Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Regina Augusto

‘No próximo dia 8 a Trip completa 18 anos. Símbolo de atitude e de opinião, a marca extrapolou a revista que lhe deu origem e hoje agrega ao seu entorno a TPM (Trip para Mulheres), um programa de rádio que é transmitido para 32 cidades em todo o Brasil e uma divisão especializada em trabalhos para outras marcas, dos quais o mais significativo são os títulos customizados. Para Paulo Lima, criador da Trip Editora, o foco de todos esses desdobramentos de negócios da empresa fundada em 1986 é apenas um: ‘Desenvolver uma comunidade. Temos uma boa habilidade em decodificá-las, estabelecendo uma ética, um eixo de valores. Quando você coloca isso para fora, começa a atrair pessoas físicas e jurídicas’, explica o ex-campeão estadual paulista de pólo aquático e eterno surfista. O gosto pelo esporte e o talento para a área de comunicações fizeram com que o advogado formado pela tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco descobrisse ainda durante o curso a vocação. Em 2004 a Trip Editora irá faturar aproximadamente R$ 22 milhões, o que representa um crescimento de 38% em relação aos R$ 16 milhões apurados no ano passado. A área de negócios para outros clientes responde por 60% desse volume e está em franca expansão. A mais recente novidade é uma publicação para a Natura, que ainda está sendo gestada e deverá ser lançada nos próximos dias. Nesta entrevista, Paulo Lima conta como tudo começou, fala do momento atual de sua empresa, de sua visão de mundo e a respeito do mercado de revistas.

Meio & Mensagem – Você é formado em direito. O que levou o jovem Paulo Lima a querer montar uma revista em 1986?

Paulo Lima – No meio da faculdade, em 1981, um amigo meu que é músico – também surfava e gostava de esportes – me chamou e contou que tinha um primo fazendo uma revista no Rio de Janeiro sobre alguns esportes que nós gostávamos. Ele havia sido convidado para ser representante em São Paulo e então propôs que eu fosse seu ajudante. Topei na hora e comecei a ver o projeto. Era uma revista chamada Visual Esporte, focada em surf, skate, vôo livre e wind surf, que depois vieram a ser chamados de esportes radicais. Fiquei fascinado porque eram coisas que eu adorava. Vi então a possibilidade de me aproximar dessa magia que é a comunicação.

M&M – E como foi essa experiência na revista?

Lima – Virei o ajudante do representante de vendas de uma publicação independente do Rio de Janeiro em São Paulo. Esse meu amigo é o Zezinho Mutarelli, que hoje é um dos principais produtores de trilhas sonoras do mercado. Ele começou a se desinteressar pelo negócio porque tinha uma vocação brutal para a música e foi para essa área. Além disso, o mercado para esses esportes naquela época simplesmente não existia. Era muito duro conseguir vender publicidade. Ele me disse que ia sair e perguntou se eu queria ficar fazendo as suas coisas. Com ele trabalhava também o Fernando Costa Neto, que hoje tem a revista Vênice. Os dois desencanaram. Saí com o Fernando e visitamos alguns clientes para que eu treinasse um pouco e visse como que era o discurso, porque até então eu ficava mais na retaguarda. Vi mais ou menos a maneira como eles conversavam. Eles me deram uma mala cheia de papéis, de tabelas de preço, talões de pedido e papel carbono. Assim eu comecei a vender publicidade.

M&M – Você ainda não tinha nenhum contato com agências?

Lima – Ainda não. Só que nessa época tive um estalo de que existia esse negócio chamado agência de propaganda e pensei que tinha alguma coisa a ver com o que eu fazia. Não conhecia absolutamente ninguém de nenhuma agência. Só que eu ia muito para Ubatuba nessa época e ficava na casa de um amigo cujo primo era publicitário. Foi então que o conheci. Esse cara é o Sérgio Lopes, que hoje é o dono da QG e naquela época trabalhava na CBBA. Um dia liguei para ele, contei que estava trabalhando nessa revista e perguntei como eu fazia para entrar em agência. Ele me disse para ir até lá que ele me mostraria. Então fui visitar o Serginho, que me recebeu e me mostrou uma coisa que na época achei fascinante: a dupla de criação. Não sabia que existia isso. Perguntei se eles além de fazer também compravam anúncios. E ele me explicou que havia um departamento chamado mídia e ligou para o responsável. Quero até render minha homenagem a essa pessoa, o Cláudio Matteucci, que na época era o diretor de mídia da CBBA. Ele foi de uma gentileza e de uma simpatia que não me esqueço jamais. Ele me deu um Anuário de Mídia e uma pilha de Meio & Mensagem e disse que era o jornal que liam para saber o que estava acontecendo no mercado. Emprestou-me tudo aquilo e passou como lição de casa a leitura desse material. Fiquei lendo o Meio & Mensagem para entender o máximo possível e fui vendo algumas matérias sobre a Rainha, por exemplo, e marquei a agência que atendia o cliente na época. Lembro que a Yamaha era atendida pela Denilson e marquei também. Então voltei lá no Cláudio que me indicou o nome das pessoas que eu tinha de procurar em cada agência. Para algumas ele até telefonou. Talvez sem saber, ele me deu um superempurrão. A partir dessas dicas comecei a visitar as agências.

