MÍDIA NO IRAQUE
Afonso Caramano (*)
Mal começado o trabalho de rescaldo no Iraque depois dos intensos ataques da coalizão anglo-americana e da queda do regime ditatorial de Sadam Hussein, a mídia aponta o seu foco, sob uma ótica ocidental (e não poderia ser diferente), para o país ressurgente ? diga-se, com um olhar asséptico, do ponto de vista dos vencedores, aqueles que devolveram à liberdade o povo iraquiano. Principalmente as redes de TV enfatizam em suas imagens a vida restaurada, voltando ao normal, a um cotidiano livre ? no qual as pessoas podem retomar a existência ? ou aquilo que sobrou depois dos bombardeios e dos saques.
O que as imagens não mostram são as seqüelas, os traumas e as dificuldades imensas que os feridos e as vítimas têm de suportar e enfrentar. Sem contar a reconstrução do país (reconstrução já reclamada por muitos, inclusive o Brasil pleiteia a sua cota). Tampouco exibe o drama dos desamparados e dos miseráveis, resultado da ditadura ferrenha de Hussein e das sanções econômicas impostas ao país.
No entanto, a mídia não pôde evitar as imagens das primeiras manifestações religiosas dos xiitas nem dos protestos contra a presença norte-americana, principalmente depois do primeiro incidente com vítimas num confronto entre manifestantes civis e soldados americanos. E, claro, prevaleceu a versão oficial sobre o ocorrido. Talvez a tendência seja a repetição e intensificação de novos incidentes e protestos como esses, evidenciando a efervescência político-cultural e o caldeirão de contradições que o Iraque representa. É de se supor que a guerra ainda não terminou (mesmo que os EUA anunciem seu fim) ? desenrola-se nos bastidores do poder, no campo de batalha dos negócios e ainda na própria mídia, que também cobra o seu quinhão nessa história.
Ainda no terreno das suposições, poder-se-ia dizer que em certo sentido a operação militar ostensiva chegou ao fim ? vindo agora a etapa burocrática com a instituição de um governo de transição e a implementação do receituário globoneoliberalizante estadunidense ? expropriando o povo iraquiano de suas riquezas naturais e favorecendo a constituição de um governo fantoche que reze pela mesma cartilha (ainda que não traga a liberdade democrática tão prometida).
Dilemas à vista
Lavadas as mãos (e distribuídos os percentuais), o governo ianque inicia nova etapa (como a imprensa tem anunciado) garantindo apoio para a campanha de reeleição. Por ora seria arriscado e dispendioso abrir novas frentes de batalhas, quer seja no Oriente Médio ou na Ásia ? o momento é de recolher os louros da vitória e persuadir o eleitorado americano para, quiçá reeleito, Bush possa perpetrar os planos traçados pelos artífices de seu governo.
O peculiar dessa conjuntura é que se pode extrair algumas reflexões sobre a função e o papel da mídia ? pela maneira como esta tem procedido na cobertura e nos desdobramentos da guerra. A carapuça também serve para a mídia nacional, que parece ser capaz de vender a alma para sobreviver ou ampliar o seu alcance e poder manipulatório. O comprometimento ideológico ou político com facções dominantes costuma ser insalubre para a democracia e para a liberdade de pensamento ? assim como o comprometimento exclusivo com o capital ou o mercado.
O cidadão/leitor ? consumidor em última instância torna-se alvo desse círculo doutrinário/midiático ? no fundo esvaziado de sentido, mas que o mantém refém do próprio alheamento e com a falsa impressão de que está bem-informado.
Quanto ao Iraque já se noticiou o ressurgimento de segmentos da imprensa local ? pequenos jornais e rádios ?, agora é esperar para ver que tipo de imprensa (não-estatal) está surgindo depois de anos de repressão e atraso social (o índice de analfabetismo é altíssimo). Certamente serão muitos os problemas e dilemas que essa imprensa terá de enfrentar (sem contar a concorrência da mídia estrangeira).
(*) Funcionário municipal em Jaú, SP