TURBANTES E PAUTAS
Pedro Celso Campos (*)
Todos os anos, nesta época, os povos latinos revivem as tradições do Natal com presépio, árvore decorada, presentes, Missa do Galo, adoração dos Reis Magos… este ano, ao introduzirem na singeleza do presépio (criado pelo santo da Não-Violência, Francisco de Assis, no século 13), as imagens dos Reis Magos com seus turbantes característicos, talvez um lampejo de incerteza tenha perpassado a mente de muitas pessoas, interligando a imagem iconográfica do turbante a outros turbantes que têm aparecido insistentemente no noticiário desde 11 de setembro último…
Por que esse cenário de turbantes e de pastores, na singeleza de uma gruta ou no bunker de uma caverna, acaba abalando os pilares do mundo e mexendo com a nossa concepção de Bem e de Mal? Como podemos saber se um turbante é do Bem ou do Mal? O que leva os meios de comunicação a fazerem essa opção e passá-la adiante como verdade estabelecida? Será que tanta informação não está desinformando, como indaga Leão Serva em seu recente "Jornalismo e Desinformação"? Segundo ele, após 11 anos de cobertura internacional sobre a Guerra da Bósnia, poucos sabem, no mundo, quem são os bósnios.
Com tantos estereótipos providencialmente fabricados e amplamente divulgados, será que nós, hoje, também sabemos quem são os árabes, quem são os muçulmanos, o que é o islamismo? Saberemos distinguir os turbantes ou estamos apenas "turbados", neste alvorecer de 2002, com o que pode ainda acontecer como conseqüência dos atentados de 11 de setembro? Será que ajudaria praticar um jornalismo mais investigativo, que nos ajudasse a interpretar melhor os contextos em que as imagens são geradas e são transformadas em discursos universalmente válidos, pelos séculos dos séculos? Ou esse tipo de jornalismo ficou apenas no saudosismo dos "Anos 60" e já não tem mais lugar porque as pessoas não têm mais tempo de procurar entender a realidade, bastando-se com versões entregues pela imprensa quais pacotes de Natal?
Bons repórteres, entretanto, não abdicam da necessidade de serem completos, totais, profundos em suas informações. Com isto conquistam o respeito e a credibilidade de seus receptores exatamente quando a correria das novas tecnologias transforma-se num convite ao imediatismo, ao superficialismo, à preguiça na apuração e na pesquisa. Um simples detalhe numa imagem, numa entrevista, numa declaração, numa breve nota social pode dar margem a uma boa matéria para o repórter que tem sensibilidade para perceber o inusitado, que tem o "faro da notícia", como se dizia na época do Novo Jornalismo. Vejamos o que um repórter poderia produzir se observasse alguns detalhes sobre essa história dos turbantes na cena do presépio. De onde eles saíram? O que representam? O que estão fazendo ali? Qual o significado dessa imagem? Existe alguma mensagem secreta nesse quadro, tal qual o Pentágono temia existir nos vídeos de Osama bin Laden transmitidos pela TV al-Jazira? Por que o Evangelho de São Mateus relata a adoração dos Reis Magos na Gruta de Belém? De onde eles vieram?
1. Mito e comunicação
Quem estuda a mitologia compreende a força do relato oral e imagético ao qual os povos primitivos sempre recorreram na tentativa de explicar o sentido da vida e os fenômenos naturais. Todas as crenças sempre buscaram no mito a dialética do entendimento e da persuasão quando precisavam comunicar-se com seus seguidores. Assim, o mito está na base da comunicação primordial. É sintomático que o mito tenha sido, antes de tudo, uma expressão não-verbal, permitindo ampla e profunda interpretação ao ser transmitido através dos contos populares. Ensina o ditado popular que "quem conta um conto aumenta um ponto". Na verdade, a transmissão oral ou pela imagem abre as portas para a própria reinterpretação e recriação do mito, de modo que ele revive no exato instante em que se dá o processo de comunicação.
Isto explicaria, talvez, a rejeição dos sacerdotes celtas (druidas), 700 anos antes de Cristo, em registrar o mito por escrito. Dessa forma ficava em aberto à mais criativa interpretação o papel de Mercúrio como inventor das artes; de Apolo como curador das doenças e das feridas de guerra; de Marte como protetor da guerra; de Júpiter como governante do céu e dos astros; de Minerva como protetora do trabalho e das profissões etc. Se lembrarmos que a religião celta durou mais 700 anos, depois de Cristo, até ser desbancada pelo catolicismo, no século 8, então compreenderemos o poder do mito como meio de comunicação.
