Vera Silva (*)
Há assuntos que nos perseguem. Enquanto não decidimos discuti-los aparecem em todos os lugares onde estamos: no jornal diário, na internet, nos e-mails dos amigos, nos programas de entrevistas na TV, nas revistas semanais. Ficam nos rondando como crianças carentes de atenção. Rendi-me a um desses perseguidores.
Tudo começou no dia 22 de julho, quando eu assistia a um programa na TV Senado. O entrevistado era o professor Dércio Garcia Munhoz, da UnB. O professor Munhoz falou sobre a Previdência de forma espantosamente clara. Explicou o que é e como funciona, mostrou a diferença entre previdência pública e privada, esclareceu que a previdência pública contém um pacto de justiça social. Lamentou o desmantelamento da previdência pública brasileira e se indignou porque o Estado não tem uma política de manutenção de renda das famílias, como na maioria dos países com alto nível de qualidade de vida, mostrando-nos o efeito danoso disto sobre a qualidade de vida dos brasileiros.
Mas o que me impressionou mesmo foi ele dizer que o cidadão brasileiro não é corretamente informado sobre este assunto, não podendo, assim, interferir no desenvolvimento das políticas ligadas à Previdência. Eu, que me considero bem-informada, nunca havia lido ou ouvido dizer que o Estado deve ter uma política de manutenção da renda das famílias, e que a previdência pública contém um pacto de justiça social para correção das distorções de renda.
A perseguição continuou dias mais tarde. Assistia ao programa de entrevistas de Roberto D’Ávila, quando o entrevistado, o sociólogo Emir Sader, declarou que o Brasil atualmente tem uma política dirigida para o desenvolvimento financeiro. Em vez de nos preocuparmos em decidir o que queremos para a população brasileira, preocupamo-nos com a bolsa de valores, com o mercado. Em outras palavras, ele disse que o Estado brasileiro se organiza para beneficiar o capital, e não o cidadão brasileiro. De novo senti-me ignorante sobre uma coisa tão importante para a minha vida. Seria só eu?
Sabe aquele seriado do cara que vivia fugindo porque queria provar que não matara a mulher? Pois é, uns dois dias depois lá vem o assunto de novo. Tropecei no último artigo – inacabado – de Aloysio Biondi, publicado no número 50 da revista Bundas. Nele, Biondi mostra a incoerência administrativa do governo, buscando em decisões tomadas na década de 70 a razão de nosso atraso no desenvolvimento da informática. Pena que a morte o impedisse de terminar o artigo e que ele não mais pudesse nos explicar o economês dominante. Outra vez a sensação de ignorância me invadiu.
Acabou? Nada disso, três dias depois, estou assistindo a um documentário na TV Bandeirantes sobre a Suíça, e de novo o assunto estava lá. Um executivo da Ciba tecia elogios ao controle antipoluição, afirmando que os ecologistas eram parceiros na manutenção da qualidade de vida dos suíços, evidentemente. Milhões são gastos para preservar o meio ambiente, para educar as crianças desde pequenas, para proteger a saúde e a velhice dos suíços. E apenas 100 anos atrás na Suíça havia pobres e fome! É de espantar, não é mesmo? Aqui a pobreza e a fome já completaram 500 anos. Aqui as multinacionais lutam para eliminar as leis de proteção ambiental, para introduzir transgênicos na nossa comida.
Abro o jornal e leio que os americanos estão em guerra porque estrangeiros querem assumir empresas de telecomunicações por lá. Onde já se viu tal absurdo? Só no Brasil!
Aí eu me lembrei do artigo de Fausto Wolff também na Bundas número 50. "Temo", escreveu ele, "que os garotos que insistam em não mentir e em não roubar acabem sendo ridicularizados pelos coleguinhas; chamados de trouxas e otários." Já estão sendo, Fausto, nós já estamos sendo chamados assim no mundo inteiro.
Chegará o dia?
Para me livrar do pesadelo, resolvi prestar atenção no assunto: a minha ignorância brasileira a respeito do motivo de completarmos 500 anos de pobreza e um governo que sempre nos pede paciência. Paciência para esperar o bolo crescer; paciência para termos todas as crianças na escola; paciência para vermos morrer de dor os doentes crônicos por falta de remédios; paciência para agüentar os que nos pedem paciência.
