Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Racismo, socialismo e idiotia

CAROS AMIGOS

Daniel Golovaty Cursino (*)


"O anti-semitismo enquanto movimento popular foi sempre aquilo que seus instigadores gostavam de censurar aos social-democratas: o nivelamento por baixo. Do funcionário alemão aos negros do Harlem, os ávidos prosélitos sempre souberam, no fundo, que no final não teriam nada senão o prazer de que os outros tampouco teriam mais do que eles (…) O anti-semitismo mostrou-se imune ao argumento da falta de rentabilidade. Para o povo, ele é um luxo." (T. Adorno e M. Horkheimer)

"O anti-semitismo é o socialismo dos imbecis." (August Bebel)


A revista Caros Amigos tem reiteradamente veiculado em suas páginas artigos de teor anti-semita. Desta última vez, a agressão aos judeus não se utilizou da conveniente cobertura do conflito palestino-israelense, mas se dirigiu diretamente à comunidade judia brasileira. O racismo, de per se , já constitui uma grave ameaça à democracia, por isso não podendo de forma alguma ser justificado em termos de "pluralismo" e de "liberdade de opinião". No caso em tela, pior do que isso, até mesmo o direito de resposta tem sido sistematicamente cerceado. No máximo, a revista consente em publicar pequenas cartas na sessão destinada aos leitores, todas elas cuidadosamente escolhidas pela redação e sempre de tamanho muito inferior ao do artigo que as motivou. No que concerne ao artigo que pretendo analisar aqui, da lavra da Sra. Marilene Felinto, a revista em questão selecionou, sob o título genérico de "Marilene Felinto", duas pequenas mensagens "contra" (uma delas mutilada de título e citações) assim como duas outras "a favor", sendo que em uma destas últimas a agressão racista é novamente perpetrada, com a comunidade judia sendo insidiosamente associada com obscuras "elites monetistas" e o rabino Henry Sobel novamente injuriado, desta feita sendo tachado de "rabino fascista mal circuncidado".

Diante disto, torna-se urgente o estabelecimento de um debate público sério e sem subterfúgios sobre as raízes e o significado deste anti-semitismo "de esquerda", bem como sobre as responsabilidades de uma certa imprensa que, sob a máscara da "crítica", vende aos seus leitores o ódio racial travestido com um palavreado pseudo-esquerdista e sustentado, como não poderia deixar de ser, por uma sistemática de métodos e práticas visceralmente antidemocráticos. Portanto, a análise que segue abaixo tem por objetivo principal suscitar tal debate, cuja necessidade se impõe num momento em que começa novamente a se tornar banal a abominação do anti-semitismo e do racismo em geral.

Sobre o texto da Sra. Marilene Felinto, intitulado "A morte da menina rica e o ódio de classe", publicado na edição n? 81 (dezembro de 2003) da revista Caros Amigos, gostaria de observar:

1. O baixo nível geral dos comentários da Sra. Felinto, recheados de clichês vulgares e trivialidades, que ela tenta de forma derrisória passar por crítica social. Salta aos olhos, sobretudo, seu maniqueísmo primário que consiste, dentre outras coisas, em personalizar o que é resultado de processos econômico-sociais e históricos, apontando nominalmente pessoas, pelo simples fato de pertencerem a uma suposta "elite", como sendo diretamente culpadas pelas mazelas sociais e pelo crime, o qual elas seriam as primeiras a "insuflar". É como se, para a Sra. Felinto, o simples fato de alguém ter um bom nível de vida (no sentido econômico), podendo ter acesso à educação, saúde, cultura etc. ? ou mesmo ser rico ? já seja o suficiente para que esta pessoa seja excluída da "autêntica" comunidade nacional brasileira, passando a ser assimilada a uma "elite de nomes estrangeirados (grifo meu), pronta para impor-se, para esmagar e humilhar sob seus pés os espantados ?silvas?, ?sousas?, ?costas? e outros nomezinhos portugueses e ?afro-escravos?". Faltaram aí apenas os índios, para formar as três "raças" nacionais!