M&M – E como foi essa experiência?

Lima – Marcava hora, levava as revistas, tabelas de preços e tudo o mais. Mas comecei a ver que por ali eu não ia conseguir nada. Se hoje ainda não é tão fácil para as grandes agências entender o que não é muito grande, naquela época isso era absolutamente invisível. Eu me sentia o homem invisível. Eu ia lá, ficava esperando horas até ser atendido por alguém que me dizia para deixar as revistas lá que depois entraria em contato. Nesse momento tive a sensação clara de que daquele jeito eu não ia conseguir ir pra frente. Eu mesmo teria que ir aos clientes diretamente.

M&M – E foi o que você fez?

Lima – Sim. Paralelamente a isso, no começo dos anos 80, o mercado começou a evoluir para olhar um pouquinho mais para esse público denominado jovem. E começou a entender que essas pessoas têm poder de consumo e, principalmente, de formar uma opinião muito forte. Então começaram a surgir alguns focos de empresas para atender essa demanda. Apareceu a OP, que foi o meu primeiro grande cliente, com o qual fiz um plano de comunicação na revista para o ano inteiro. Foi a primeira vez que vi que aquilo tinha alguma consistência. Passei a sentir que eu fazia parte de alguma coisa. Depois da OP foi surgindo um núcleo de lojas, ali em volta do shopping Ibirapuera (zona sul de São Paulo), voltadas a surf, mergulho e, de repente, comecei a formar uma carteirinha de clientes.

M&M – Você tinha alguma ingerência com relação ao conteúdo da revista?

Lima – Foi então que surgiu uma segunda fase: alguns desses anunciantes que estavam começando a comprar espaço falaram que não iam mais anunciar porque a revista era do Rio e o conteúdo não tinha nada a ver com São Paulo. Fui ao Rio para falar com os donos da revista e explicar que ela precisava de algum conteúdo sobre São Paulo. Um dia eles me disseram para arrumar alguma coisa que seria publicada. Então eu mesmo comecei a escrever, tirava algumas fotos e mandava pra lá. Comecei a procurar fotógrafos e assuntos pertinentes à revista. Primeiro me deram uma página, que se chamava Visual São Paulo. Escrevia notinhas. Depois comecei a cobrir alguns eventos. A minha primeira matéria foi sobre um campeonato de wind surf, em 1982. Fui pra Ilha Bela, cobri, relatei e publiquei na revista. Isso foi crescendo, de uma página nasceram duas. Quando chegou em 1985 eu já tinha aqui em São Paulo um escritório com umas 12 pessoas trabalhando, entre fotógrafos e secretária. Eu produzia uma quantidade razoável de conteúdo.

M&M – Você que era o editor desse material?

Lima – Nem sabia, mas era. Eu vendia mais ou menos 70% da publicidade da revista e já cuidava de uma parte importante do processo industrial. Ao longo do tempo, a gráfica que era usada no Rio fechou. Fui descobrindo canais aqui em São Paulo. Eu tinha uma sensação clara de que a revista não estava evoluindo no mesmo ritmo que as pessoas e o mercado estavam. Sentia-me muito aprisionado nos assuntos, na visão de mundo da revista. Era algo muito focado na performance dos esportes. Ela se fechava naqueles assuntos. Eu sentia que o grupo que eu freqüentava, o universo pelo qual eu transitava, estava querendo se expandir, estava enxergando mais coisas, mais possibilidades. Nos anos 70 a segmentação de comportamento era muito radical. Você era roqueiro e ponto, surfista e ponto ou punk. Você não era mais do que uma coisa. Comecei a sentir que havia uma chance das pessoas poderem ser mais do que uma coisa só ao mesmo tempo. Sempre gostei de andar muito em todas as turmas e não ser de nenhuma. Sentia isso empirica e instintivamente. Uma hora essa questão da revista começou a me deixar desconfortável e passei a não gostar mais do que eu vendia. Resolvi conversar com a diretoria e propor as mudanças que achava necessárias. Sentei com o dono da Visual Esporte e mostrei o que eu pensava que tinha que ser feito. Ele concordou com duas ou três coisas. Não concordou com as outras. Decidi tocar a minha vida e acabei saindo da revista.

M&M – Sua estrutura foi mantida?

