Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Reação preconceituosa

Roberto Belisário (*)

Nos primeiros dias do mês de março foi publicado, em endereço no site do Banco Mundial (Bird) <www.worldbank.org/research/growth/>, estudo estatístico de dados de 80 países, distribuídos ao longo de 40 anos, que conclui que a camada mais pobre da sociedade é beneficiada por políticas bem afinadas com os ditames do FMI e com o discurso neoliberal: abertura das economias nacionais ao mercado e ao fluxo de capitais internacionais, leis eficientes sobre defesa da propriedade privada, disciplina fiscal, controle dos gastos do governo e controle da inflação. Também afirma que o nível de matrícula escolar e dos gastos sociais e mesmo a presença de instituições democráticas formais não têm influência significativa sobre a desigualdade de renda.

Um texto tão polêmico naturalmente causou reação adversa de boa parte da imprensa. Devo dizer, desde já, que as conclusões dos autores têm defeitos evidentes. Quero dar aqui uma noção mais precisa sobre seu conteúdo do que foi dado na mídia em geral, e comentar a reação desproporcionalmente precipitada da Folha de S. Paulo (6/6/00), que talvez tenha refletido algumas concepções prévias comuns em todas as pessoas – mas que temos todos o dever de evitar.

O artigo é de autoria de David Dollar e Aart Kraay, do Banco Mundial. Os dois pesquisadores coletaram, em diversas fontes, dados sobre indicadores econômicos e sociais de um conjunto de 80 países (ou 42% de um total de 192 países independentes atualmente). Não há, no texto, indicações sobre a composição da amostra – como o número de países do Terceiro Mundo –, o que seria importante para se ter uma noção da representatividade desses 42%. Os dados distribuem-se entre 1960 e 2000. Houve uma seleção das fontes e dos indicadores que lhes pareceram mais confiáveis. Desses dados os autores retiraram informações sobre o crescimento da renda média da quinta parte mais pobre da população e da renda média da população como um todo, bem como outros parâmetros envolvendo as conclusões descritas abaixo. Após tratamentos estatísticos dos dados, tabelas e gráficos, tentaram responder a algumas perguntas sobre a influência de determinadas políticas macroeconômicas e instituições sobre a distribuição de renda nos países.

Os favorecidos

O primeiro resultado é de que o crescimento econômico implica, em média, o aumento da renda da faixa pobre proporcional à renda média da sociedade. Isto não é tão óbvio: há muita polêmica sobre se determinados tipos de crescimento econômico aumentam a renda dos pobres em menor grau que a renda média, aumentando a desigualdade social.

Além disso, os autores tentam desmontar o que chamam de “mitos populares”, afirmando que:

  • Não é verdade que a relação entre o crescimento da renda da faixa pobre e o da renda da sociedade como um todo é desfavorável à camada mais pobre nos primeiros estágios do crescimento econômico. Ela mantém-se constante através do tempo;
  • Não é verdade que essa relação declinou nas últimas décadas;
  • Não é verdade que a relação é influenciada pela presença de instituições democráticas formais, nem pelo grau de matrícula na escola primária, nem tampouco pelo nível de investimentos sociais do governo.

Para arrematar, após analisar o impacto de algumas políticas macroeconômicas na desigualdade de renda, os autores afirmam que a relação é mais favorável aos pobres nos países cujo crescimento foi induzido pela abertura da economia ao mercado e ao fluxo de capitais internacionais, por leis eficientes sobre propriedade privada, pela disciplina fiscal, pela estabilidade inflacionária e pelo controle dos gastos do governo.

Entre os muitos dados sobre a constância ou a diminuição da desigualdade de renda, não há nenhum que implique o aumento da desigualdade. Daí a conclusão final dos autores: “Sabemos muito pouco sobre o que causa mudanças sistemáticas na distribuição de renda.”