Outros epítetos prodigamente conferidos a esta tal "elite estrangeirada": "hipócrita", "voraz", "devoradora", e por aí vai. Inclusive, a Sra. Felinto chega a juntar, indistintamente, num mesmo saco Ari Friedenbach (pai de Liana), o rabino Sobel, a apresentadora de televisão Hebe Camargo e o governador de São Paulo, aproximando-os de ladrões, visto que teriam o objetivo comum de "embolsar todo mês trinta vezes mais que qualquer pai maltrapilho ou desempregado da favela". É que para a Sra. Felinto, que parece nunca ter lido sequer um manual de Economia Política (nem falo de Marx!), se existe desigualdade de renda é porque os que ganham mais estariam roubando ou "embolsando" dos que ganham menos! Sutil, não? Mais ainda, as pessoas supracitadas perseguiriam também um outro objetivo, este mais macabro, nada menos do que "o extermínio puro e simples dos jovens pobres"! Os miseráveis paralogismos através dos quais a Sra. Felinto chega a este sombrio "corolário", eu realmente me eximo aqui de comentar.

Inversamente à personificação das mazelas sociais nestas pessoas "malignas" e "estrangeiradas", ocorre a despersonalização dos pobres, isto é, dos "nacionais". Estes, em nome dos quais pretensiosamente a Sra. Felinto se outorga o direito de falar, são reduzidos de maneira preconceituosa a uma tábula rasa, de forma que se são capazes de fazer o mal é porque foram previamente "insuflados" com "ódio de classe" (sobre o conceito de "classe" desta senhora, novamente, sem comentários). Com toda a probabilidade, a grande maioria da população pobre da periferia, a qual não é criminosa, não se sentiria especialmente confortável com este retrato pouco lisonjeiro, em que pesem as aparências, que dela é pintado…

No discurso da Sra. Felinto, seja por seu grotesco maniqueísmo, pela pobreza e inanição da suas "análises", pela sua vociferação histérica ou ainda pela impressionante crueldade com a qual banaliza o assassinato bárbaro de uma jovem de 16 anos, estereotipando-a de "menina rica" pela qual se teria feito "todo esse rebuliço" ? ao mesmo tempo em que tripudia sobre o desespero da família, uma vez que a culpa pelo assassinato da filha é atribuída ao próprio pai da vítima, não "apenas" por este supostamente pertencer a tal "elite" maligna, mas também por ser judeu ?, não é difícil discernir, por tudo isso, os mesmíssimos métodos e concepções da mídia mais populista e demagógica, que vive de capitalizar com a espetacularização/banalização da violência, a qual, todavia, a dita jornalista (?) se propõe a "criticar". Ocorre apenas que neste caso os sinais estão invertidos, assim como o "nicho de mercado" é outro.

De um lado, é bem nítida a identificação da Sra. Felinto com os valores e o status desta "elite", da qual, contudo, ela se vê excluída e portanto "roubada". Daí se explica o visível rancor com que ela descreve obsessivamente (vide outros artigos desta senhora) seu estilo de vida, assim como seu desejo de nivelamento e seu igualitarismo abstrato. Daí também a satanização, resultante da falsa projeção, a qual abre o passo para a instauração da crueldade sem culpa, que aparece na justificação da atrocidade, não diretamente, está claro, mas pela via da acusação: a vítima, "na verdade" é o algoz, e este, "no fundo" é a verdadeira vítima. Por outro lado, e pelos mesmos motivos, os "de baixo" são conceitualmente desumanizados, através da vinculação direta e reducionista entre pobreza e criminalidade, bem como por meio da sua igual redução à total passividade. Mesmo quando "agem", não são sujeitos; o motivo de sua ação lhes foi imputado de fora, visto que foram "insuflados". Só que todo este procedimento (e este é o ponto fundamental) ocorre como que às avessas, de forma que aqueles que se identificam com o status quo, mas dele se vêem excluídos, possam atacá-lo ao mesmo tempo em que se investem como porta-vozes dos "ofendidos e humilhados", os quais, entretanto (et pour cause), têm conceitualmente ratificada sua brutalização.Tal estado de coisas, em que uma revolta impotente é vivenciada como ruminação rancorosa e desejo de nivelamento, e no qual é embotado o mais elementar senso moral, tem um nome: ressentimento.