Lima – A essa altura eu já tinha um escritório com equipe, uma ampla carteira de clientes, o software já tinha sido desenvolvido. Existia um mercado de surfe, com campeonatos, eventos. Eu tinha estabelecido relações legais. Os clientes já confiavam em mim e tudo o mais. Eu tinha 23 anos. Cheguei a pensar em morar em Florianópolis e abrir um videoclube. Um dia contei isso a um dos meus clientes, que estava meio bêbado, e disse que eu não poderia sair daquele mercado. Senti que era querido e que tinha valido alguma coisa tudo o que havia colocado ali. Isso me motivou a pensar na possibilidade de ficar nesse mercado. Eu já tinha sido pego pelo vírus da edição, que na verdade era o que eu queria fazer desde o começo. Em 1985 fui para Porto Rico pegar onda com uns amigos. Fiquei um mês e meio mais ou menos. Nessa viagem comecei a escrever o que achava que seria uma revista mais contemporânea, direcionada a esse público que eu gostava. Quando voltei da viagem chamei algumas pessoas que trabalhavam comigo, inclusive lá do Rio, para olhar esse projeto e dar alguma contribuição a ele. Assim nós fomos concebendo a Trip.

M&M – O nome já existia naquela época?

Lima – O nome eu bolei depois, dentro do carro, indo para a praia. Assim, na estrada, sozinho. Gostei muito porque o nome não era preso a nenhum significado, tinha múltiplos sentidos. Na época eu pensava nessa coisa da viagem mesmo, do deslocamento físico. Pensava na viagem mental. Na possibilidade de explorar a mente em todos os estágios de raciocínio.

M&M – Você se associou a alguém no início?

Lima – Sim, depois que concebi esse projeto saí em busca de apoio. Um dia, numa festa de família, encontrei um empresário que era meio aparentado e expliquei a ele que tinha um projeto. Ele contou que estava querendo diversificar. Tinha uma empresa atacadista de artigos de papelaria. Nós marcamos um encontro e ele gostou bastante do projeto. Resolvemos abrir uma empresa. Ele ficaria com a metade em troca de um aporte de capital. Acho que deve ter sido de uns US$ 40 mil. Assim nós começamos a Trip. Sendo que, de cara, na hora de conceber mesmo a revista, eu já resolvi comprometer uma parte importante desse aporte com comunicação. A primeira coisa que fiz foi contratar uma assessoria de imprensa. Depois contratamos um design gráfico, o Rafic Farah.

M&M – O projeto gráfico inicial é dele?

Lima – O projeto e o logotipo também. Até hoje estamos muito próximos. No começo ele me ajudou muito na concepção da revista. Isso não era uma coisa tão freqüente. Contratamos um design gráfico que já tinha uma cultura mais sofisticada na época e que imprimiu todo um estilo para a revista em termos de desenho, a começar pelo logotipo. Ela tinha um projeto editorial bastante ousado.

M&M – Como você posicionou a revista naquele momento?

Lima – Se eu te mostrar o folheto do lançamento, um broadside que fizemos quando lançamos o projeto, o texto é absolutamente atual. Era uma revista que já propunha uma visão de mundo aberta, procurava gente que tivesse a fim de conhecer todas as opções que o mundo oferece para escolher e editar a sua. Uma revista contemporânea que tinha a pretensão de ser um observatório avançado que olhasse as migrações, as mudanças, as alternativas que o mundo oferecia para o leitor escolher a sua. Sentíamos que ia chegar um momento em que você poderia ser o que quisesse, tudo ao mesmo tempo inclusive. A tese da Trip desde o início era essa. Em 1986 fizemos a festa de lançamento do projeto no Terraço Itália, com um show em que tocaram três bandas punks: Os Inocentes, Kid Vinil e os Heróis do Brasil e Maria Angélica Não Mora Mais Aqui. Ou seja, escolhemos um lugar onde essas bandas jamais tocariam. Era um pouco esse o conceito que queríamos passar. O que eu queria, já desde o começo, e deixei claro com essa festa, era que o nosso negócio era misturar mundos. Misturar tudo num mesmo caldeirão.

M&M – A revista inicialmente estava muito associada ao surfe.

Lima – Porque o surfe aparece com algumas propostas bastante diferentes. Primeiro, é fundamental para o seu prazer e para a sua saúde estar muito perto da natureza. Segundo, o corpo pode ser um instrumento de expansão para tudo, física e espiritualmente. Terceiro, ficar mais livre te dá mais liberdade de relacionamento. Quarto, viajar para vários lugares e entrar em contato com outras culturas. Esse esporte, conscientemente ou não, propunha essas coisas todas que hoje estão absolutamente incorporadas na nossa vida moderna. Hoje você não precisa ser surfista para querer ficar mais próximo da natureza e achar isso o máximo, nem para querer cuidar do seu corpo. Isso tudo foi absorvido pela sociedade com o passar do tempo e nem é algo mais só para jovens. Contudo, naquela época, esse esporte propunha tudo isso. Era uma quebra muito grande do lugar comum, do tal do paradigma.

M&M – Hoje a Trip está posicionada como uma revista de comportamento?

Lima – Somos uma revista de comportamento desde antes dessa expressão existir. Nosso negócio é observar gente e prestar atenção, fazer perguntas. Acho que sabemos perguntar muito bem hoje em dia. Olhar para as coisas e enxergar outras. Não enxergamos só a frente, só o obvio. Creio que isso tem diferenciado bastante a Trip, levando-a a se expandir, inclusive como empresa, atraindo outros negócios, outras marcas.