Paciência até para ler e ouvir tantos analistas econômicos e políticos que, com as exceções conhecidas, falam e falam e nada dizem sobre os motivos de nossos padecimentos. Que se esforçam para manter seus privilégios de ser bem-informados, mantendo-nos na ignorância. Paciência para aturar que os donos das TVs coloquem os melhores programas bem tarde da noite, para que os trabalhadores não possam assisti-los; que recheiem o domingo de diversão idiota, para nos manter idiotas, afirmando, como aqueles pais ignorantes, que nós é que gostamos dessa porcaria toda. Paciência para aturar âncoras que só sabem desfiar bordões que não dizem nada, não explicam nada, não se comprometem com nada.
Em que dia todos os que trabalham na mídia vão começar a falar claro e a se comprometer com um projeto de Brasil-suíço? Ou será que a mídia acredita que aos pobres só resta mesmo o reino dos céus?
(*) Psicóloga
Isak Bejzman (*)
"E como disse o outro: o FHC é o único inocente que só tem amigos suspeitos. Tem uma falta de sorte nas amizades! Ele é do bem. Só caiu na turma errada! Rarará." [José Simão]
Jô Soares é um excelente profissional. Sabe mobilizar sua inteligência e instrução de forma ágil e vivaracha, assim como sabe se servir dos ridículos de uma situação explorando o humor que ela contém. Na madrugada do dia 18 de julho Jô iniciou seu show ridicularizando a conduta do senhor presidente da Republica por assinar documentos sem ler, e terminou o show entrevistando o senador cassado senhor Luiz Estevão com uma baita palhaçada cheia de humor.
Não sei se Jô Soares, o grande artista, também é jornalista, mas se é, com essa entrevista lotada de humor que obteve com total e absoluta exclusividade do senhor ex-senador deu o maior furo da imprensa brasileira. Passou a perna em todo mundo, e o senhor Luís Estevão, que depois de caçado vinha demonstrando certo desprezo pela imprensa, se negando peremptoriamente a dar qualquer palavra, quanto mais uma entrevista, ao aceitar ser entrevistado por Jô Soares sabe por que fez a escolha que fez.
O senhor Luiz Estevão é um homem inteligente e esperto. Ele sabia muito bem em que tipo de programa de humor ele iria conceder a entrevista. Isso não quer dizer que os programas do Jô só contenham banalidades. Às vezes se pode assistir a coisas sérias que não a palhaçada como a da entrevista com o senhor Luiz Estevão.
Não sei o que ele afinal pretendia demonstrar com a entrevista. É bem possível que Jô achasse que o ex-senador confirmaria as acusações que pesam sobre ele, mas de uma coisa estou convicto: ainda que não o tenha desejado, Jô colaborou para que o ex-senador, assumindo a posição de vítima e bode expiatório pudesse tentar demonstrar que Senado, Ministério Público, Justiça etc. fazem parte de um processo que alcançou altos níveis de banalização.
Engajamento
Penso que para se entender melhor o que está acontecendo é bom ir ao Aurélio e anotar o significado de duas palavras: imaginar e imagem.
Verbete: imaginar
[Do lat. imaginare.]
V. t. d.
1. Construir ou conceber na imaginação; fantasiar, idear, inventar:
2. Ter ou fazer idéia de; representar na imaginação:
3. Supor, presumir, conjeturar:
4. Relembrar, recordar:
V. t. d. e i.
5. Supor, presumir, conjeturar:
V. transobj.
6. Julgar, supor, presumir:
V. t. i.
7. Pensar; cismar:
V. int.
8. Pensar, matutar, cismar:
V. p.
9. Julgar-se, supor-se:
10. Prefigurar-se, afigurar-se.
[Fut. pret.: imaginaria, etc. Cf. imaginária, s. f. e fem. de imaginário.]
Verbete: imagem
[Do lat. imagine.]
S. f.
1. Representação gráfica, plástica ou fotográfica de pessoa ou de objeto.
2. Restr. Representação plástica da Divindade, de um santo, etc.: [Cf.
ídolo (1) e ícone.]
3. Restr. Estampa, geralmente pequena, que representa um assunto ou motivo
religioso.
4. Fig. Pessoa muito formosa.
5. Reprodução invertida, de pessoa ou de objeto, numa superfície refletora
ou refletidora:
6. Representação dinâmica, cinematográfica ou televisionada, de pessoa,
animal, objeto, cena, etc.
7. Representação exata ou analógica de um ser, de uma coisa; cópia:
8. Aquilo que evoca uma determinada coisa, por ter com ela semelhança ou
relação simbólica; símbolo:
9. Representação mental de um objeto, de uma impressão, etc.; lembrança,
recordação:
10. Produto da imaginação, consciente ou inconsciente; visão:
11. Manifestação sensível do abstrato ou do invisível:
12. Metáfora:
13. Álg. Mod. Ponto de um conjunto que corresponde a um ponto de outro numa
aplicação deste sobre aquele.