“Preliminar e incompleto”

Não vou entrar aqui no mérito da adequação do tratamento estatístico adotado ou dos modelos para os indicadores econômicos selecionados. Há defeitos na argumentação dos autores que parecem-me mais importantes. Eles confundem diversas vezes “constância na distribuição de renda” com “constância na condição social dos pobres”. Isso acaba levando a conclusões como “a globalização é boa para os pobres”, ou a sugestões para todos os países adotarem o pacote clássico do FMI.

Por exemplo, analisando a renda média da faixa pobre em relação à de toda a sociedade, é deixada de fora parte do emprego informal (ou todo ele), que pode ter importância crucial em alguns países, como o Brasil, e sobre o qual há estatísticas muito imprecisas. O próprio crescimento do desemprego pode distorcer as medidas da desigualdade de renda. Além disso, o tamanho da renda não diz tudo sobre o poder aquisitivo dos pobres. Uma política macroeconômica pode manter constante ou mesmo melhorar a distribuição de renda, mas encarecer produtos e serviços (escola, saúde etc.), de maneira a torná-los menos acessíveis à faixa pobre.

Outra sutileza, desta vez apontada no artigo, é que o impacto de uma diminuição na distribuição de renda pode ser bem mais perniciosa para os pobres que para o resto da população. Tudo isso inviabiliza completamente a identificação de “constância da relação de renda” com “constância da condição da faixa pobre”.

Além disso, ao concluir que a democracia não influencia na distribuição de renda, eles não levam em conta que o parâmetro utilizado, a presença de instituições democráticas formais, não garante a própria democracia. Por exemplo, a Rússia tem todas as instituições democráticas formais, e no entanto tem regime autoritário; regimes como os de Fujimori no Peru e de Chávez na Venezuela tendem a manter instituições democráticas de fachada, enquanto manipulam-nas para sua própria glória.

O artigo foi qualificado pelos próprios autores como “preliminar e incompleto”, seguindo-se a expressão “comentários são muito bem-vindos”. Mas a subjetividade nas conclusões contrasta com a intenção de objetividade dos cálculos numéricos. Conclusões mais limitadas, subordinadas às premissas da pesquisa – como, por exemplo: “Com base nestes resultados não é possível encontrar nenhuma evidência de que o crescimento da distribuição de renda da faixa pobre em relação a toda a sociedade seja influenciada por investimentos sociais etc.” – teria sido muito mais idônea.

País atípico

A reação natural das pessoas a um estudo como esse não passa apenas pela estranheza às conclusões precipitadas dos autores. Há a reação intuitiva devido à polarização quase ideológica a que está submetida a sociedade, com respeito às questões concernentes à globalização e ao neoliberalismo; e devido ao contraste entre o que diz o artigo e o que vemos o tempo todo no Brasil. Sabemos, por exemplo, que já exaurimos as energias da sociedade brasileira com políticas de controle da inflação e de crescimento do PIB e da balança comercial; é necessário recuperá-las com medidas sociais urgentes – isso é precisamente o oposto do que sugere o artigo.

Além disso, há também uma certa reação natural a qualquer estudo com a arrogante pretensão de exibir conclusões objetivas baseadas num estudo matemático de um assunto essencialmente inabordável por métodos puramente quantitativos.

Ora, o que se esperaria da imprensa é justamente tentar neutralizar as reações baseadas em conceitos prévios e de estabelecer uma análise mais isenta. Estudos quantitativos sobre sistemas sociais, por exemplo, só são arrogantes quando esquecem o fato de que ser quantitativo não implica em total objetividade, uma vez que passam por processos como seleção de variáveis e de modelos cuja adequação é necessariamente determinada por uma avaliação subjetiva. Além disso, rigorosamente falando, as conclusões dos autores não são aplicáveis ao caso brasileiro – pela simples razão de que o Brasil é um país totalmente atípico, entre outras coisas porque tem uma das maiores desigualdades de renda do mundo. Isso impede que possamos analisá-lo com base em uma média de 80 países. A própria conclusão final do artigo, sobre nossa ignorância a respeito das causas da desigualdade de renda, limita ainda mais sua aplicabilidade ao nosso caso.