M&M – Ao longo de sua trajetória a Trip sempre se posicionou diante de alguns temas bastante polêmicos. Por exemplo, é a favor da descriminação da maconha, não aceitou propaganda de cigarros muito antes desse assunto vir à tona com o projeto do governo, em 2000. Ou seja, tem uma proposta de provocar reação e abrir espaço para reflexões. Isso se deve ao fato de ser uma publicação independente? Como é essa questão da independência editorial para você?

Lima – Nunca fui ‘desindependente’. Não tenho essa referência. Nós estamos inseridos no mercado, temos colegas em outras redações, em grandes editoras e vejo muita gente que tem esse espírito parecido com o nosso se enquadrar em esquemas maiores e perder isso com o tempo. Para nós é absolutamente natural ter opinião e se colocar. E isso sempre ocorreu de forma natural. Nunca foi uma coisa assim: ‘Pessoal, nós temos que ter opinião e atitude porque daí a revista vai dar certo’. Esses exemplos que você citou, que foram realmente momentos marcantes do ponto de vista jornalístico da revista, ocorreram de forma muito natural. Nós não planejamos isso como uma ferramenta de marketing.

M&M – Você acabou virando referência quando o assunto é público jovem. Você se vê assim?

Lima – O segredo é não querer trabalhar para jovem nem para velho. Só para gente, inclusive para mim. Gosto muito quando vejo a Trip transitando e sendo degustada por pessoas que não são as que imaginei como público-alvo. Tenho esse feedback toda hora e adoro.

M&M – Hoje a divisão de revistas customizadas da Trip responde por 60% da editora. Como começou esse processo?

Lima – A questão das revistas customizadas é muito simples. O nosso negócio – que te contei desde o começo – era desenvolver uma comunidade. Estávamos colocando uma ética, um eixo de valores, de manifestação. Uns chamam de atitude, eu chamo de opinião. É a mesma coisa. Quando você coloca isso para fora começa a atrair pessoas físicas e jurídicas. No começo essas pessoas eram pequenininhas. Era um amigo, um fotógrafo, um vendedor de anúncio que achava aquilo legal e todos vinham para perto. Depois começaram a vir algumas empresinhas, um anunciante, a OP, depois a Alpargatas. O que eles vêm procurar? Eles querem interagir com essa comunidade, fazer parte desse clube. Nós temos uma comunidade de verdade – conceito que ganhou força com a internet -, construída com muita calma, muito tempo, muita solidez através de milhões de pequenas atitudes. Alguns anunciantes me pediam referências para a comunicação que iam fazer. Cansei de fazer publicidade pra um monte de marcas de roupas até que, em 1997, motivado um pouco pela própria Trip, tive contato com o Tutinha (Antonio Augusto Amaral de Carvalho Filho, diretor-presidente da Rede Jovem Pan) em alguns eventos.

M&M – Foi aí que nasceu o primeiro projeto, a Revista Jovem Pan?

Lima – Exatamente. Tanto do lado dele como do meu, de uma forma muito intuitiva, fomos percebendo que havia uma habilidade desenvolvida de conversar com uma comunidade. Ele tinha uma questão para resolver, que era a da rede. Toda empresa que se transforma numa rede precisa unificar a cultura. Por mais que o rádio seja um veículo muito forte e genial, ele não materializa. Ele fica literalmente no ar. Então começamos a ter esse tipo de conversa e assim nasceu o projeto da Revista Jovem Pan. Nós a construímos em torno do DNA da Jovem Pan. No fim de 1999 o Tutinha recebeu uma proposta irrecusável do grupo que estava formando a Editora Camelot no Brasil e passou a fazer a revista com eles. Um pouco antes dele vender a revista, a Daslu entrou em contato conosco. Eu conhecia um pouco a Eliana Tranchesi e fui lá com o Luciano Huck bater um papo. Na época, estávamos vendendo muita revista com CD e a Daslu tinha feito o seu para comemorar os 40 anos da empresa. Quando recebi o CD falei para o Luciano que seria legal se pudéssemos lançá-lo em banca como uma revista de moda. Comecei a conversar sobre essa idéia com a Eliana. Ela disse que não podia fazer aquilo porque não tinha os direitos daquelas músicas. Tinham sido comprados só para as cópias enviadas aos clientes. Também não achava que fazia sentido para uma marca como a Daslu estar em bancas de jornais, pois ela funciona como um clube fechado. Mas disse que tinha gostado da idéia da revista. Aí voltamos a conversa para esse lado. Ela fazia catálogos maravilhosos, mas estava sentindo que eles já não traziam mais nada de novo. Percebia que precisava rever sua comunicação. Ela enxergou lá na frente a questão do conteúdo como um diferencial muito importante. Começamos então a conversar sobre a revista da Daslu.

M&M – Hoje, a Trip sozinha seria viável economicamente?