14. Ópt. Conjunto de pontos no espaço, para onde convergem, ou de onde
divergem, os raios luminosos que, originados de um objeto luminoso ou
iluminado, passam através de um sistema óptico.
15. Rel Púb. Conceito genérico resultante de todas as experiências,
impressões, posições e sentimentos que as pessoas apresentam em relação a
uma empresa, produto, personalidade etc.
Imagem real. Ópt.
1. A que é formada pelos raios luminosos que convergem depois de
atravessarem um sistema óptico.
[ Imagem virtual. Ópt.
1. A que é formada pelos raios luminosos que divergem depois de atravessarem
um sistema óptico.
A palavra "imaginar" é baseada na palavra imagem. O esforço para mudar a imagem é o primeiro degrau para entender a mídia atual.
Será que somos suficientemente capazes de construir um habitat onde a paz floresça, negros se entendam com brancos, católicos com protestantes, judeus com muçulmanos? Ou vamos continuar responsabilizando a mídia? Quem sabe a sociedade assume esse compromisso e trata de realizar a tarefa de construir uma mídia que funcione em benefício dela, sociedade?
Será que não está chegando a hora de a sociedade brasileira se engajar?
Desde piazito eu sabia que queria ser médico. Ao atender crianças, na maioria dos casos eu chegava a um diagnóstico clínico. Já com os adultos era diferente. Em 70% das casos não conseguia firmar um diagnóstico clínico. Afinal, o que estava acontecendo com esses adultos, que diziam estar se sentindo doentes e clinicamente, aparentemente, não tinham doença nenhuma? Foi assim que escolhi a Psiquiatria como especialidade.
O caminho para o jornalismo foi pela mesma trilha. Comecei a ler jornais pelos 10 anos de idade. Meu pai ainda não sabia bem português, mas fez uma assinatura do velho róseo, o Correio do Povo. Estou beirando os 70, e meus olhos passaram por muitos jornais. Colecionei muitos artigos. Comparei artigos de ontem aos de hoje versando sobre o mesmo assunto. Fui vendo novos jornais surgirem e velhos desaparecerem. Todo esse conjunto de vivências só foi possível porque à medida que eu ia vivendo os fatos ia me engajando. Acabei num curso de Jornalismo.
O processo dinâmico continua o mesmo, por isso acabei me dando conta de que atualmente no Brasil estamos cercados por uma mídia que em vez de nos informar baseada na realidade fatual enfeita a informação, quando não a mascara, amorcega ou silencia.
Por que isso acontece? Qual a necessidade que um jornal tem de funcionar emitindo opiniões que não são pautadas pela reflexão? Foi quando me dei conta de que um jornal não é mais um jornal. Ou é um grande jornal ou é um pequeno, e sendo um grande jornal é uma peça que faz parte de uma "corporação".
Baita besteira
O que é uma corporação? É uma organização, uma entidade, um ser humano? Afinal, onde a gente vai dá de cara com uma delas. No ar que respiramos, na água que bebemos, a terra que pisamos, os alimentos que ingerimos. As roupas que vestimos, os automóveis que dirigimos, enfim, musica, sexo, lazer, leitura e outras tantas coisas mais – tudo está contaminado pela presença das corporações.
Não são entidades nem têm composição física. São ficções reais constituídas por seres humanos. Elas existem para quê? Para servir a nós ou para que nós as sirvamos?
Na história americana tempos houve em que quando uma corporação excedia seu poder ou parava de ser útil à sociedade tinha sua licença revogada. Eram tempos em que a sociedade civil e o povo americano é quem mandavam, e não a corporação. Até que em meados de 1886 a Suprema Corte legislou uma pendenga entre o condado de Santa Clara e a Southern Pacific Railroad, dizendo que uma corporação privada é uma "pessoa natural", com direito a todas as prerrogativas que um ser humano tem.
Quem diz que a Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos da América não é capaz de fazer uma baita besteira? Essa grande e imensa besteira disparou a espoleta da poderosa bomba social que são hoje em dia as corporações. Fica mais fácil entender o que aconteceu em Seattle e em Davos. Alguém se deu conta de que as portas do mundo estavam abertas para a desumanização da humanidade.
A imprensa brasileira comentou de leve os acontecimentos de Seattle e Davos, mas esqueceu de informar ao povo brasileiro que antes disso os protestos contra o Banco Mundial, o FMI e a Organização Mundial de Comércio já andaram acontecendo em várias cidades mundo afora: Londres, a própria Davos e Washington são algumas delas.
