PAUTAS DE MERCADO
Cláudia Rodrigues (*)
Passando pelo Observatório na internet, fico sabendo que tem uma novela da Globo, a primeira das três ou quatro que passam ao dia, que veio para ridicularizar tudo de bom que teve o movimento hippie, e idolatrar a única coisa que não serviu para nada: a maquilagem da coisa. Que pena!
Dois cliques depois, fico sabendo das músicas que chamam mulher de cachorra, dos bailes em que as adolescentes vão sem calcinha. Fico enjoada, mas finalmente entendo por que as brasileiras não fazem topless, e chego a dar graças a Deus. Topless, no Brasil, não seria uma forma de dignificar as mamadeiras humanas, trazer à baila a delicadeza do feminismo. Provavelmente teria concurso em praça pública para avaliar o seio mais belo, a cirurgia mais bem feita. Uma cachorrada total com um movimento que já chegou caricaturizado pelas americanas.
Mais um clique e posso perceber que aquela coisa, No limite, continua sem limites. Sem comentários também. Então leio sobre os desenhos inanimados, as armas poderosas, a recompensa para os heróis exterminadores. Sinto o peito apertar, vou ao banheiro e quando começo a lavar as mãos surpreendo-me com meu semblante, tenho a testa franzida, os cantos da minha boca estão abaixados. Sinto uma imensa vontade de gritar ao mundo: "Parem de assistir TV, não se deixem levar pela curiosidade mórbida ao sintonizar o dial numa música para mulheres-cachorras". É claro que não grito, fica o sufoco e não é pessoal.
Aqui em casa, quando nos encontramos à noite temos a companhia dos livros, os prazeres das artes manuais, consertos, reparações em objetos; é hora de colocar os pratos na mesa, comer. É tempo, ainda, de escutar música, ouvir as histórias das crianças ou contar alguma passagem da nossa infância. Por Deus, é tempo de colocar os filhos para dormir, trocar planos e sonhos com o marido, cultivar o casamento. E já é tarde, coisas ficam por fazer. Será que minha família é alienada do mundo real? Os valores parecem se inverter. Alienado é quem não assiste TV?
Eca meleca!
É. Alienada sou eu, e tenho certeza disso quando escuto mais um sonoro não para uma pauta que questionaria a escola em tempo integral, comparando-a aos condomínios fechados, que levam a gurizada a formar gangues devido a um sentimento de onipotência, um pseudopoder. A editora diz que essa pauta não interessa ao mercado ? afinal, os pais precisam se livrar dos filhos em tempo integral. E ainda exclama: "Ah, Claudinha, quando é que você vai cair na real? Você escreve bem mas, realmente, essas sua visão idealista das coisas não está com nada". Esqueço a editora. Essa tem que dar um tempo, se ficar com raiva dela, aí sim é que não baixam as idéias.
Preciso pensar numa pauta que emplaque e ao mesmo tempo não violente o que penso e sinto. O buraco está cada vez mais fundo. Há uma brecha, tem que haver, nada muito sério, coisa séria tenho que deixar para os artigos, refúgios não-remunerados que trazem satisfação interna. Sei que sem eles cavaria um câncer. Engolir sapos causa câncer.
Dou um pulo na banca de revistas, devo me inteirar da coisa toda, afinal não posso viver alienada, enterrada em livros de filosofia, antropologia e psicologia. Se fosse intelectual, mas nem isso, detesto vida acadêmica. Até hoje fui incapaz de escrever um livro, buscar patrocínio. Nãnãnã, não dá para escrever um livro inteiro sem receber, não sei fazer mais nada para ganhar dinheiro. E, depois, ninguém iria querer editar idéias subversivas à ordem. Fora de questão, o negócio é resumir-me a minha insignificância.
Tenho de bolar uma pauta que emplaque, escrever certo por linhas tortas, fazer aquela curva exata entre a bobeira e a realidade. Tititi, Caras, Chiques e Famosos. Não dá para encarar, não consigo terminar de ler as chamadas. Compro uma de esportes, para meu filho mais velho, encontro uma de bonecas de papel, para a pequena. Suspiro. Cansei da Bundas, é muita risada para pouca gente. A Caros Amigos é elite intelectual, sem chance. Desisto dela, definitivamente, quando leio uma queixa ridícula da editora que foi a Chiapas, não conseguiu fazer sua matéria, e descarrega a inveja em cima de um colega brasileiro que estava lá e conseguiu. Eca meleca!
A República eu lia, até o dia em que eles resolveram dar capa ao Elcimar Coutinho. República virou Veja, veja!
Marta na capa
Marie Claire, revista de consultório de dentista. Quase a versão feminina da Caros Amigos. Poderia se chamar Ricas Amigas. Não dá. É pod?re chique demais para uma duranga como eu. A Nova ainda não chegou à década de 80. A Cláudia continua na nova mulherrr, a Dieta Já, e cia ltda., só passa a mão na cabeça das gordas com receitas diet. Detesto passar a mão na cabeça do leitor.
Por que não aprendo? É só fazer um lide engraçadinho, linguagem pipocante, colocar uns paninhos quentes e está pronta a matéria, mais um troco na conta e posso seguir sendo eu mesma em minha vida particular. Vai lá garota, seja servil, não pense, só capte as idéias da editora, siga a linha mercadológica, fique boazinha. Não consigo. Deve ser porque nasci em março de 64, minha mãe passou a vida me chamando de Janis, sou a filha do meio, a única castanha numa família de louros, mais alta do que todos os irmãos e ainda passou o pai. Geringonça, fiquei do contra.
Tem uma nova, a Uma. Marta Suplicy na capa. Compro e saio triunfante. Quem sabe é essa que vai me tirar da alienação das notícias cotidianas, e daí surge a pauta certa, para a revista certa na hora certa? A esperança nunca morre. Ainda bem!
Sem culpas
Primeira decepção: a heroína feminista da década de 80 afirma que não sabe fazer comida, é o marido que lava a louça e arruma a cama aos domingos, e abre uma brecha ao exclamar que levou anos para perceber que ser dona-de-casa até pode ser uma opção. Ela sonha em arrumar o armário de sapatos mas quando chega em casa liga a televisão. Não é alienada e nem se sente culpada porque tem isso resolvido em sessões de psicanálise. Está lá, na década de 80, ainda! Quando termino de ler a entrevista, resta um consolo: será melhor prefeita do que o Pitta, com certeza, mesmo confessando que tudo o que descobriu sobre ser mulher é o direito de comprar suas próprias roupas, alimentar a vaidade com tinturas de cabelo e plásticas necessárias. E é a Marta. O que doeu mesmo foi saber que uma das minhas mães de papel não passa de uma dondoca profissional. Tudo bem, sempre gostei mais da Marina Colasanti mesmo. Mas juro que vou ficar com medo de ler uma entrevista com ela também.
Ainda não li o resto da revista. Já foi demais por hoje. Nada de pautas, as idéias vêm, mas não servem, não encaixam no mercado. Preciso me abrir para o mundo, globalizar minhas idéias, esquecer ideais, pensamentos, associações, sentimentos.
Já sei! Por ora vou diminuir os gastos, tirar o dia de folga, sem culpa, me consolar com Toynbee, de onde, definitivamente, não sairá uma pauta apropriada ao mercado. Tem um capítulo em Um estudo da história a que eu sempre volto, e é para lá que eu vou: "É convincente o determinismo?"
Daqui, da nova alienação, adeus.
(*) Jornalista
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