2. A desonestidade jornalística da Sra. Felinto. No artigo em questão, esta jornalista se utiliza de uma declaração pública do rabino Henri Sobel a favor da pena de morte para crimes hediondos, dada em uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo (23/11/03). Nesta entrevista, feita sob o impacto da revelação do trágico destino que tivera o jovem casal de namorados, e explicitando que falava em caráter estritamente pessoal, o rabino dissera que "na qualidade de pai, defendo a pena de morte em casos excepcionais como o de Liana e Felipe". Esta declaração já foi o suficiente para que a Sra. Felinto a) "concluísse" que "está claro que o rabino H. Sobel, ao pedir a instituição da pena de morte no Brasil, só ousou faze-lo porque a jovem morta, Liana Friedenbach, pertencia à comunidade judaica de São Paulo. A hipocrisia do rabino é flagrante: está claro que ele defende a pena de morte para brasileiros pobres"; b) acoimasse o rabino Sobel como "o rabino da pena de morte"; c) estendesse estes qualificativos para toda a comunidade judia (menos, é claro, as exceções que confirmam a regra…), contrapondo-a aos "brasileiros pobres" e a assimilando à "classe rica e concentradora de renda", constitutiva da "elite de nomes estrangeirados", com todas as características mencionadas acima, e também portadora dos mesmos soturnos desígnios de extermínio. Sem entrar no mérito das "conclusões" da Sra. Felinto, bem como de seu anti-semitismo vulgar e grosseiro, que mal se preocupa em dissimular-se (o que farei mais abaixo), gostaria apenas, visando demonstrar a patente desonestidade jornalística desta senhora, de me restringir ao plano mais elementar dos fatos, os quais, em primeiro lugar, qualquer jornalista decente deveria se preocupar em fornecer ao seu leitor. Mais precisamente, gostaria de me referir à omissão de alguns fatos centrais sobre esta questão (sempre me limitando ao mero nível informativo).

Em primeiro lugar, na mesma reportagem do jornal Folha de S.Paulo que noticiou a declaração supracitada do rabino Sobel, o atual presidente da Federação Israelita do Estado de São Paulo, Jaime Blay afirmou: "A posição oficial da Federação Israelita é de completo e total divórcio deste tipo de opinião. No mundo de hoje, é uma excrescência este tipo de atitude. O judaísmo prega a vida e não a morte. Recebemos muitos telefonemas de pessoas que não concordam. Esta é uma posição exclusivamente pessoal".

Em segundo lugar, apenas três dias depois da sua declaração, o próprio rabino reconheceu o erro e voltou atrás na sua posição (Folha de S.Paulo, 26/11/03). O rabino, que havia celebrado o casamento dos pais de Liana, assim com seu "bat-mitzvá" (cerimônia de iniciação da menina judia na comunidade das mulheres adultas), declarou então que "foi uma reação emocional. Reagi como pai, cidadão, indivíduo".

Em terceiro lugar, seria necessário restituir aqui alguns fatos fundamentais sobre a história e a vida do rabino Henry Sobel, indispensáveis para qualquer avaliação global sobre a sua pessoa, que pretenda ser minimamente honesta.

É público e notório que o rabino Sobel sempre se destacou por seu engajamento em causas ligadas à defesa dos direitos humanos. Como se sabe, ele ficou nacionalmente conhecido quando, contrariando a pressão do regime militar, decidiu celebrar uma missa ecumênica, com D. Paulo Evaristo Arns, em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, que havia sido assassinado nos porões da ditadura militar. Naquela época, estava mais em voga no Brasil a outra metade dos Protocolos dos Sábios de Si&atatilde;o, não essa que associa os judeus com a "classe rica, voraz e concentradora de renda", mas aquela que denuncia o "judeu-bolchevismo", cujo intuito seria o de "subverter" o povo brasileiro e "corromper" os seus costumes, versão conspiratória que hoje já pode ser resgatada nos arquivos do DOPS. De forma que ele também não teve o apoio de uma parcela das lideranças da comunidade, provavelmente temendo que seu ato provocasse alguma retaliação oficial contra os judeus brasileiros.

De lá para cá, sua atuação religiosa tem se pautado pela defesa da tolerância e do ecumenismo, assim como pelo seu engajamento em diversas questões nacionais a partir de sua perspectiva particular do judaísmo. Com relação ao conflito israelo-palestino, suas posições têm sempre se caracterizado pela defesa da paz e pelo direito do povo palestino a constituir seu Estado soberano, ao lado do Estado de Israel, encontrando-se inclusive com Yasser Arafat e lideranças israelenses neste sentido. Ultimamente, tem feito críticas severas à política do governo israelense, evitando assim a cômoda posição de cingir-se às questões paroquiais, que certamente lhe pouparia muitos problemas. Não se trata aqui de fazer a apologia de ninguém. Certamente, o rabino Sobel terá também muitos defeitos e limitações, afinal ele é apenas um rabino, isto é, alguém que estuda a Torá, e não o seu Autor… Trata-se, sim, de fazer um mínimo de justiça, restituindo alguma verdade aos fatos.