Rede de interesses
Historicamente, as primeiras corporações americanas (em 1600) foram criadas com finalidades especificas – desenvolver as colônias – e com tempo de vida máximo de 20 anos, findos os quais se extinguiriam. Depois da Independência, as leis americanas também eram severas no que se refere às corporações. Constituídas com capital fixo, finalidades pré-determinadas, sempre que extrapolavam suas finalidades eram extintas.
Os americanos sempre desconfiaram das corporações, e as viam como instrumento dos reis da Inglaterra para controle das colônias. Com a Revolução Americana, Thomas Jefferson suspirou e exclamou: "Finalmente a tirania remota se acabou", referindo-se às corporações. Por volta de 1800 havia umas 200 corporações nos EUA, porem impedidas de participar do processo político.
O primeiro passo em favor do capital e das corporações foi a tal Responsabilidade Limitada. Depois de 1886 as corporações, com leis sucessivas, foram adquirindo poder e capacidade de corromper. Com a decisão da Suprema Corte lhes dando status humano e uma personalidade, tornaram-se extremamente poderosas. Este novo ser ganhou o dom da ubiqüidade: pode estar em vários lugares ao mesmo tempo, modificar seu corpo como quiser, absorver outros e até a si mesma. Muda de lugar quando melhor lhe aprouver e pode viver eternamente. Para tanto basta lucrar mais do que gasta.
Entre 1890 e 1930 os EUA foram invadidos por milhares de corporações. Na década de 30 passaram a empregar mais de 80% da mão-de-obra do país. Atualmente, os EUA constituem um Estado incorporado governado por uma coalizão de interesses e de negócios. Depois da Segunda Guerra Mundial, as corporações se fundiram, se metamorfosearam em grandes complexos comerciais, industriais, tecnológicos e científicos. Pesquisam, elaboram, extraem, distribuem e vendem de tudo e a todos. Em vez de lutarem entre si concluíram por formar uma rede de interesses em comum.
O social para o brejo
Atualmente, as 100 maiores companhias controlam 33% do produto bruto mundial, empregando somente 1% da força de trabalho do planeta. As corporações são donas dos lobbies mais poderosos do mundo, controlam a informação e o fluxo das noticias. Se prestarmos atenção às notícias na mídia internacional, vamos verificar que antes da Batalha de Seattle pequenos movimentos de protesto gerados por diversas ONGs, em luta por empregos, meio ambiente, direitos humanos e contra a globalização foram motivados por essas reuniões das grandes instituições financeiras internacionais, e que em última instância servem de causa unificadora destes protestos.
Dois pequenos exemplos: a General Motors é maior que a Dinamarca; a Wal-Mart supera a África do Sul. Para tristeza dos brasileiros, a grande imprensa nacional é formada por corporações. O Globo é parceiro da Folha de S. Paulo no jornal Valor Econômico. Assim como Folha e Abril são irmãs no UOL etc. etc., Brasil afora. Está na hora de o povo começar a cobrar dessas corporações em geral e da imprensa em especial o direito a uma informação baseada na realidade fatual e mais reflexiva.
Talvez com essa cobrança se possa penetrar nos meandros da violência que assola o mundo. Andou acontecendo uma CPI na Câmara dos Deputados sobre medicamentos. Em nenhum momento a imprensa brasileira mergulhou no problema para ver quais as razões que levam o brasileiro e o africano a pagar o que pagam pelos remédios.
Há seis anos o governo brasileiro mandou o social para o brejo muito além da vaca. No Rio Grande do Sul (que meu tio israelense chama de Europa brasileira), um dos estados com Saúde Pública razoável, morre gente por falta de água tratada e encanada e por falta de esgoto de águas servidas. Imagine-se o resto do Brasil. Uma agência do governo federal concluiu que são necessários US$ 40 bilhões para resolver o problema do saneamento básico. Será que a imprensa é sabedora de quanta gente já morreu nestes seis anos e vai morrer nos que se seguem por causas insalubres? Foram seis anos de silêncio da imprensa. A imprensa já parou para pensar onde começa a violência? São seis anos de contingenciamento do social.
Tem muito brasileiro desiludido. Tem muito brasileiro que anda triste. Mas eu continuo a acreditar na utopia. Minha gratidão com o Brasil é intocável, por isso continuo acreditando no país e no seu povo. Essa gente insensível que se deslumbra com o poder e manda o povo comer brioche vai passar.
(*) Jornalista e médico psiquiatra