O POVO
"A ética da acusação", copyright O Povo, 20/1/02
"?Na essência, a ética da denúncia não tem particularidades, não se diferencia da ética exigível dos demais gêneros de trabalho jornalístico. A sua aplicação, sim, requer a observância de alguns procedimentos específicos, cuja falta comprometeria a ética?. Janio de Freitas, jornalista da Folha de S. Paulo
Na última quinta-feira O Povo deu como manchete o seguinte: ?Padre acusado de estuprar cinco meninas?. Acima da manchete havia outra informação importante: ?Religioso teria abusado de outras 14 garotas?. A matéria contava uma história escabrosa envolvendo um religioso e um número considerável de crianças e adolescentes que deixava qualquer pessoa indignada e revoltada. No entanto, a quantidade de lacunas existentes na matéria com informações importantes sobre o fato e, principalmente sobre o acusado, me levaram a criticar internamente a escolha da informação como manchete.
Em primeiro lugar, o que nós publicamos era uma acusação feita contra o frade Sebastião Luiz Tomaz, baseada na versão única de agentes policiais do município de Acaraú. É um fato que havia o depoimento de 14 meninas. Mas o caso ainda seria motivo de inquérito policial, pedido de prisão preventiva e as meninas passariam por exames para comprovação da violência. Não havia a versão das famílias das envolvidas ou do próprio frade. Defendi ainda a tese de que a manchete tinha o tom espetacular com o intuito claro de atrair leitores.
Alertei também para o fato de que a informação dada feria o nosso Código de Ética profissional que orienta que ?devemos ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, todas as pessoas objetos de acusaçõotilde;es não comprovadas, feitas por terceiros ou não suficientemente demonstradas ou comprovadas?.
Questionada, a Redação reconheceu que a matéria não estava completa, mas não admite que essas lacunas fossem motivos para que O Povo não desse a informação como manchete. Informou também que foram colocados três repórteres para apurar a matéria, que todos os esforços foram feitos, mas não foi possível avançar nas informações. É verdade que no final da matéria está o procedimento da Redação com os nomes de todas as pessoas que foram procuradas e não foram encontradas para entrevistas.
Insisto, no entanto, que se não havia possibilidade de dar ao leitor uma informação de melhor qualidade, que não oferecesse ao consumidor um produto com sua melhor oferta de capa recheada de problemas.
Reflexão
Esse é um debate que se pretende longo porque envolve uma série de variáveis que não vamos poder discutir todas de uma vez. Vamos devagar e sem pressa, como diria o Jack, aquele ?bom rapaz? inglês. É inegável que a manchete de quinta-feira passada teve a leitura espetacular, que atraia mesmo leitores-compradores, movidos por essa terrível característica humana de rejeitar e ao mesmo tempo desejar saber e querer mergulhar no lado obscuro uns dos outros.
Cabe a nós, com veículo de comunicação, decidir como esses fatos escabrosos vão chegar ao nosso público. O nosso dever é, portanto, nos cercarmos de todos os procedimentos disponíveis para evitar que sejamos confundidos com uma empresa que quer vender jornal a qualquer custo. Eu sei que existe uma pressão de mercado extremamente intensa entre as empresas de comunicação. No entanto, esse mercado que, às vezes é cego e irracional, é ao mesmo tempo seletivo e exerce um poder ? fora do nosso alcance ? de avaliar os bons e maus produtos. Esse poder é a matéria-prima da formatação do mercado no futuro.
Decisões
Tenho segurança em afirmar que O Povo precisa tomar decisões em torno da divulgação de informações que envolvam pessoas que são acusadas de crimes num cenário de impossibilidades de oferecer ao leitor matérias mais completas. Quem acompanhou caso do frade pôde perceber claramente que nas matérias publicadas na sexta-feira e sábado, o religioso que, na quinta-feira, mais aparecia um monstro devorador de meninas e adolescentes, sofreu uma metamorfose profunda. Transformou-se num homem perturbado, com grave desvio de comportamento, enlaçado pelo desejo num ambiente econômico-social tão intricado que, mesmo se o Papa viesse do Vaticano para resolver a questão, levaria alguns meses para avaliar o problema e alguns dias para elaboração de um parecer. É claro que não esperaríamos pelo parecer do Papa, acompanharíamos certamente o fato, com toda a riqueza do tema.
Hipocrisia
Não sou hipócrita a ponto de não querer ver que os crimes estão aí ou tentar imaginar que O Povo não vai chamar nas suas manchetes esses crimes. A violência está posta e sabemos, como jornal, que somos um dos espaços públicos para veiculação desse tipo de informação. O que não podemos esquecer é que também somos capazes de vulgarizar a realidade ao ponto de tornar as pessoas viciadas em informação de péssima qualidade. E o que nós precisamos é debater com elas as causas da violência e proporcionar uma reação, que ao invés de torná-las apáticas, as tornem motivadas a lutar por um lugar melhor para se viver."