Hoje a ciência refutou praticamente toda a mitologia. Quando vemos com os próprios olhos o homem caminhando sobre a Lua, não é mais necessário escrever a "Divina Comédia" para retomar o ensinamento greco-latino de que os poderes celestes regem os planetas e dão ritmo à natureza, tal qual imagina Dante Alighieri na viagem cósmica de seus personagens, descrevendo a aventura humana com uma narrativa repleta de símbolos e mitos. Depois de Freud, Adler e Jung podemos compreender que os monstros abissais não estão no "outro mundo", mas muito perto de nós, no mundo em que vivemos, em círculos muito conhecidos, quando não dentro de nós mesmos, no nosso modo de ver o mundo.
Na verdade, perguntamo-nos, hoje, do alto do nosso saber, se o mito não é apenas uma mentira, como na lenda de Papai Noel e tantas outras. Encontramos uma resposta em Campbell (1997), que afirma: "… na sua compreensão primária da presença e operação das leis comuns a toda a trama do universo ? leis que incluem vida humana, bem como os reinos animal, vegetal e esferas celestes ? a mitologia anunciou não apenas o tema essencial, mas também a principal fonte de fascínio da ciência e, talvez, da própria vida". Portanto, o mito não pode ser compreendido como uma mentira, senão como poesia, como metáfora, como linguagem apropriada e decodificável em seu contexto de produção e de recepção.
Dispensar o mito seria como dispensar a poesia. Pode o homem viver sem a poesia? Sem o imaginário? Sem o idealizado? Sem a utopia? Afinal, sem esperança? Se respondemos sem refletir a tais indagações corremos o risco de julgar a mitologia dos povos como um embuste cósmico, com o qual não temos nada a ver… Mas a verdade é que estamos inseridos nos mitos e "curtimos" cada um deles, consciente ou inconscientemente. Fazemos o sucesso de obras baseadas na mitologia literária… basta ver a "tolkienmania" de "Senhor dos Anéis", com sites na internet pelo mundo todo. E o que faz John Ronald Revel Tolkien (1892-1973) senão retomar os mitos dos povos nórdicos, aqueles que eram considerados bárbaros mas que conquistaram todo o Império Romano, no século 6, não só pelas armas mas, principalmente, pela "infiltração" de seus costumes e crenças nas demais culturas que originaram a Europa atual? A magia das luzes, os mistérios de valquírias, duendes, anões, elfos e gnomos, as lendas dos vikings que integravam o folclore dos fiordes escandinavos, dinamarqueses, suecos e islândicos "incorporaram-se" de forma tão sólida às demais culturas que os países nórdicos eram conhecidos como "oficina das nações", "berço da humanidade".
Do mesmo modo que conscientemente aderimos aos mitos literários para fugir, ainda que por breves momentos, da realidade dura e crua ? como em Harry Potter ? também vivenciamos tradições repletas de conteúdo mítico sem nos darmos conta de suas origens, muitas vezes, pagãs. Montamos anualmente a Árvore de Natal que os povos germânicos criaram para substituir a adoração ao Carvalho Sagrado de Odin. Celebramos o Natal no dia 25 de dezembro sem sabermos sequer a data exata do nascimento de Cristo, o que teria acontecido, segundo estudiosos, quatro anos antes e cuja celebração se dava ora em 6 de janeiro, ora em 25 de março, tendo a data atual sido fixada em 440 d.C. para "incorporar" ? tal qual o costume "bárbaro" ? a festa mitráica (religião persa que rivalizava com o cristianismo na época) que celebrava o "natalis invicti Solis" ? nascimento do vitorioso Sol. Com o Solstício de Inverno, as noites iam ficando mais curtas e os dias mais longos, favorecendo o trabalho no campo. Era a volta do Sol, da germinação, da produção, da vida. Bastou aplicar o discurso "Cristo, luz do mundo", para cristianizar o culto pagão ao Sol. Mais uma vez temos o discurso da imagem e da tradição oral impondo-se como potente processo de comunicação, tal qual acontece em nossos dias.
Sobre a "realidade fabricada", magistralmente discutida no filme de W. Herzog (1974) O enigma de Kaspar Hauser, o ensaista Izidoro Blikstein mostra como percebemos os objetos que nossas práticas culturais já definiram previamente, significando que a realidade já foi fabricada por toda uma rede de estereótipos culturais que condicionam a percepção. Vale dizer que não existe nada de novo no que se refere à lingüística. Tudo o que imaginamos estar criando para nos comunicarmos já foi criado antes, já está posto no mundo da mitologia. Desse ponto de vista, conforme Levi-Strauss, tudo está em processo, em transformação, em mudança… não estamos criando o mundo novo, estamos recriando o já criado, entretanto o fazemos ao nosso modo, conforme os nossos tempos. Por isto os semioticistas ensinam que "todo discurso é simulacro, todo texto é representação, não existindo texto sem subjetividade, sem ideologia, sem visão do autor". Afinal, linguagem é criação ideológica.
