Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Regina Ribeiro

O POVO

"Mídia e violência", copyright O Povo, 16/2/02

"?Morreu a nossa vovozinha. Ágata. Tão ultrapassada… Morreu sem saber que as histórias de crimes que ela contava para nosso horror, no mundo inacreditável de hoje, eram histórias de fadas…? (Mário Quintana, poeta)

O tema dessa coluna de hoje voltará daqui a uns meses. Mas, instigada por um e-mail de um leitor, decidi que poderíamos começar uma conversa sobre ele. Você sabe e sente que a violência está mais democrática do que os nossos governos. Onipresente, ela explode em todos os recantos do mundo, em ambientes abastados e onde impera a pobreza extrema, modificando apenas os personagens agressores e as vítimas.

No último Carnaval tivemos notícias que, no Nordeste, as cidades de Fortaleza e Salvador tiveram um acentuado aumento no número de pessoas mortas por homicídios. A violência está posta na mídia diariamente. Ouvi, nestes dias, de uma professora, uma observação que me chamou a atenção sobre o impacto das notícias na vida dela. ?Eu acho ótimo esses feriados grandes porque não sinto nenhum compromisso em me manter informada. Até porque a impressão que eu tenho é que só ouço e leio notícia ruim e com muita morte?. Não chegamos a discutir mais sobre o assunto, mas a fala da moça ficou na minha cabeça.

A forma como a violência é representada pela mídia ? TV, rádio, jornal, revista ? na grande maioria das vezes é coisificada. Pessoas e fatos se transformam imediatamente em objetos embalados para consumo. Também é comum que as pessoas envolvidas nos crimes ? sejam como agressoras, sejam como assassinas ? se tornem criaturas despersonificadas, passando a existir somente a partir daquele fato violento que é noticiado. Mas é o tipo de assunto que chama a atenção de grande parte das pessoas.

No início do Século XX quando a violência urbana ainda estava sendo desenhada, lembro-me de ter lido que as histórias policiais contadas nos jornais cariocas se transformavam quase em sagas. Muitos jornalistas dessa época entraram no rol dos escritores. O teatrólogo Nelson Rodrigues foi um deles. Você sabia que o escritor colombiano Gabriel García Márquez, prêmio Nobel de Literatura, também foi repórter policial? Era um tempo em que os crimes não aconteciam em larga escala (quase uma indústria como hoje), talvez por isso, os fatos tivessem histórias mais humanas para serem contadas.

Hoje o que temos são casos isoladas, dissociados da vida, que passam a fazer parte de um jogo mercantil midiático. Do lado de cá, os leitores e espectadores, se tornam consumidores de mortos metamorfoseados em números e publicados em estatísticas sem um mínimo de humanidade.

Daí que alguns teóricos que estudam violência acusam a mídia de banalizá-la a ponto de ter um efeito narcotizante. Ou seja, os números e as pessoas mortas ou agredidas de alguma forma, viram a mesma coisa inanimada, que só dói ou sensibiliza quando chega na porta de casa.

O Caso

No último dia 14, O Povo deu como manchete o seguinte: ?O Carnaval mais violento: 83 mortes?. No comentário interno observei que, numa página com quatro repórteres envolvidos, o jornal havia dado provas de que é possível sim, sair dos números e fazer algo mais humano, apesar do caráter informativo das notícias. A estatística estava lá, mas os nomes das pessoas também, numa prova de que é mesmo gente que está perdendo a vida numa guerra urbana, sem vencedores, nem comando para negociações de paz. Não havia análises aprofundadas, é verdade. Mas o tratamento que foi dado às informações não tinha aquele tarja: ?violência pronta para consumo imediato?.

Logo depois de fazer essas considerações, recebi um e-mail de um leitor reclamando da manchete com 83 mortes considerando-a ?necromaníaca?, ou seja, que tem mania por cadáveres. Antes, porém, o leitor relacionou todas as manchetes policiais dadas pelo O Povo no mês de dezembro passado até o dia 9 de janeiro último e perguntou: ?Por que toda essa exaltação da desgraça?? e mais ?Concorre para melhorar o mudo cão??.

A Reflexão

Esse é o exemplo típico de um leitor que não se transformou numa Ipásia. Quando você ler o novo livro do escritor Umberto Eco, Baudolino, vai encontrar, lá pelas tantas, as ipásias. São personagens femininos que se reproduziam misteriosamente e buscavam a todo custo um estágio divino para a alma. O principal ingrediente para se chegar à excelência espiritual era a inércia. Aquele estado em que qualquer ser fica sem ação, letárgico.

A manifestação do leitor deve chamar também a atenção do O Povo no trato com a violência. É um fato que parte das matérias policiais que entregamos aos nossos leitores fica no limite da informação imediata, digerível tipo fast food, sem passado, só presente. Os personagens ? agressores ou vítimas ? desfilam em nossos olhos, às vezes, uma única vez.

Devemos lembrar também que, no O Povo, alguns casos ganham dimensões humanas de forma que a cobertura jornalística deixa de ser um fato policial e atinge o patamar de matérias-reportagens traçando perfis, narrando contextos, ressaltando cenários.

É importante dizer que não podemos deixar de representar a realidade em que vivemos. E é verdade que a vida, como um valor, sofre sérias ameaças numa sociedade mercantil e desumana em quase todas as esferas de relações: públicas, pessoais, sociais ou governamentais.

O jornal, como veículo, e particularmente O Povo, tem, no entanto, a responsabilidade de alertar para as conseqüências desse estilo de convivência em que o medo tornou-se o companheiro mais constante: instiga à inércia e à busca desesperada por mecanismos de proteção uns dos outros. Isso só pode ser feito se tratarmos a violência atual como um tipo de patologia social e não apenas como fatos jornalísticos coisificados sem nenhum impacto coletivo."