Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quinto poder e jornalismo transgênico

MÍDIA & PUBLICIDADE

Leandro Marshall (*)

A pós-modernidade mudou o olhar, o sentir e o pensar do homem sobre a cultura e sobre a comunicação. Uma transformação que mexe, particularmente, com o campo do jornalismo. Para os manuais, jornalismo e publicidade são campos antagônicos, totalmente distintos, que exercem funções sociais diferentes. Os dois tem papéis diferenciados, sem ponto de tangência. Jornalismo é informação. Publicidade é promoção e venda.

Todavia, a realidade do mundo da pós-modernidade parece apontar para uma nova perspectiva: a publicidade e a propaganda estão invadindo e contaminando o campo do jornalismo, obrigando-o a se submeter às suas imposições. Mais do que isso, a publicidade e a propaganda estão assumindo um poder cada vez maior sobre a sociedade e o campo da cultura e da comunicação.

Hoje, afirma Marcondes Filho (1993), os publicitários são os grandes artífices do mundo moderno. Pelas mãos deles passam as principais decisões do campo da política e da economia, poder que os torna os novos "administradores" da vida moderna.


"Os publicitários apossaram-se da poltrona dos que ditam as ordens. Convenceram-se e convencem os demais de que sua verdade é a mais plena, mais absoluta, mais completa. Exemplo disso é a arrogância com que posam esses novos deuses dos media. Assumem ares de superioridade, de onipotência, lançando verdades lapidares, umas sobre as outras, a quem os chama a opinar". (Marcondes Filho, 1993) .


Os sinais desta nova ordem estabelecida pela publicidade estão digitados na pele da sociedade. Cada vez mais, os empresários entregam o gerenciamento de suas decisões às estratégias de marketing dos publicitários. Os políticos e os candidatos a um cargo na vida política têm se rendido aos conselhos das agências especializadas. Artistas e personalidades públicas passam cada vez mais a ouvir os ensinamentos dos profissionais da imagem. E os governos e os governantes também se tornaram público fiel da sabedoria moderna destes apóstolos, verdadeiros guias da vida competitiva.

Marketing e teatralização

O motor deste processo tem raiz na engrenagem da economia. A expansão do poder e da atuação da publicidade e da propaganda é obra direta do processo de hegemonia do neoliberalismo e de alforria do livre mercado.

A flexibilização das regras sociais, econômicas e políticas e a institucionalização do modelo de vale-tudo nas relações sociais contribuíram para esvaziar e enfraquecer o poder estabelecido e criar um regime de insegurança social. Estratégias e artimanhas da publicidade e da propaganda transformaram-se assim em vacina, em antídoto ou nirvana para as agruras da pós-modernidade.

O processo de expansão do marketing da publicidade e da propaganda foi, inclusive, reconhecido pela Organização Mundial do Trabalho em 1990. Diz a declaração da OIT:


"Uma estrutura forte e definida está se formando e as ligações da indústria e os modelos de integração e diversificação verticais resultantes estão sendo determinadas pela pragmática do marketing. A indústria da propaganda parece ser o principal catalisador. Assim, as indústrias-chave na nova ordem da informação mundial serão os veículos de propaganda, como a TV, a imprensa e os sistemas de lazer. A dinâmica do poder envolverá todos os principais veículos de propaganda" (OIT, 1990).


Na verdade, a publicidade e a propaganda têm sido tratadas como panacéia universal. A capacidade dos profissionais destas áreas de verdadeirizar a realidade, incrementada com a pós-modernidade, confere assim à publicidade um status singular, elevando-a ao nível de quinto poder na sociedade. Os publicitários são os prestidigitadores do futuro, especialistas em criar imagens, instituir signos, produzir ícones e criar a realidade.


"São os mercadores do novo mundo, que não vendem mais mercadorias, nem status, nem visão de mundo. Eles são o mundo: corporificam a nova era, o fim das ligações com coisas e pessoas, o fim da pesquisa ?das profundezas?, o fim da ?essência?. Eles são o novo homem: o materializam e o exemplificam para que todos possam (devam) cumprir". (Marcondes Filho, 1993)


A nova era é, portanto, em essência, a era da imagem. As coisas valem pela sua representação, e não mais pela sua significação. O marketing teatraliza novos significados e isto é o que basta na lógica do novo cidadão/consumidor.

"Jornal sem palavras"

Para Baudrillard, esta nova era instaurada pela imagem rompe todos limites da farsa e falsificação. Na visão do filósofo francês, "nós já transgredimos tudo, inclusive os limites da cena e da verdade (…) Não haverá mais juízo final. Nós já fomos além dele".


"No mundo desenvolvido, o orçamento publicitário está perto do dobro daquele destinado à instrução pública. Ou seja, a publicidade tornou-se, em nossa época, um modo dominante da comunicação e, portanto, um elemento decisivo da cultura que nos molda. Esta é a opinião de Toscani, para quem qualquer imagem publicitária, mesmo a mais idiota, tem uma significação sociopolítica: ?Não há imagens que não tenham uma mensagem, uma significação. As imagens que projetam as supermodelos, as supermentiras, são de qualquer forma imagens sociopolíticas?. E mais, ?são imagens persecutórias?, uma vez que estabelecem padrões de comportamento que excedem a capacidade de imitação por parte da maioria absoluta dos seres humanos: ?Se não me pareço com Claudia Schiffer, melhor parar de ser mulher" (Soares, 1996).