Assim, compreendemos o recurso à imagem mítica para se fazer entender inclusive no plano religioso numa época conturbada em que as nações estavam sendo plasmadas e, na falta de imperativos legais ainda em construção, tocava à religião o poder de comandar e dirigir os povos. Chegamos, assim, à mitologia em torno dos Reis Magos, considerados santos pela Igreja Católica e até hoje muito celebrados na Europa e nos países latinos ?sempre no dia 6 de janeiro. Na península ibérica esse é o dia de trocar presentes. No Brasil as comunidades do interior celebram o "reisado", com violeiros e cantadores folclóricos que visitam as residências.
2. A história dos magos
Melquior, Gaspar e Baltasar eram reis, magos, astrônomos ou astrólogos? Por que os outros três evangelistas (Marcos, Lucas e João) não se referem à visita dos reis? Como tomaram conhecimento, ao mesmo tempo, do nascimento de Jesus? Como chegaram a Belém em apenas cinco dias se vieram de reinos distantes?
As versões atuais do Novo Testamento esclarecem, por exemplo, a expressão de Mateus 2,9-10: "… e eis que a estrela que tinham visto no Oriente os foi precedendo até chegar sobre o lugar onde estava o menino e ali parou." A explicação é que teria ocorrido uma revelação interior que fez os reis descobrirem a relação entre o astro e o Messias. Há também uma abordagem astrológica desde que o astrônomo e astrólogo polonês Johannes Kepler observou, na noite de 17 de dezembro de 1603, em Praga, a conjunção do planeta Júpiter (que saiu da constelação de Aquário) com Saturno na constelação de Peixes, formando uma só estrela. Escritos antigos contam que essa conjunção teria se repetido 7 anos antes do nascimento de Cristo, o que levou Kepler a divulgar nova data para a verdadeira Noite de Natal. Mais tarde, porém, ele ingressou no reino do misticismo e sua teoria caiu no esquecimento.
Escritos apócrifos (isto é, não reconhecidos oficialmente pela Igreja), entre eles o "Evangelho Árabe da Infância", publicado e traduzido pela primeira vez em 1677, conta com mais detalhes a Adoração dos Reis Magos: na noite do nascimento de Jesus um anjo guardião é enviado à Pérsia e lá aparece em forma de estrela brilhante em meio a uma grande festa. Três reis, filhos de reis, tomaram então três libras de ouro, incenso e mirra. Vestiram-se com pompa e foram guiados pelo mesmo anjo, cumprindo-se, assim, a profecia de Zoroastro, discípulo de Elias. Depois de haverem adorado o Menino, no quinto dia da semana posterior ao nascimento, o anjo retorna e os guia de volta aos seus paises. No "Evangelho Armênio da Infância" aparecem os países de origem dos três reis: Melkon (ou Melquior) era rei da Pérsia. Baltazar era da Índia, e Gaspar reinava em um país árabe. Após o aviso do anjo, eles caminharam por nove meses até chegarem a Belém.
Os textos apócrifos também revelam outros detalhes da cena em que os Magos estão diante do Menino Jesus: "… então Maria pegou uma das faixas nas quais a criança estava envolvida e deu-a aos magos que receberam-na como uma dádiva de valor inestimável. E nesta mesma hora apareceu-lhes um anjo sob a forma de uma estrela que já lhes havia servido de guia e eles partiram, seguindo a luz, até que estivessem de volta à sua pátria… Lá, os reis e príncipes apressaram-se em se reunir em torno dos magos, perguntando-lhes o que haviam feito, como haviam ido e como haviam voltado e que companheiros eles haviam tido durante a viagem. Os magos mostraram a faixa que Maria lhes havia dado; em seguida, eles celebraram uma festa, acenderam o fogo segundo seus costumes e adoraram a faixa, e a jogaram nas chamas, e as chamas envolveram-na. Ao apagar-se o fogo, eles retiraram o pano e viram que as chamas não haviam deixado sobre ele nenhum vestígio".
Segundo o pesquisador Alday (1998), "os apócrifos são, de um modo geral, obras dos séculos 2 e 3 da era cristã e procuram preencher lacunas sobre a vida de Jesus e de outros personagens importantes do Novo Testamento. Portanto, foram escritos procurando satisfazer certa curiosidade religiosa", daí não estarem incluídos entre os chamados Livros Canônicos, dando margem a muitas interpretações, como ocorre com o chamado Evangelho de Tomé, descoberto no Egito em 1945.
Como as lendas e mitos são sempre arbitrárias, sobrando ampla margem de indagação a quem as ouve e as transmite, naturalmente esses textos sobre os Reis Magos sugerem muitas perguntas. Se eram de três lugares diferentes, como teriam feito "uma festa"? Se caminharam durante nove meses, não receberam o sinal da estrela na Noite de Natal. Por que levaram incenso, ouro e mirra? O que isto significa?