Lima – Seria porque tem 18 anos de construção. Quase nos matamos durante os primeiros dez. Foi muito difícil. Não só porque era complicado consolidar um título independente mas também porque foi um período desastroso da economia. Durante os primeiros quatro, cinco anos, todo dia achávamos que íamos quebrar. Não tínhamos capital de giro. Fomos nos consolidando. Hoje a Trip é viável como revista. Dá lucro porque tem essa história toda por trás. A Trip talvez seja uma das revistas de comportamento, ou jovem, como você queira definir, de maior faturamento publicitário do Brasil.

M&M – O que representou para a editora, em 2000, a sociedade com o empresário Marcos de Moraes?

Lima – Considero a entrada do Marcos genial. Primeiro porque vínhamos de um relacionamento muito bom com ele. O site da Trip é um dos mais antigos do Brasil. O dia em que o UOL foi inaugurado, já estava lá. Mas quando o Marcos pensou em fazer o Zip.Net, nos chamou para conversar. Ele foi muito objetivo e claro. Explicou que queria fazer um portal focado num público mais jovem, mais aberto e nos propôs estar lá com ele. Aí ele explicou o projeto do Zip, que era fascinante, e fez uma proposta financeira muito legal também. Ficamos encantados com o estilo objetivo, sem ser frio, do Marcos. Acabamos fechando o negócio. Ficamos no UOL uns três anos. Depois, creio que em 1999, fomos para o Zip.Net. Passei a ter encontros freqüentes com o Marcos e viramos parceiros.

M&M – Daí para a sociedade foi só uma questão de tempo…

Lima – Quando o Marcos vendeu o Zip, uma das primeiras pessoas para quem ele ligou fui eu. Ligou para agradecer a parceria. Esse processo foi muito legal. Na época eu tinha um projeto com o Ricardo Guimarães (presidente da Thymus Branding)e com o pessoal da Conspiração de fazer um portal na área de comunicação, que nós apresentamos. Ele achou legal e disse que iria estudar. No dia seguinte me ligou chamando para almoçar. Disse que era interessante a idéia, mas estava acabando de sair de uma supertransação gigante e não queria entrar em outro negócio de internet naquele momento. Contudo, disse que gostava muito da Trip e que se tivesse espaço gostaria de entrar como sócio na editora inteira. O que fosse feito a partir daquele momento – um portal, uma nova revista, etc – seria estudado com calma. A forma como se colocou, dizendo que não queria ter uma quantidade grande de ações de controle de capital, mas ser minoritário, sem atrapalhar a maneira como nós tocávamos o negócio, foi muito legal.

M&M – A TPM (Trip para Mulheres) foi resultado dessa associação?

Lima – A TPM é sem dúvida uma conseqüência da entrada do Marcos. Tínhamos um projeto de uma revista feminina que não teria sido levado adiante se não fosse a segurança de ter esse aporte.

M&M – Por que uma revista feminina?

Lima – Você já reparou que 90% das revistas femininas que existem no Brasil não são fórmulas brasileiras? Elas são fórmulas estrangeiras adaptadas. Isso vale para Elle, Vogue, Marie Claire, Capricho, que é uma versão da Seventeen. Percebemos que 25% dos leitores de Trip eram mulheres e esse número chamou muito minha atenção. Eu achava que eram uns 10%. Essas mulheres, na minha visão, eram justamente atraídas pela maneira como a Trip vê a mulher, que é muito mais respeitosa, de uma certa forma até como uma entidade superior. Ela é feita com uma visão do mundo masculino, só que é – e eu sou suspeito – contemporânea. Portanto, ela não separa os dois mundos. Ela interage e admira. Mas então por que fazer outra revista? Essa foi uma grande discussão e chegamos à conclusão de que havia um específico feminino que não era tratado por essas outras revistas. De uma forma geral elas desenham uma mulher como um ser menor, frágil, ansioso, quase desesperado, que depende 100% de um homem para ser feliz, que está sempre insatisfeita com a sua condição física, sexual e profissional. Ou seja, é um ser muito fácil de ser manipulado. Porque quando você consegue deixar uma pessoa insegura e ansiosa, qualquer coisa que você proponha ela aceita, inclusive consumo. É uma estratégia bastante rasa e até uma forma simplória de fazer a mulher marchar para o consumo de cremes e roupas.

M&M – A TPM seria um contraponto a isso?

Lima – Ela vem nessa contramão radical, o que torna o projeto difícil. No primeiro ano foi supercomplicado. Teve um lançamento forte. Investimos bastante em publicidade. Depois, lá pela edição número seis, começou a ficar complicado. Tínhamos muita dificuldade com a publicidade. Mas agora, depois do segundo aniversário, está mais consolidada. Uma revista desse tipo é igual a um clube. Você não fica sócio porque ele faz propaganda, mas porque alguém te indicou, te disse que era legal. Então, ela precisa de tempo para se consolidar. Paralelamente, o mercado foi alcançando a idéia da revista. As marcas de moda começaram a perceber que tinham que conversar de outro jeito com as meninas, com as mulheres. As marcas de cosméticos também. O tempo joga a favor.

M&M – Quais são os planos da editora Trip para o futuro?