Enfraquecido e indefeso diante do faroeste da pós-modernidade, o jornalismo tem se rendido à nova ordem do marketing e da imagem instituída pela publicidade e propaganda. Mais do que isso, o jornalismo transformou-se em instrumento dos objetivos diretos ou indiretos deste sistema.

As empresas jornalísticas passaram a flexibilizar o conceito e o processo de produção de notícias. A informação transformou-se em um campo de negociação e barganha de interesses. Os jornais contemporâneos viraram mercadorias, submetidas à lógica do mercado, da audiência e do lucro. Passaram a ser produzidos e vendidos sob a mesma lógica que produz e vende sabonetes, vassouras e guarda-chuvas.

O conteúdo abre espaço para o colorido, o efeito visual, a fotografia e a manchete em letras garrafais. A tônica do processo é emocionar o leitor e fazê-lo sentir que precisa necessariamente adquirir o jornal.

Este modelo de jornalismo chegou ao Brasil vindo de duas correntes distintas. A primeira tem origem norte-americana, e é simbolizada pelo USA Today, um jornal de variedades, fragmentado, colorido e vibrante. A segunda tem origem hispânica: a Universidade de Navarra, na Espanha, e também combina acentuado grau de cores, fotos e textos enxutos.

O resultado deste paradigma tem sido o que Ismar de Oliveira Soares rotula de "jornal sem palavras", devido à falta de matérias reflexivas e que aprofundem as questões mais prementes da sociedade. Cria-se um jornalismo pautado pelas regras de marketing, distanciado das preocupações éticas que originaram a linguagem.

Adesão infantil

Os novos jornais sintetizam, desta maneira, uma espécie de jornalismo transgênico, que associa informação e comércio na mesma embalagem. Rompem-se os arames farpados que dividiam o campo do jornalismo e da publicidade e passa-se a criar, em seu lugar, uma mutação genética dirigida essencialmente ao mercado.


"Assim como o campo político e o campo econômico, e muito mais que o campo científico, artístico ou literário ou mesmo jurídico, o campo jornalístico está permanentemente sujeito à prova dos veredictos do mercado, através da sanção, direta, da clientela ou, indireta, do índice de audiência" (Bourdieu, 1997).

"Para salvar a empresa, abre-se mão do caráter político do veículo, tornando-o um mero repetidor de fórmulas populares, subtraindo da atividade jornalística sua dimensão de quebra e de transformação da realidade" (Marcondes Filho, 1989).


Em sua mais recente obra, Os novos cães de guarda, Serge Halimi (1998) denunciou o esvaziamento do jornalismo e a entronização do culto ao mercado na linha editorial dos jornais. Diz Halimi:


"Culto à empresa, serenata dos grandes equilíbrios, amor pela mundialização, paixão pelo franco forte, proliferação das crônicas sobre a Bolsa de valores, requisitórios contra as conquistas sociais, obstinação em culpabilizar os assalariados em nome dos ?excluídos?, terror pelas manifestações coletivas: esse pensamento único, essa lenga-lenga patronal, tem sido martelado por milhares de instituições, organismos e comissões. E, com raras exceções, a mídia, seja de direita ou se diga de esquerda, lhes tem servido de ventríloquo, de orquestra sinfônica ao diapasão dos mercados financeiros que marcam o compasso de nossas existências num mundo sem sono e sem fronteiras" (Halimi, 1998).


O fotógrafo italiano Oliviero Toscani, que se notabilizou por criar campanhas publicitárias famosas no mundo inteiro, tem sido um dos raros críticos do campo da publicidade, e pela propaganda. Toscani (1996) acusa seu próprio ganha-pão de ter se especializado "em pilhar os movimentos de idéias e musicais, a imprensa, o cinema, tornando-os assépticos e esvaziando-os de qualquer conteúdo".

Baudrillard explica que o crescente poder da publicidade sobre a sociedade está estabelecido no que ele chama de a lógica do Papai Noel. Segundo ele, "as crianças não mais se perguntam sobre a existência do Papai Noel e não relacionam esta existência com os presentes que recebem como se tratasse de um jogo de causa e efeito. A crença no Papai Noel é uma fabulação racionalizante que permite preservar a relação miraculosa de gratificação pelos pais.

Papai Noel não tem importância e a criança nele só acredita porque no fundo não tem importância. O que ela consome desta imagem, desta ficção, deste álibi ? e em que acreditará mesmo quando deixar de crer ? é o jogo da solicitude miraculosa dos pais e os cuidados que estes assumem em ser cúmplices da fábula. Os presentes apenas sancionam este compromisso.

A operação publicitária age da mesma maneira. Nem o discurso retórico, nem mesmo o discurso informativo acerca das virtudes do produto, tem efeito decisivo sobre o comprador. Ele não acredita na publicidade mais do que a criança no Papai Noel. O que não o impede de aderir da mesma maneira a uma situação infantil interiorizada e de se comportar de acordo com ela" (Baudrillard apud Costa Lima, 1990).

(*) Professor de Teoria da Comunicação UEPG (PR), doutorando em Comunicação (PUC-RS

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