Em "Mytes et dieux des indo-européens" (Coutau-Bérgarie, Paris: Flamarion, 1992), Georges Dumézil explica: "O incenso simbolizava o sacerdócio, o ouro lembrava a realeza, a mirra reportava-se ao estrato produtivo. Ademais, tais produtos expressavam as idades do homem, a juventude e a fecundidade do trabalhador, a maturidade do guerreiro, a velhice do sacerdote. Por fim, estavam relacionados com os três filhos de Noé (4.000 a.C.) e, assim, com as raças humanas. Segundo Hilário Franco Junior (1996), "a identificação mítica entre os Magos e Cristo aparece de forma clara no relato das tradições populares registradas por Marco Pólo: os três reis levavam para o recém-nascido ouro para saber se ele era um senhor terreno, incenso caso ele fosse Deus e mirra se fosse eterno".
Segundo o "Livro de Marco Pólo" (Serstevens, Paris: Albin Michel, 1955), "o mais jovem dos três reis, ao ver o Menino Jesus, reparou que Ele tinha sua própria idade e aparência. O mesmo ocorreu com o rei de meia-idade e com o mais velho deles. Ao estarem os três ao mesmo tempo diante do bebê, este assumiu a aparência da idade que tinha, isto é, de uma criança de 13 dias que aceitou os três presentes que lhe foram oferecidos. Ele era rei terreno, era eterno, era Deus".
Segundo o imaginário medieval, o incenso, o ouro e a mirra seriam procedentes das terras do lendário personagem Preste João, que ficavam ao lado do Paraíso Terreno. Outras lendas afirmam que os três produtos foram retirados de uma caverna onde haviam sido guardados por Adão e seria sobre a montanha dessa caverna que teria surgido a estrela para guiar os Reis Magos. A Lenda de Preste João tem a ver com o Estado Utópico, a Sociedade Ideal, o Mundo Justo, sem conflitos, sem carências, sem violência, daí toda a riqueza simbólica dos presentes levados ao Menino Jesus.
Também é curioso observar que algumas pinturas dos primeiros séculos, encontradas nas catacumbas, mostravam dois, quatro ou 12 reis magos adorando Jesus. A fixação do número três teria a ver com a representação das três raças: Amarela, Branca e Negra. Os três presentes oferecidos também lembravam, em sua simbologia, o entendimento que a Idade Média tinha da Santíssima Trindade, na qual o Pai era imaginado como sacerdote, o Filho como rei e o Espírito Santo como produtor.
Como registra Franco Junior (1996), a referência bíblica feita por São Mateus deu margem a uma rica iconografia sobre os Reis Magos na Idade Média, surgindo importantes peças teatrais e até mesmo a utilização política das pretensas relíquias dos Reis Magos (transladados para a Alemanha entre 1164 e 1165), aos quais o povo atribuía muitos milagres em 1060. "O sucesso dos Magos e do esquema trifuncional (velhice, maturidade, juventude) a partir do século 11 foram fenômenos paralelos resultantes de um mesmo imaginário. No plano mítico eles eram um símbolo de totalidade, um reflexo do próprio Cristo, uma referência a um conceito que então se fortalecia, o da Trindade", conclui Franco Junior.
3. Conclusão
O que se conclui com esta história é que os homens são produto do seu tempo, e só se inventa ou se acredita no que é possível para a época inventar ou acreditar, nas palavras de Franco Junior. Vivemos numa sociedade altamente penetrada pela informação, mas não podemos nos esquecer do substrato que há por trás da realidade atual, dos textos que lemos, das imagens que contemplamos, das festas que partilhamos, das crenças que confessamos, das notícias e declarações que colhemos e divulgamos. Afinal, tudo está relacionado, nada está solto no tempo e no espaço.
Os turbantes de Natal aparentemente são os mesmos do Talibã, mas têm outra história, outra simbologia, outra significação. As figuras dos três Reis Magos não estão ali por acaso. Sequer são três por acaso, como vimos. Podemos concluir, então, que o homem não está diante da comunicação, ele é a comunicação; não está diante do mundo, ele está dentro do mundo porque tudo está em permanente estado de interatividade.
O jornalista não pode perder este sentido da profissão, não pode incorrer no erro de acolher declarações isoladas ou de pinçar afirmações fora do contexto, porque isto significaria desinformar e confundir, em vez de esclarecer e contribuir com a informação total do receptor. O que dá muito trabalho, é certo, mas vale a pena quando o detalhe de três turbantes nos presépios ocidentais nos despertam para uma história lendária, riquíssima, sem fim… porque é a nossa história.
(*) Professor-mestre de Jornalismo na Unesp/Bauru