Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Quem informa o que a quem

LEITURAS DA MÍDIA

Ivo Lucchesi (*)

Imaginemos que este artigo pudesse iniciar com a seguinte sentença: o mundo não existe; ele é mera abstração. Provavelmente, duas reações a frase produziria, levando em conta dois tipos de leitor. Um, domesticado na pressão diária da informação "objetiva", de imediato, lançaria seu repúdio feroz contra o enlouquecido autor; outro, educado no ritmo lento exigido pelo exercício do pensar, poderia sentir, na provocação, uma atração especial, capaz de conduzi-lo ao desdobramento daquela escrita a princípio estranha.

Será, porém, que haveria lugar para um terceiro? Em sendo possível, que tipo encarnaria? Um leitor, sempre disposto a absorver as recentes informações, com o intuito de sentir-se conectado aos acontecimentos do mundo. Bem, mas aí se põe um problema: se é um leitor que procura conectar-se com o mundo, como aceitaria a provocação da frase inicial, sem que viesse a reagir nos moldes do primeiro tipo? É simples: esse terceiro modelo de leitor lê tudo, fingindo compreender tudo, mesmo que, no íntimo, se saiba radicalmente vazio e atordoado. Todavia, sua sobrevivência psíquica e existencial depende do aperfeiçoamento dessa máscara.

O regime do aleatório

Não estranhemos se for verdadeiro o fato de, no terceiro tipo de leitor, encontrar-se o segmento mais numeroso entre a população "letrada". Se tal conjectura não tivesse respaldo na "realidade concreta", inexistiria certo comportamento jornalístico. O que move, por exemplo, um jornal a estampar, como chamada de primeira página, a seguinte frase: "Pessimismo faz bolsa cair e dólar subir" (Folha de S.Paulo, 3/5/02)? O mais grave é que o teor da matéria não elucidará o real mecanismo a envolver operações do "mercado de capitais". Isto representa um "mundo à parte", próprio dos "iniciados" e "jogadores" (ou "investidores"). Então o que fixa o leitor, na sua ingenuidade, é a sensação de que algo acontece ao seu redor, podendo causar-lhe algum tipo de instabilidade, a despeito de não ter um só centavo aplicado.

Se analisarmos com mais vagar e critério, perceberemos que a maior parte da qual se nutre o noticiário diário das diferentes modalidades (impressa e eletrônica) é constituída de ocorrências e tramas em nada (ou quase nada) relativas à vida propriamente dita das pessoas. O que faz um leitor com a notícia de um avião que caiu na Indonésia, matando 274 passageiros e tripulantes? Que fim confere o telespectador a uma notícia cujo "formato" lingüístico tem essa construção: "O mercado hoje amanheceu nervoso, mas estabilizou-se ao longo do dia"? Bem, vamos para o esporte: a rigor, o que muda a vida de um ser, se esse ou aquele time (ou piloto, ou tenista, ou …) venceu ou perdeu?

O real irreal

Enfim, se levarmos essa questão mais a fundo, chegaremos à conclusão de que a "realidade informada" habita a dimensão mítica e dita o ritmo de um tempo-espaço aleatório. Todavia, algo ainda mais surpreendente estaria reservado ao perfil desse "leitor disciplinado e antenado": a tecnologia criou os instrumentos adequados para a informação em tempo real. Poucos se dão conta do que a expressão em si comunica. Haverá, fora do regime do "mundo", um "tempo irreal"? Brinquemos com a coisa, pensando nessas opções: a) informação irreal em tempo real; b) informação real em tempo irreal; c) informação irreal em tempo irreal; d) real da informação em tempo irreal; e) todas as opções são rigorosamente verdadeiras.

Entendendo-se a opção "a" (informação irreal em tempo real) no que ela efetivamente significa, conclui-se que ela é verdadeira, dada a precariedade de sua produção, a ponto de ser objeto de descarte minutos ou horas adiante. Porque o tempo da informação é o próprio tempo da "ação", falta suporte para checar, analisar e, por fim, creditar o conteúdo.

A opção "b" (informação real em tempo irreal) passou, no novo contexto do "jornalismo on line", a representar a notícia que, embora correta e checada, chega atrasada, enfraquecida, portanto, quanto ao impacto que ela exerceria.

A opção "c" (informação irreal em tempo irreal) é o típico mundo "jornalístico" acima configurado, ou seja, massa de informações atinentes a conteúdos dos mais diversificados cujo poder de intervenção real na vida das pessoas é nenhum, a despeito de elas acompanharem tudo.

A opção "d" (real da informação em tempo irreal) diz respeito ao "mundo secreto" no qual se engendram as tramas que efetivamente dão movimento à História. Nesse contexto (um mundo à parte), informações realíssimas são trocadas, analisadas, ponderadas. Delas, o "outro mundo", quando toma ciência, é notificado num tempo bem distante. Já é um "tempo congelado" porque nele não mais se pode promover alteração para o curso dos acontecimentos.

Assim, compreende-se perfeitamente porque todas as opções são viáveis, presentes em realidades concomitantes ou paralelas. Alguém, entretanto, poderá alegar que nada é mais real que a imagem-informação em tempo real, ou seja, a transmissão de um acontecimento imprevisto, a exemplo da cobertura de um seqüestro, com o suporte "ao vivo", e as emoções se sucedendo na convulsão dos fatos. Bem, isso em nada difere de qualquer outra transmissão "ao vivo". Um jogo de futebol ou a rebelião em um presídio não alteram a feição e a função jornalísticas. Trata-se apenas do deslocamento de uma prática antes restrita a eventos e agora transposta para ocorrências do cotidiano. Claro, tal recurso potencializou o grau de emocionalidade das pessoas, deixando-as mais excitadas. Nada além disso. Tudo a rigor se torna precário, sob o ponto de vista da "informação" e da "verdade".

A imagem, em "tempo real", deixa no receptor a sensação de ele compreender o que vê, quando, efetivamente, apenas "sente" primariamente o que é exibido. Com a repetibilidade desse procedimento, o receptor finda por habituar-se a ver tudo com certa normalidade, inclusive o horror passa a ser digerido como dado normal da vida. Com base, pois, nesses aspectos aqui tratados, aquela frase inicial pode muito bem ter seu lugar, por mais estranha (ou até esquizóide) que, a princípio, faria supor. Um biombo invisível, porém real, parece separar dois "mundos". A questão final que fica para quem sobre ela pretenda refletir resume-se a tentar reconhecer (-se) em qual dos dois "mundos" cada um está. Nisso reside a crucial diferença com que tudo mais se marca…

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.