Ora, como poderíamos denominar um "jornalismo" que, omitindo os fatos mais elementares, se aproveita de uma declaração infeliz para tachar com os mais ignóbeis estereótipos uma pessoa e, mais ainda, toda a comunidade étnico-cultural à qual pertence, imputando-lhes inclusive sinistros desígnios eliminacionistas? Jornalismo canalha? (cf. O jornalismo canalha, de José Arbex Jr. que , como se sabe, pertence ao conselho editorial da revista Caros Amigos…).

3. Seu patente anti-semitismo. Como já ficou mais ou menos delineado acima, o artigo em questão contém um anti-semitismo tão escancarado que talvez não fossem necessários maiores comentários. Entretanto, eu gostaria de chamar a atenção para um aspecto em particular, que no presente contexto adquire grande interesse, para muito além do caso em questão. É que o anti-semitismo da Sra. Felinto se apresenta numa roupagem pseudo-esquerdista, fato que nos remete ao "socialismo dos imbecis" (Bebel). E aqui, peço licença para ampliar um pouco a análise. Se tem algo que a experiência do século 20 nos ensinou, é que nenhum automatismo ou "milagre dialético" levará ao "futuro radioso" do socialismo. Depois de Auschwitz e do Gulag, falar em "astúcia da razão" (Hegel) soaria algo como uma brincadeira macabra. Se de fato existe um "outro mundo possível", da perspectiva da emancipação, ele só pode se constituir através da apropriação transformadora da riqueza e cultura historicamente produzidas pela sociedade burguesa, pois, afinal de contas, foi ela que criou os modernos conceitos de "indivíduo", "autonomia", "liberdade", "igualdade", "democracia", "tolerância", etc., sem os quais qualquer projeto socialista seria, na melhor das hipóteses, um escárnio grotesco e, na pior, o inferno na terra dos totalitarismos e fundamentalismos.

Ora, para os humanos, só existe riqueza e cultura na medida em que há a possibilidade do pensamento ou, o que é apenas uma outra forma de dizer a mesma coisa, do diálogo com o outro (Sócrates e Platão diziam: "quando eu penso, sou dois"). Também é o pensamento que engendra a possibilidade do novo, pois, fundado sobre a capacidade dos sujeitos elaborarem a experiência do desprazer, bem como de assumirem a própria angústia, introduz o mundo simbólico, no qual então pode se dar a produção da verdade e do sentido, sem os quais não há nenhuma ação substantiva, mas apenas a autista e impotente "passagem ao ato" da violência cega e do terror. Numa situação histórica como a atual, em que ? seja pela desagregação das formações nacionais induzida pela globalização, seja pela virtual ubiqüidade da indústria cultural (tanto a "oficial" quanto a auto-proclamada "alternativa") ? se produz o embrutecimento maciço da capacidade de julgar e discernir, e na qual, justamente por isso, a esperança frustrada degenera em fanatismo e em mistificação de massas, forja-se um terreno extremamente fértil para o amadurecimento do ovo da serpente e a instauração de uma nova barbárie, que, a exemplo dos anos 1930, já começa a insinuar-se no retorno do veneno do racismo para o centro da cena política.

"Ditas e escritas"

Adorno e Horkheimer, visando dar uma resposta teórica para os motivos que levaram ao advento do nazismo e do Holocausto, detectaram muito bem a centralidade de um processo análogo de atrofiamento da experiência:


"Antes, o juízo passava pela etapa da ponderação, que proporcionava certa proteção ao sujeito do juízo contra uma identificação brutal com o predicado. Na sociedade industrial avançada, ocorre uma regressão a um modo de efetuação do juízo que se pode dizer desprovido de juízo, do poder de discriminação (…) Eis aí o segredo do embrutecimento que favorece o anti-semitismo. Se, no interior da própria lógica, o conceito cai sobre o particular como algo de puramente exterior, com muito mais razão, na sociedade, tudo o que representa a diferença tem que tremer. As etiquetas são colocadas: ou se é amigo, ou inimigo." (Dialética do Esclarecimento, pág.188, grifos meus).