Lima – A Trip está claramente dividida em duas. Uma divisão que trabalha o nosso ativo, que é a marca Trip, e uma divisão que lida com as marcas dos nossos clientes. Na divisão Trip temos basicamente a revista Trip e o seu site; a revista TPM e o seu site; e o Trip FM, programa de rádio que hoje é transmitido para 32 cidades. Temos também um projeto de TV, que seria basicamente transpor o Trip FM para a televisão, um minitalk-show. Já temos uns pilotos gravados e estamos conversando com algumas emissoras. Chama-se Trip TV.

M&M – E a área de eventos? Vocês estão investindo nisso também?

Lima – No passado realizamos alguns eventos esportivos em parceria com a Koch Tavares, como campeonatos. Depois passamos a fazer as festas, que nasceram de idéias bem concebidas, com patrocínio, e foram crescendo. A idéia é profissionalizar um pouco mais essa atividade. Estamos sentindo muito a necessidade de materializar essa comunidade, de agrupar, torná-la mais palpável. Sempre que fazemos isso dá muito certo. Realizamos recentemente o Trip Marca, que servirá como balão de ensaio para a criação de uma série de eventos voltados para o trade de comunicação, abordando aspectos e temas de interesse para os profissionais mais antenados.

M&M – E a outra divisão da Trip, que tem o faturamento maior e está crescendo muito ultimamente?

Lima – Nessa divisão trabalhamos para outras empresas. Temos como atividade mais conhecida e mais significativa o custom publishing. Expressão que não gosto muito porque pressupõe publicações para clientes e não é exatamente isso que fazemos. Funcionamos como uma espécie de aliado da empresa para que ela se relacione melhor com os seus públicos. Muitas vezes é usada a ferramenta revista, mas outras vezes não. Por exemplo, para a Daslu nós fazemos a revista, também o site e participamos de uma parte da comercialização da nova loja. Ou seja, contribuímos também com o negócio deles como um todo. Nós criamos conteúdos para os clientes se relacionarem melhor com os seus públicos.

M&M – Para quantos clientes a editora Trip publica revistas?

Lima – São oito (Daslu, Gol, Mitsubishi, Coelho da Fonseca, AmBev, Pão de Açúcar, Faculdade Trevisan e Expand) e agora temos um novo cliente. É primeiríssima mão isso. Estamos fazendo a revista da Natura. É um projeto de muito tempo, começou focado nas consultoras e agora já está sendo até discutida sua ampliação para os clientes. É um projeto fascinante que nasceu da vontade da Natura de falar mais de perto com as consultoras mais jovens. As empresas estão percebendo a sutileza dessa ferramenta. Estão procurando alguém que consiga realmente mergulhar no DNA delas. Acho que existe um monte de gente que faz revista direito, um monte de agências de propaganda que fazem layouts maravilhosos e que poderiam fazer revistas também. O que acho é que não tem muita gente que está há 18 anos entendendo comunidade. Se há um diferencial competitivo para a Trip é o fato de sermos detetives de agrupamentos de pessoas. Nisso, realmente temos uma vantagem. Não é falsa modéstia, é porque estamos treinando há muito tempo.

M&M – Como você visualiza o futuro do mercado de revistas?

Lima – Acho que o mercado de revistas enfrenta hoje um problema seríssimo que é o canal de distribuição. O canal banca é muito complicado. Ele sofreu uma mutação. Não há nenhum culpado nessa história, pois houve mesmo uma evolução do tecido urbano. Hoje, uma banca, por uma série de razões, é obrigada a ter uma quantidade gigantesca de produtos que não são revistas. Você compra lá CDs, DVDs, filmes fotográficos, presentes, carrinhos, charutos, cigarrilhas, chocolates, balas, doces e revistas também. A tecnologia tornou possível para qualquer pessoa fazer uma revista. Hoje você imprime uma publicação de cem páginas em qualquer gráfica rápida. Há uma infinidade de títulos. As pessoas de maior poder aquisitivo estão indo bem menos às bancas de jornal por uma série de motivos, desde segurança até falta de tempo. Além disso, a internet e a TV por assinatura estão suprindo o público de informações específicas de uma forma muito competente. Acho que vão ganhar muito as revistas que têm o seu grupo de leitores muito claro, muito definido e o meio de acessá-lo. E aí se encaixam as revistas customizadas. Estamos estudando mil formas para não ficarmos na dependência da banca o resto da vida. É um bolo que fica do mesmo tamanho e as fatias vão diminuindo.

M&M – Existem planos de lançar alguma nova revista com a marca Trip?

Lima – A Trip não pretende criar novos títulos para banca. Temos alguns filhotes, algumas coisas para sair de Trip e TPM, mas não pretendemos lançar uma nova publicação para um público específico.

M&M – Você enxerga a expansão dos negócios da Trip mais para a área que cuida das marcas dos seus clientes?

