COMUNICAÇÃO DAS ONGs
Alessandra Nilo (*)
Publicado originalmente na Revista do Terceiro
Setor <http://rets.rits.org.br/>,
em 20/11/03, com o título "Comunicação estratégica
para as ONGs: reflexões para debate"
A Declaração Universal dos Direitos Humanos coloca a liberdade de expressão como a base do desenvolvimento individual e social. Por motivos óbvios, não há liberdade de expressão sem a possibilidade de se comunicar. O meu objetivo aqui é fazer algumas provocações para acirrar o debate sobre o tema, partindo do princípio de que as ONGs ainda não compreendem a importância estratégica da Comunicação como eixo transversal de sua intervenção.
A grande pergunta para reflexão é por que, se a Comunicação é tão importante para Gestão, ainda é tão pouco utilizada? Ela nos remete ao cenário nacional da comunicação do Brasil onde as respostas e políticas sociais têm como origem uma intervenção contundente e articulada da sociedade civil. Interferimos na construção e na solidificação de políticas públicas para diferentes questões sociais nos âmbitos federal, estadual e municipal. Desenvolvemos um conceito único, do qual muito nos orgulhamos, chamado "Controle Social".
Entretanto, a participação e interferência no setor da Comunicação Social não avançou na mesma proporção, o que nos deixa ainda pouco familiarizados(as) com o tema. Mesmo vivenciando um momento histórico reconhecido como a "sociedade da informação" – nunca desenvolvemos meios de comunicação e divulgamos conhecimentos tão rapidamente e em tanta quantidade como hoje -, mesmo com o aumento da reflexão mundial sobre a Comunicação, no Brasil esta ainda é uma discussão recente e para poucos.
Neste sentido, a dificuldade que as ONGs enfrentam é semelhante às que os governos e partidos políticos, principalmente os de esquerda, vêm enfrentando. A pouca compreensão do movimento social e de outros setores sobre a importância estratégica do tema é resultado direto de poucas intervenções neste campo que é, sobretudo, político. A comunicação não apenas permite o acesso ao conhecimento, mas proporciona oportunidades sólidas para se construir uma visão crítica do mundo, especialmente para quem, com freqüência, enfrenta as exclusões às quais se relacionam as nossas causas sociais.
A construção de política institucional de comunicação nas ONGs é, portanto, mais do que uma simples opção: é um claro desafio para os nossos modelos de intervenção e gestão, onde precisamos considerar conjunturas internas e externas.
No cenário externo podemos destacar as mudanças nas relações com a cooperação internacional, que desde o final dos anos 80 vem realinhando a distribuição de recursos, ao mesmo tempo que complexifica as exigências de controle sobre o desempenho das organizações não-governamentais. No caso da saúde, por exemplo, esta realidade favorece África, Europa do Leste e Ásia, reduzindo a atenção à América Latina e o número de organizações apoiadas no Brasil.
Estimula-se a prática de parcerias não-financeiras com as organizações apoiadas e a cooperação exige cada vez mais critérios na seleção de novos parceiros: eficiência organizacional, política de desenvolvimento institucional, com planejamento, monitoramento, avaliação, política de gestão etc. Mais recentemente começamos a incorporar o conceito de accountability (visibilidade, legitimidade e responsabilidade pública).
No cenário nacional, as ONGs estão inseridas em um contexto socioeconômico marcado por um pensamento que prioriza o mercado sobre o bem-estar social, resultado de um processo de desenvolvimento excludente. E é justamente neste processo, onde os fortes ficam cada vez mais fortes e os fracos, cada vez mais reféns, com o Estado em plena reforma neoliberal, que surgiram as novas organizações com fins sociais, voltadas para prestação de serviços e pouco interesse em reflexão crítica. Com elas criou-se um "campo" que ganha cada vez mais visibilidade: o terceiro setor.
As causas é que precisam ser fortes. Marcas fortes são o resultado, não objetivo. O reajuste estrutural, os desafios do desenvolvimento sustentável e as desigualdades sociais redimensionam cada vez mais a necessidade de lutarmos por nossas causas, demandando mais suporte e ampliação da sua visibilidade para alcance de uma base de sustentabilidade (recursos humanos, políticos, financeiros e público beneficiado). Isso torna a compreensão da Comunicação fundamental para que as ONGs do campo da Associação Brasileira de ONGs (Abong) ajudem a desfazer as diferenças entre os vários Brasis que vivemos e buscamos influenciar. Basta uma rápida olhada no site da instituição (www.abong.org.br) para reconhecer o perfil das associadas da Abong:
** conformam um campo ético-político específico dentro do contexto das organizações da sociedade civil brasileira sem fins lucrativos, com finalidade pública;
** têm como principal perspectiva "a promoção de processos de mudança social para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e sustentável".
Para atingir suas respectivas missões, as ONGs filiadas à Abong têm como característica:
** atuar de forma não-assistencialista, procurando agir nas "causas estruturais" dos problemas, buscando influenciar na formulação e monitoramento das políticas públicas;
** promover ações de "advocacy"; fortalecimento, apoio e assessoria a movimentos sociais; pesquisa; processos de formação, qualificação e produção de conhecimento; incentivo à participação popular na gestão pública.