Numa tal constelação de coisas, em que se oblitera de forma generalizada a possibilidade mesma de pensar, começam então a predominar formas de "pensamento" que na verdade não passam de arremedos, os quais Adorno designou pelas expressões "pensar em bloco" e "mentalidade do ticket", fenômenos típicos das sociedades capitalistas tardias. De modo que, em sendo este eclipse da capacidade de reflexão o fato fundamental, passa para um plano secundário se o jargão ideológico vem recoberto de um verniz pretensamente "progressista":


"É verdade que os indivíduos psicologicamente mais humanos são atraídos pelo ticket progressista, contudo a perda progressiva da experiência acaba por transformar os adeptos do ticket progressista em inimigos da diferença. Não é só o ticket anti-semita que é anti-semita, mas a mentalidade do ticket em geral. A raiva feroz pela diferença é teleologicamente imanente a essa mentalidade e está ? enquanto ressentimento dos sujeitos dominados da dominação da natureza ? pronta para se lançar contra a minoria natural (isto é, naturalizada), mesmo quando eles são os primeiros a ameaçar a minoria social" (Idem, p.193. O grifo e a observação entre parêntesis são meus).


Também as possibilidades de constituição do senso de realidade são drasticamente afetadas neste processo. "Em certo sentido", dizem Adorno e Horkheimer, "perceber é projetar". Da indiferenciação entre o mundo interno e externo até a formação do "eu idêntico" em oposição ao mundo, que, não mais sendo assimilado aos homens, pode ser conhecido e dominado por eles, ocorre todo o trabalho da cultura e da civilização, o qual impõe aos indivíduos um crescente controle daquela projeção inicial que os identificava à natureza, tendo estes que aprender ao mesmo tempo a aprimorá-la e a inibi-la:


"Aprendendo a distinguir, compelido por motivos econômicos, entre pensamentos e sentimentos próprios e alheios, surge a distinção do exterior e do interior, a possibilidade de distanciamento e identificação, a consciência de si e a consciência moral" (Idem, p. 175).


Assim, senso de realidade e pensamento constituem o outro lado deste processo de "educação" da faculdade projetiva. Aqueles não existindo sem esta e vice-versa. Com a mencionada regressão à "mentalidade do ticket", cujo signo maior é o maniqueísmo ? que, diga-se de passagem, impregna a ideologia de uma certa esquerda num grau difícil mesmo de acreditar ?, dá-se uma perda de realidade, visto que diminui a capacidade dos indivíduos elaborarem e, portanto, distinguirem tanto as informações que vêm do ambiente social quanto aquilo que lhes é próprio. Por isso, também soçobra o sentido moral, uma vez que este só existe na medida em que operam conjuntamente estes dois princípios opostos e complementares que são a capacidade de discernimento e de empatia. O resultado é o desvario paranóico da falsa projeção:


"Não conseguindo mais devolver ao objeto o que dele recebeu, o sujeito não se torna mais rico, porém, mais pobre. Ele perde a reflexão nas duas direções: como não reflete mais o objeto, ele não reflete mais sobre si e perde a capacidade de diferenciar. Ao invés de ouvir a voz da consciência moral, ele ouve vozes; ao invés de entrar em si mesmo para fazer o exame de sua própria cobiça de poder, ele atribui a outros os ?Protocolos dos Sábios de Sião?. Ele incha e se atrofia ao mesmo tempo." (Idem, págs. 176-77, grifo meu).


A esta altura, já estão dadas a condições para compreender o fenômeno aludido acima, aquele do "criminoso de consciência limpa":


"O anti-semitismo baseia-se numa falsa projeção. Os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto, lhe pertencem são atribuídos ao objeto: a vítima em potencial. (…) O indivíduo obcecado pelo desejo de matar sempre viu na vítima o perseguidor que o forçava a uma desesperada e legítima defesa (…)" ( Idem, p. 174).


Da mesma forma, voltando ao artigo da Sra. Felinto, quando se lê que:


"A hipocrisia do rabino é flagrante: está claro que ele defende a pena de morte para brasileiros pobres. No seu delírio, o rabino deve ter achado que aqui é uma espécie de Israel ? e que a esmagadora maioria dos brasileiros, da classe pobre, é uma espécie de Palestina a ser eliminada da face da terra!"