Lima – Acho que o nome Trip Editora e Propaganda está defasado. Não vejo a Trip como uma editora, no sentido tradicional. Somos uma empresa de construção de marca e de comunidade. De relacionamento com essa comunidade. É uma especialização em observação de gente e agrupamentos humanos. É isso o que nós vendemos. Se está em formato de revista, de site, de programa de rádio no Brasil inteiro, de programa de televisão, é detalhe. A mercadoria é a mesma, assim como a essência. Acho que a expansão dos negócios da Trip se dará na expansão desse core businnes que é o entendimento de comunidade e a materialização desse entendimento em forma de negócios.’



JORNALISMO & IDEALISMO
Carlos Chaparro

‘Não basta dizer ‘sou jornalista’’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 10/09/04

‘O XIS DA QUESTÃO – Para que o jornalismo não perca sentido nem função, é preciso que o preservemos na sua confiabilidade. E a mais importante fronteira de preservação do jornalismo terá de situar-se no idealismo, na competência e na honestidade intelectual dos jornalistas. Qualquer que seja o lugar ou função em que atuem, não basta dizer ‘sou jornalista’; é preciso sê-lo. Integralmente.

1. Voz própria

Em sua edição de 3 de setembro, a Folha de S. Paulo publicou uma reportagem surpreendente, cujo inusitado começava pelo título: ‘Na Câmara, morador de rua cobra respeito’. Pelo que me lembro, esta foi a primeira vez em que, no relato jornalístico urbano, os moradores de rua conquistaram tratamento de protagonistas e sujeitos sociais.

Até então, apareciam com certa freqüência no noticiário do dia-a-dia, mas na condição de vítimas de ações ou situações que os agrediam na dignidade. Incapazes de falar por si próprios, os moradores de rua sempre precisavam de alguém que falasse por eles – na maior parte das vezes, líderes religiosos como o padre Júlio Lancellotti, um dos responsáveis pela Pastoral do Povo de Rua, na Arquidiocese de São Paulo.

Tudo bem. Proteger pessoas humilhadas, lutar por elas, é, certamente, meritória forma de agir social, no mundo das injustiças. Porém, na medida em que esse ‘falar pelos outros’ se torna rotineiro, corre-se o risco de cair no paternalismo que perpetua as incapacidades sociais. E irriga-se aquilo a que podemos chamar de exclusão discursiva, aleijão nas democracias.

Os agrupamentos humanos que não conseguem produzir, articular ou socializar ações discursivas (se preferirem, ações noticiáveis) serão, inevitavelmente, excluídos dos confrontos democráticos. Porque, nesses confrontos, só terá lugar próprio quem tiver voz própria.

O que a Folha nos relatou, na reportagem de 3 de setembro, a que me refiro, foi uma ação política, planejada e controlada para ser notícia, na qual moradores de rua finalmente usaram a própria voz, para dizer ao mundo algo que, antes, outros diziam por eles:

‘Só albergue não serve para nós. Queremos dignidade e soluções.’

‘Acordamos para a participação social. Hoje, estamos dando um novo passo rumo à cidadania.’

Isso foi proclamado em ato público realizado no plenário da Câmara Municipal de São Paulo, sob a presidência Ciro Susumo, cidadão das ruas. Chamados por Ciro, vários outros moradores de rua subiram à tribuna para dizer o que o jornalismo socializaria, no dia seguinte.

É certo que, compondo a mesa, lá estavam vários dos notáveis que costumam falar pelos moradores de rua, um deles o padre Lancellotti. Talvez até tenha sido desses notáveis a iniciativa de promover o ato público na Câmara Municipal. Pouco importa. O que importa é que desta vez eles se calaram, para que os excluídos falassem, delimitando espaço próprio em confronto social do seu interesse. No ato público, os moradores de rua agiram, gerando a notícia que levaria à sociedade a sua intervenção discursiva. E se tornaram autores e atores da sua luta.

2. Dupla dimensão

Aconteceu, pois, uma ação de inclusão discursiva, na qual o jornalismo cumpriu dois papéis essenciais: l) O de ser linguagem eficaz para socializar ações discursivas de grupos humanos organizados, que dão vida à democracia; 2) O de ser espaço público confiável para embates discursivos, vinculando-se a objetivos éticos dos ideários convenientes à sociedade.

De alguma forma, o caso aqui utilizado serve de resposta à questão colocada no final de texto anterior: que papel, funções e ações cabem ao jornalismo, não na ditadura, mas na democracia, em sua atual configuração?

No episódio dos moradores de rua, do qual a reportagem da Folha fez parte (porque a notícia faz parte do acontecimento), e tal como deve ser, o jornalismo não produziu os fatos; apenas os relatou ao mundo, para efeitos que são da conta da sociedade, não do jornalismo. E não se propôs a substituir qualquer dos sujeitos sociais envolvidos nos conflitos do fato relatado; apenas captou, interpretou e difundiu o discurso embutido no acontecimento, com técnicas próprias da narração jornalística.

É essa dupla dimensão do jornalismo (ser linguagem narrativa e espaço de difusão) que dá poder de ação aos acontecimentos noticiáveis. E para que o jornalismo não perca sentido nem função, é preciso que o preservemos na sua confiabilidade, tanto como linguagem quanto como espaço público de embates discursivos, entre sujeitos sociais organizados. Inclusive para exercitar a capacidade de dar alcance social à voz e às ações dos excluídos. em paternalismos nem militâncias.