Hoje, mesmo com a existência de aproximadamente 250 mil organizações sem fins lucrativos que empregam mais de 1,5 milhão de pessoas, ainda há um enorme desconhecimento no Brasil por parte da sociedade civil, de profissionais, da universidade, gestores públicos, legislativo, judiciário etc., sobre a importância das ONGs para a formação de uma população cidadã, para a garantia dos Direitos Humanos e para construção de um país justo e democrático.
Do ponto de vista da comunicação, o aumento da "oferta de causas sociais" e a atual consolidação do conceito de "Mercado do Terceiro Setor" traz consigo a tentativa de transformar nossas missões institucionais em "produtos", numa lógica equivocada e baseada em experiências de marketing social voltado para empresas e governos. Temos agora especialistas em marketing para o terceiro setor, cursos sobre gestão, captadores de recursos e por aí vai. Entretanto, são poucos ainda os que consideram (e conhecem profundamente) a dinâmica das ONGs. Geralmente, partem da lógica das empresas e do mercado publicitário e apenas tentam "adequar" estes instrumentos para a nossa vida institucional.
Este é o paradigma que nos obriga, mais do que nunca, a assimilar a comunicação como estratégica. Nós, da Abong, temos o acréscimo da responsabilidade de nos diferenciarmos a partir da agregação dos nossos valores e do projeto de sociedade que estamos construindo. Bons recursos e um bom plano de marketing tornam fácil a construção de uma boa imagem. Nosso desafio é ir além disso. O nosso salto qualitativo se dá justamente porque não nos interessa apenas a construção da imagem, do "brand" institucional. Queremos o entendimento público, nosso espaço e reconhecimento como um trabalho de utilidade pública, de consistência, com identidade e que seja considerado fundamental para melhoria da qualidade vida do público/causa que desejamos atingir.
Para isso, os principais ingredientes são a Legitimidade e a Credibilidade. Legitimidade para que nossas reflexões e propostas sejam ouvidas e compreendidas pelo público parceiro. Credibilidade para garantir que a organização é idônea e apresenta propostas confiáveis. Entendida a diferença entre as nossas causas sociais, uma marca de refrigerante ou uma campanha contra o sarampo, entendido que nossas missões jamais poderão ser tratadas como "produtos", começa a etapa seguinte, a de desmistificar o uso das ferramentas de comunicação. E o marketing pode e deve ser um dos grandes aliados nesse processo.
Novos desafios para as ONGs
Segundo Ricardo Voltolini, "o marketing é uma ferramenta cujos resultados dependem, sobretudo da aplicação, da forma como o utilizamos. E ponto". Ele também levanta alguns pontos para reflexão sobre as dificuldades das ONGs encararem este desafio:
O marketing, como instrumento gerencial, pressupõe controle e mensuração de resultados com base em critérios objetivos. Acostumados a exercerem controle total sobre os processos de gestão, a mudarem rumos ao sabor de circunstâncias do dia-a-dia e a alterarem planos a partir de decisões unilaterais e subjetivas, alguns dirigentes resistem à idéia de submeter as instituições que administram a um planejamento de trabalho mais autônomo, construído com o grupo de colaboradores a partir de uma interpretação muito mais próxima da realidade do que de vontades pessoais e, portanto, mais suscetível a julgamentos de resultados.
Propõe reavaliações capazes de ressaltar fraquezas e necessidades de mudanças de práticas, equívocos e conflitos. Não por outro motivo, alguns planos de marketing costumam naufragar quando pregam alterações mais profundas no modo de prestar um serviço, de captar recursos ou mesmo de gerir a entidade. Ele avalia o trabalho da instituição a partir do nível de satisfação dos parceiros e dos beneficiários; como instrumento gerencial, pressupõe controle e mensuração de resultados com base em critérios objetivos.
Por fim, tem sido comum tratarmos a comunicação também apenas como um instrumento. Não podemos confundir essa etapa. A Comunicação contém instrumentos, como o marketing, por exemplo, mas não se limita a isso. É por isso que precisamos tratá-la como uma política institucional, que pressupõe planejamento estratégico e atenção no mesmo nível que as demais políticas da ONG, fundamental para o alcance da sua missão institucional.
Uma boa política de Comunicação vai permitir uma maior integração entre corpo técnico, ações institucionais e público parceiro. O resultado disso é o fortalecimento da marca, da imagem e da credibilidade da ONG e maior transparência e qualidade do trabalho. Ela também produz e sistematiza informações e conhecimentos, a partir de pesquisas e de produção de dados relevantes para sociedade, ao mesmo tempo em que socializa experiências e contribui com a construção de argumentos sólidos para o debate sobre as causas sociais pelas quais estamos lutando.
(*) Jornalista; fundadora da Gestos, Soropositividade, Comunicação e Gênero; coordenadora do Grupo de Trabalho de Comunicação da Abong e assessora para Direitos Humanos do Conselho Latino Americano e Caribenho de ONGs com Serviços em Aids (LACCASO)