Despreparo, má-fé

A Folha de S. Paulo (6/6/00) parece ter sido o jornal que deu mais importância ao artigo de Dollar e Kraay, noticiando-o na sua página “nobre” – a quarta – e dedicando-lhe um de seus editoriais do dia 7.

Vimos que a imprensa tinha enormes motivos para contestar as conclusões de Dollar e Kraay. Uma discussão ponderada sobre o mérito das conclusões do texto poderia ser bastante esclarecedora sobre os efeitos da globalização e das políticas neoliberais, bem como de outras medidas macroeconômicas – ou até mesmo para cobrar do nosso governo medidas tão necessárias, como o combate à sonegação de impostos e o controle dos gastos públicos. Mas as matérias da Folha exibiram reações claramente exageradas e vitimadas pela precipitação preconceituosa.

O editorial do dia 7 acusou os autores de “despreparo ou má-fé”. Ora, a própria Folha, no dia 6, cometeu vários erros ao noticiar a publicação do artigo: para começo de conversa, o título da reportagem associa as conclusões ao próprio Bird – “Para o Bird, práticas liberais antipobreza são eficazes” –, enquanto é deixado bem claro no texto de Dollar e Kraay que a sua opinião não reflete a do Banco Mundial. Além disso, a idéia de que os autores defendem o “ajuste fiscal no lugar de maiores gastos com a educação” é contraposta, pela Folha, às críticas recentes de líderes políticos aos ajustes impostos aos países em desenvolvimento, inclusive do sociólogo Fernando Henrique Cardoso (não confundir com o presidente que ocupa o mesmo corpo).

Ora, os autores não falam nada sobre ajuste fiscal! Falam sobre “disciplina fiscal” (fiscal discipline), o que é bem diferente. Nossa história econômica recente fez com que a expressão “ajuste fiscal” estivesse fortemente associada a aumento de impostos e se tornasse carregada de conotação negativa. Já disciplina fiscal inclui, por exemplo, combate à sonegação, medida muito necessária no Brasil. Trata-se, portanto, do uso de distorção de informação para criticar um argumento. A distorção propagou-se para outras fontes, como o programa Conversa afiada, de Paulo Henrique Amorim, que passou na TV Cultura de São Paulo no dia 6 e que baseou na reportagem da Folha parte de sua matéria sobre o assunto.

Pouco produtivo

Aliás, nesse programa foram mencionados trabalhos – alguns feitos pelo próprio Banco Mundial – que contradizem os resultados do artigo de Dollar e Kraay, em particular sobre a importância da educação e dos investimentos sociais. As citações foram feitas pelo entrevistado, o professor de Economia da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzo. É um exemplo de informação muito útil numa análise racional.

A crítica, também presente no editorial da Folha, de que as conclusões referem-se somente a mudanças na distribuição de renda, e não à distribuição em si, tem pouco sentido, porque os autores deixam bem claro que o escopo do artigo é justamente sobre essas mudanças, não sobre a própria distribuição. Além disso, a reportagem critica a idéia de que a globalização faz bem aos pobres levando em conta que ela é sustentada pela análise entre a distribuição de renda dos anos 80 e 90. Isto está errado: os autores sustentam-na com base nas diferenças do crescimento da distribuição de renda entre países que adotam e que não adotam a abertura ao mercado e ao fluxo de capitais estrangeiros. A análise temporal foi feita para sustentar outras teses, e se dá entre os períodos 1960-80 e 1980-2000, que não separa claramente os períodos antes e depois do início da globalização.

Enfim, não parece ser muito produtivo combater “despreparo e má-fé” com mais despreparo. É perfeitamente possível desbancar os argumentos de Dollar e Kraay com o uso de uma análise crítica verdadeira.

(*) Físico