3. Ser jornalista

Preservar o jornalismo deveria ser preocupação da sociedade. No Brasil, infelizmente, são precários, quase inexistentes, os mecanismos de defesa do jornalismo – e por defesa do jornalismo se entenda a defesa do direito à informação.

Esse é um dos aspectos em que a democracia brasileira precisa avançar bastante. Não temos estatutos editoriais, não temos comissões de redação, não temos instâncias de iluminação ética dos processos e das discussões. Em vez disso, temos donos do negócio que não abrem mão do comando das redações, uma tradição de subalternidade ao poder político e ao poder econômico, além de propensões para controles potencialmente censores.

De qualquer forma, a mais importante fronteira de preservação do jornalismo terá de situar-se no idealismo, na competência e na honestidade intelectual dos profissionais, na hora do pensar e do fazer jornalismo real. Qualquer que seja o lugar ou a função em que atuem, não basta dizer ‘sou jornalista’; é preciso sê-lo. Integralmente.

Se não pudermos acreditar nisso, não teremos razões para acreditar no jornalismo.’



LÍNGUA PORTUGUESA
Deonísio da Silva

‘Quando um burro fala’, copyright Jornal do Brasil, 13/09/04

‘Quando um burro fala, o outro abaixa a orelha. Este provérbio, de sutil complexidade, combina arrogância e modéstia em doses iguais. Recomenda reverente silêncio diante de quem fala. Mas quem o profere, põe-se no mesmo nível do ouvinte. Afinal, os dois são burros.

Quem assim desclassifica o interlocutor, é o primeiro a admitir a mesma condição, reconhecendo, por caminhos paradoxais, que também é burro. Em resumo, tão logo o outro tome a palavra, abaixará as orelhas quem falou. A operação resulta, não em desclassificação, mas em ordenamento do diálogo.

Entre tantas curiosidades que rondam o berço da expressão, é de se registrar que uma das mais antigas versões é bíblica. Balaão espanca o burro (em algumas versões é a mula) para que prossiga. Mas há um anjo no meio do caminho, visível somente ao animal. Na terceira tentativa, o burro fala, recriminando a teimosia do dono. O episódio está narrado em Números, o penúltimo do Pentateuco, como é chamado o conjunto dos cinco primeiros livros da Bíblia.

Bíblia e Pentateuco são palavras de origem grega: bíblos, papiro, papel; penta, cinco; teûchos, livro. O radical grego está presente também em biblioteca, designando originalmente caixa de livros. Qualquer intelectual pré-Gutenberg tinha como biblioteca apenas uma caixa com poucos livros.

Livro e burro sempre foram associados a falar e ouvir. Um registro igualmente muito antigo está numa das narrativas de Fedro, o culto escravo do imperador Augusto que traduziu e reescreveu fábulas de Esopo. Numa delas, um burro encontra uma lira, tenta tocá-la e, não conseguindo, lamenta a sorte do instrumento, que em vez de cair nas mãos de alguém capaz de extrair suaves harmonias, foi topar justamente com ele, burro, que nada entende de música.

Em outro autor latino, Luciano, um burro ouve lira e, parecendo entender, mexe as orelhas. Também Horácio, criticando espectadores de teatro, invoca Demócrito para dizer que, se o filósofo grego vivesse em Roma naquele período, se divertiria mais observando o público do que assistindo aos espetáculos, pois os autores pareciam contar suas histórias a um burro surdo. Como se vê, o autor lançou mão de uma dificuldade adicional, a surdez, com o fim de ampliar a ignorância dos criticados.

O burro fala também em divertida estrofe de Bábrio, o poeta grego que pôs em versos várias fábulas de Esopo. Um burro sobe no telhado de uma residência e quebra muitas telhas. Quando o dono o castiga, ele retruca, sentindo-se discriminado: ‘no outro dia, quando o macaco fez a mesma coisa, você riu’.

Também Cícero perguntou: ‘por que eu te ensinaria a ler agora, burro?’. Enfim, a metáfora que dá o burro como animal que simboliza por excelência a ignorância está presente em muitas outras línguas, de que é exemplo o ditado alemão: ‘Man kann den Esel mit Atlasdecken belängen, er bleibt doch immer ein Esel’ (‘pode-se cobrir o burro com um atlas e ele continuará sendo sempre um burro’).

Mas coube ao escritor brasileiro João Guimarães Rosa, que sabia ouvir e entender, não estrelas, mas animais, reconhecer a sabedoria dos burros, como no conto O burrinho pedrês.

Animais e homens filosofam sem parar em seus contos. Eis a justificativa: ‘Como escritor, não posso seguir a receita de Hollywood, segundo a qual é preciso sempre orientar-se pelo limite mais baixo do entendimento. Portanto, torno a repetir: não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoiévski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão. No sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou um tu; por ali os anjos e o diabo ainda manuseiam a língua’.’