O que está efetivamente "claro" aqui é a quem realmente pertence este delírio de extermínio que esta senhora maldosamente, mas de forma sintomática, atribui ao rabino e, por tabela, aos judeus brasileiros. Aliás, igualmente sintomático ? e também esclarecedor, devido à forma particularmente burra e sem subterfúgios com que é feito ? é o paralelo traçado com o conflito no Oriente Médio. Difícil encontrar exemplo de maior poder ilustrativo de como os anti-semitas em todo o mundo estão se utilizando deste conflito para tentar legitimar-se, como nunca antes, desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Neste ponto, é perfeitamente possível traçar um rigoroso paralelo entre a Sra. Felinto e o seu "caro amigo" Georges Bourdoukan. Como um leitor atento poderá facilmente notar, qualquer semelhança entre as "análises" desta senhora sobre o assassinato da jovem Liana Friedenbach ("a menina rica") e a teratologia produzida pelo Sr. Bourdoukan não será mera coincidência. Assim como aquela se utiliza de uma declaração de um rabino para justificar uma atrocidade bárbara, ao mesmo tempo em que este é pintado como o líder de uma comunidade de ricaços e acumuladores alógenos, sedentos do sangue dos "nacionais"; este igualmente se utiliza do conflito do Oriente Médio para pintar os judeus israelenses como um bando de capitalistas malvados, que fingem que são um povo e que têm história, língua e instituições, mas que na verdade não passam de uma plasmação do dinheiro e do poder ocidentais; Israel sendo tachado por isso de "entidade sionista", nome código para legitimar o programa genocidário que incita à sua destruição violenta, visto que se trataria de um "Estado artificial" (expressão de um racismo aberrante), um "corpo estranho" no Oriente Médio, cuja vocação de nascença seria o domínio e também o "extermínio" dos "povos árabes" e que, portanto, deve ser extirpado a todo custo.

Inversamente, de forma análoga à anti-semita Marilene Felinto, para o anti-semita, digo, "anti-sionista" Georges Bourdoukan todas as atrocidades cometidas contra judeus israelenses (as quais remontam a muito antes da Guerra dos Seis Dias); assim como todas as guerras movidas por regimes árabes com o fim de riscar Israel do mapa; assim também como toda a virulência da pregação anti-semita promovida sistematicamente, desde bem antes da fundação do Estado de Israel, na maioria dos regimes despóticos do Oriente Médio, que, pela sua avassaladora presença na mídia, na imprensa, entre os intelectuais, no sistema de ensino, nos meios políticos e nas agências governamentais, só tem mesmo paralelo com a Alemanha nazista; para o "caro amigo" Bourdoukan, tudo isso não passa de uma "desesperada e legítima defesa"… Não nos enganemos com o fato de que este senhor tente se investir do papel de defensor dos palestinos, utilizando-se de uma causa justa de libertação nacional para que seu ódio contra os judeus e seu desejo de aniquilação do povo israelense apareçam transfigurados como nobres anseios de liberdade e justiça.

Terminada a análise, longa mas necessária em face da importância e seriedade do tema em questão, seria o caso de fazer uma pergunta ao conselho editorial da revista Caros Amigos, qual seja: considera este conselho editorial legítimo, em nome da "democracia" e do "pluralismo", veicular agressões de conteúdo racista? Entende este conselho que não possui nenhuma responsabilidade sobre isto?

Logo após o 11 de Setembro, seguiu-se uma série de atentados e agressões contra a população árabe e islâmica norte-americana. Pessoas foram mortas e feridas, e mesquitas depredadas. Na seqüência, o presidente dos EUA, George W. Bush, cujas credenciais "democráticas" todos conhecemos, fez uma visita a uma mesquita de Nova York. O país acabara de sofrer um ataque terrorista no qual cerca de 3.000 mil pessoas haviam sido massacradas num único dia, número equivalente a mais de dois anos da soma dos mortos palestinos e israelenses no conflito do Oriente Médio. Mesmo assim, o Sr. Bush não tentou "explicar" aos seus ouvintes na mesquita porque eles estavam sendo agredidos. Nem lhes pediu que "compreendessem" os motivos dos agressores, pois afinal seria muito "natural" que as pessoas estivessem "nervosas" após uma matança de tamanho vulto. Ao invés disto, o Sr. George W. Bush afirmou que o governo dos EUA não iria tolerar que as agressões continuassem, classificando estes criminosos (pois é disto que se trata) como "gente da pior espécie".

O filósofo esloveno Slavoj Zizek, em livro recente, comentando as reações da esquerda ao 11 de Setembro e, subseqüentemente, à ameaça de guerra ao Afeganistão, observa:


"A reação predominante na esquerda européia ? e também na americana ? foi nada menos que escandalosa: todas as asneiras imagináveis foram escritas e ditas (…). Uma situação triste, em que George Bush demonstrou maior poder de reflexão do que a maior parte da esquerda! (…) Com essa ?esquerda?, quem precisa de direita?" (Bem-vindo ao deserto do real, pág. 68 e 70-71).


E o que dizer então de uma "esquerda" que não só é conivente com a barbárie do anti-semitismo, mas também toma parte ativa na sua disseminação?

(*) Historiador pela Universidade de São Paulo

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