Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Renato Garcia

TIM LOPES, ASSASSINADO

"Perigo freqüente na reportagem investigativa", copyright O Globo, 10/06/02

"Os riscos para quem faz jornalismo investigativo são constantes. Mas um jornalista ser seqüestrado, torturado e morto nunca passou de uma possibilidade remota. Nesse tipo de reportagem, é comum o repórter ser hostilizado por todos os acusados. Mas é preciso ter consciência de que é o nosso papel e que o exercício desta atividade é vital numa sociedade democrática.

Ameaças de morte, ofensas e outras grosserias são freqüentes. O que mais nos surpreende é que ataques assim, muitas vezes, partem daqueles que mais dependem do nosso trabalho. É raro o jornalista da área de segurança pública que não tenha sido expulso de alguma favela, de uma repartição pública ou do gabinete de alguma autoridade. Somos chamados de abutres. No dia 10 de novembro de 2000, por exemplo, numa reunião com o secretariado o, então, governador Anthony Garotinho sentenciou:

– O jornalista fluminense é um abutre.

O jornalista vive entre o perigo e o dever de informar. A investigação jornalística é essencial para uma nação. A paixão pelo trabalho jornalístico se torna mais forte quando prestamos um serviço à sociedade. Foram trabalhos como esses que possibilitaram a descoberta do envolvimento de policiais, políticos e autoridades com o narcotráfico e com grupos de extermínios. Possibilitou o impeachment de um presidente da República e levou dois juízes à prisão.

No Rio, houve mudanças no comportamento dos criminosos. Na década de 80, o jornalista era considerado um observador de conflitos e atuava até na negociação pela rendição de bandidos cercados pela polícia. Nos anos 90, os bandidos começaram a endurecer essa relação. (Renato Garcia é repórter do GLOBO, com 23 anos de profissão)

 

"Um repórter que se chamava Arcanjo", copyright O Globo, 10/06/02

"Aos 51 anos, Tim Lopes já estava com mais de trinta anos de profissão. Mas parecia um foca (apelido dado aos jornalistas iniciantes) quando começava a falar sobre qualquer reportagem que estivesse fazendo. E não somente as investigativas, que o fizeram famoso e respeitado, mas também os dramas humanos e as histórias de uma cidade que ele vivia intensamente.

– Mesmo com todo o perigo, com todo o risco, ele nunca perdia a vontade de fazer as reportagens. Parecia sempre uma criança, contando sobre as matérias que investigava. Não conheci ninguém mais impetuoso que ele – disse o jornalista e escritor Alexandre Medeiros, amigo de Tim e que foi chefe de reportagem dele em dois jornais no Rio.

Mangueirense doente e vascaíno fanático, Tim Lopes trabalhou no GLOBO, na revista ?Placar?, no ?Jornal do Brasil?, em ?O Dia? e no extinto jornal ?O Repórter?. Seu primeiro trabalho foi na revista ?Domingo Ilustrada?, de propriedade do jornalista Samuel Wainer. Mas não como repórter: Tim era contínuo. Ele começou a fazer reportagens na rua, mas Wainer não considerava seu nome de batismo bom para assiná-las. Assim, Arcanjo Antonino Lopes do Nascimento (que já no nome era um anjo de ordem superior) passou a ser chamado de Tim. O dono do jornal achava o ex-contínuo parecido com o músico Tim Maia.

Até de Papai Noel Tim se disfarçou para escrever

Gaúcho de nascença e carioca desde os 8 anos, quando veio com a família morar na Mangueira, o jornalista encarnou mil e um personagens para fazer reportagens investigativas. Se disfarçou de operário para denunciar as péssimas condições de um canteiro de obras do metrô, no Rio. Vestiu-se como um mendigo e passou dois dias dormindo com meninos que cheiravam cola. Também colocou o uniforme de Policial Rodoviário Federal para apurar um esquema de propinas. Anos depois, para fazer seu último trabalho, mostrado no ?Fantástico?, Tim se disfarçou de dependente químico e se internou, durante dois meses, em clínicas de recuperação de drogados.

