Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Regina Ribeiro

O POVO

"Imprensa, público e privado I", copyright O Povo, 4/8/02

"?Por que o cão de guarda da mídia não latiu?…? (Harold Evans, jornalista inglês)

Recebi essa semana um e-mail de um jornalista do San Diego Union-Tribune (signonsandiego.com) que está às voltas com uma pesquisa interessante: conflito de interesses. Para realizar o trabalho está ouvindo os ombudsmen de várias partes do mundo. O pesquisador quer saber como se dá as relações entre a função e os interesses das empresas. De um estudante da Unisinos (RS) também recebi um pedido para contribuir com uma pesquisa que ele está fazendo sobre a função de ombudsman nos jornais brasileiros. Um dos questionamentos feitos pelo aluno do curso de jornalismo é o seguinte: ?Que tipo de prejuízo existe para as empresas ao adotarem um cargo de interesse público e privado??

Essa questão – as relações entre o público, o privado e a mídia – ainda se tornará mais forte em todo o mundo e a discussão terá a imprensa para intermediar. O assunto não é de fácil trato, mas é muito interessante de observar como ele vem despertando o interesse em vários lugares.

No mundo

Quem der uma olhada ao que está acontecendo na Itália, pode ver que o poderio privado econômico do primeiro-ministro italiano Sílvio Berlusconi está respingando na política daquele país. Agora mesmo o Senado está para votar uma lei que poderá garantir a Berlusconi a absolvição em processos judiciais. Ele é dono das maiores empresas de comunicação da Itália entre outros empreendimentos. No início do ano, jornalistas da TV estatal italiana foram demitidos por criticarem o governo.

Nos Estados Unidos, essa onda de quebradeira de grandes empresas começou com a Enron há cerca de cinco meses. Esse é o país da liberdade de imprensa e de mercado assegurados como os principais valores da sociedade norte-americana. Chamou a minha atenção o festival de denúncias e mea-culpas assumidas publicamente por jornalistas que haviam dado opiniões favoráveis à empresa meses antes. Alguns vieram a público admitir que recebiam dinheiro da empresa para dar opiniões sobre os negócios da Enron. Outros disseram que sabiam que a empresa estava passando sérias dificuldades, mas não tinham noção exata da gravidade. Naquele momento, pelo menos uma questão foi levantada: os jornalistas bem informados deveriam ter dado opiniões favoráveis que tinham impacto positivo no mercado, mesmo sabendo das dificuldades da empresa e que outras pessoas poderiam ser prejudicadas com base em informações incompletas?

Depois da Enron caíram várias outras grandes empresas norte-americanas, ex-exemplos de sucesso corporativo alavancados por balanços insinceros, que criavam no investidor uma idéia equivocada da real situação da empresa.

O próprio presidente norte-americano, George W. Bush, tem aparecido na imprensa como um executivo dado a práticas financeiras questionáveis antes de tornar-se o presidente dos Estados Unidos e agora tem de combater tais práticas e mandar executivos para a cadeia para domar o mercado.

Um texto publicado no domingo passado num jornal de circulação nacional, reproduzido do jornal londrino ?Observer? (www.observer.co.uk) é um relato emblemático, além de ser uma mina de reflexões sobre o que vem a ser informação de interesse público e como fazer a distinção entre público e privado quando é o privado que tem o poder de estabelecer critérios de ação do poder público. A imprensa, de um modo geral, tem olhos bastante abertos para escândalos no setor público. É só lembrar como a imprensa norte-americana reagiu diante do desejo privado do ex-presidente Clinton que não resistiu a uma estagiária vestida num tubinho preto.

Pois bem, essa imprensa zelosa pelos bons costumes do líder da nação, segundo o relato de Harold Evans, autor do artigo do Observer, fechou os olhos para as práticas financeiras do executivo Bush, quando elas representavam uma prática danosa ao país e aos milhares de investidores norte-americanos. Disse o jornalista: ?para ganhar US$ 16 milhões Bush burlou leis do mercado acionário, pisoteou direitos alheios e encontrou proteção nos amigos do pai. (…) O ?curioso incidente? em relação aos negócios obscuros com ações feitos pelo presidente é por que o cão de guarda da mídia não latiu durante a eleição presidencial de 2000, quando surgiram evidências desfavoráveis um mês antes da eleição?. Afirma ainda que os negócios envolvendo Bush eram do conhecimento amplo de toda a imprensa norte-americana.

Entre nós

Como fica a imprensa brasileira diante desse dilema entre o público e o privado? A questão mantém a sua dificuldade, mas o candidato a presidente do PPS, Ciro Gomes, deu a sua contribuição quando reagiu às denúncias envolvendo o seu ex-coordenador de campanha João Carlos Martinez (PTB-PR). Numa entrevista à redes de TV ele disse o seguinte: ?um homem privado faz um negócio com outro homem privado, quando ele (o primeiro homem) nem era deputado e o que eu tenho a ver com isso??.

Não será exatamente assim que boa parte da imprensa brasileira tem se comportado diante do setor privado: ?o que temos a ver com isso? O que importa é o homem público, suas ações públicas, suas defesas públicas em mandatos e cargos públicos?. Será que essa é atitude correta?

Pensemos um pouco mais. Este início de século é o do privado. O modelo econômico atual tem horror à coisa pública. A eficiência é a do mercado. Fora dele é o anacrônico, o obtuso, o prejudicial ao interesse público. O poder público deve ser o facilitador desse mercado eficiente, funcional, capaz de dar oportunidades e ampliar o raio de felicidade do homem e das nações. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Não existe verdade absoluta nesses extremos e a nação americana do Norte está aí para dar o exemplo ao mundo.

A imprensa precisa rever como atua no setor privado ou corre o sério risco de não se identificar com os seus povos e leitores. No Brasil, praticamente todos os serviços públicos estão nas mãos de empresas privadas. Os homens públicos, na sua grande maioria, vem do setor privado ou são apoiados por conglomerados econômicos fortalecendo um poder unificado – político-econômico.

O que é de interesse público nesse país e em todo o mundo está no centro do interesse privado. Os conflitos entre o público e privado estão no centro do conteúdo da imprensa mundial e não há como fugir disso. O embate é diário. E o que você leitor, tem com tudo isso? Tem que os seus interesses enquanto cidadão com direito à informação precisam ser preservados."