser mais exato envolve, como estas Notas já observaram, uma cadeia de relações de confiança. Para "trás", entre repórter e fonte. E para "frente", entre repórter e chefias. E, por último, entre o jornal e o seu leitor.
Faria bem a fonte que se recusasse a dar uma informação cuja autoria não pode ou não quer assumir, sabendo que o repórter poderia ser obrigado a identificá-la a quem quer que fosse.
Além disso, embora os superiores hierárquicos devam cuidar da "manutenção do sigilo" de que se tornaram depositários, é evidente que, de degrau em degrau e pelo mesmo princípio, o dono da publicação terá, de fato ou de direito, a prerrogativa de ficar sabendo quem não quis que se soubesse o seu nome.
E como em qualquer outra situação de vida, segredo compartilhado é segredo desfeito.
Não há solução perfeita para os dilemas profissionais impostos pelo inevitável uso da informação de autor anônimo. O que se deve, sem atropelar as regras da ética e do convívio respeitoso nas redações, é tentar reduzir a "taxa de periculosidade" do problema, não perdendo de vista que jornalismo é, por definição e por todos os ângulos, uma atividade de alto risco.
De qualquer forma, mesmo em situações rotineiras, a anos-luz de serem questões de vida ou morte, como no caso Kelly/Gilligan/BBC, a decisão da editora-executiva da Folha abre espaço para um robusto debate. E nenhum lugar melhor para isso do que este OI.