Na sua primeira reportagem para o ?Fantástico?, Tim se vestiu de Papai Noel. Em outra ocasião, ele estava disfarçado de vendedor de água na Central do Brasil para fazer uma reportagem sobre gangues de rua quando filmou, com sua microcâmera, a morte do chefe de um bando. O bandido tinha tentado assaltar um casal com um facão, quando foi perseguido por um motorista de táxi que disparava sua arma. O ladrão foi morto atropelado por um ônibus na Avenida Presidente Vargas. O que poderia ser mais uma morte chocou o já veterano jornalista.

– Lembro-me que ele ficou muito abalado com a morte deste menino. Ele não perdeu a capacidade de achar que este tipo de coisa se tornou normal. Tim ainda tinha o olhar das pessoas comuns – contou a jornalista Cláudia Belém, que era comadre de Tim .

Tim trabalhava há seis anos na TV Globo e dizia se espelhar no repórter Octávio Ribeiro, o Pena Branca, que morreu em 1986, aos 54 anos. Tim o considerava um mestre.

No momento, Tim escrevia, em parceria com Alexandre Medeiros, o livro ?Eu sou o samba?, baseado numa série de entrevistas com sambistas cariocas consagrados. Os dois eram vizinhos em Copacabana. Tim Lopes era casado pela segunda vez com Alessandra Wagner. Ele tinha um filho de 19 anos do primeiro casamento, Bruno. E considerava Diogo, filho do primeiro casamento de Alessandra, como se também fosse seu.

Cansado, ele planejava fazer reportagens mais leves

Assim que entrou de férias, após ganhar seu primeiro prêmio Esso com a reportagem ?Feirão do Pó?, da Globo – o primeiro prêmio Esso concedido na categoria TV – em que denunciava a venda de drogas em vários pontos do Rio, Tim Lopes tinha uma preocupação: descansar em algum lugar distante da agitação e da violência do Rio. Procurou amigos e pediu indicação de pousadas no interior.

– Quanto mais no meio do mato, melhor — disse ele.

Com os amigos, ele já mostrava cansaço. Chegou a comentar que estava ?enxugando gelo?, porque o tráfico vinha tomando proporções alarmantes na cidade, apesar das denúncias que a imprensa, inclusive ele, vinha fazendo. Lamentava a falta de ação das autoridades e reclamava a ausência de medidas sociais e de programas educacionais que ajudassem a solucionar o problema das drogas. Demonstrava uma preocupação muito grande com o envolvimento das crianças no tráfico. Mas em nenhum momento mencionou medo dos traficantes por causa do seu trabalho, embora tenha revelado a intenção de preparar reportagens mais leves, sobre meio ambiente. Não conseguiu."

 

"?Somos todos vítimas?", copyright O Globo, 10/06/02

"Foi uma morte na família. Ele era dos nossos, e morreu fazendo o que todos queremos fazer- e nem todos sabemos: descobrir o crime que está oculto e, para o bem coletivo, é necessário contar. A sensação de perda e a tristeza tendem a dominar nossa reação, nossa interpretação do que aconteceu: somos as vítimas, mataram um dos nossos quando fazia o nosso trabalho. Pior, mataram, com crueldade inominável, um repórter que simplesmente – mesmo que esse advérbio não seja digno da coragem com que ele buscava a verdade – fazia o seu trabalho.

Temos inteiro direito à sensação de perda, a um sentimento corporativo de indignação. Já se disse que a primeira vítima, na cobertura jornalística dos conflitos, é a verdade. Muitas vezes, pode ser. Desta vez, não. A vítima foi a busca da verdade. Da verdade que Tim buscava, sem o menor desvio para o sensacionalismo ou a autopromoção, movido por singelo e intenso desejo de contar as coisas que acontecem. Poucos como ele. Poucos com a sua alegria de trabalhar.

Uma perda para o jornalismo? Com certeza. Mas se nos limitarmos a essa conclusão estaremos pedindo à sociedade e ao poder público apenas uma manifestação de solidariedade. Não a dispensamos – precisamos dela, e tanto – mas será pouco. O assassinato de Tim tem outra dimensão: mais do que à corporação, ele feriu, ofendeu e prejudicou a própria comunidade. Porque lhe roubou informação sobre um crime. Informação que a polícia não conhecia – não necessariamente por desídia, mas certamente ignorava. A grande vítima da ação criminosa é própria sociedade.

A morte de Tim Lopes a ofende, de forma brutal. Tanto, ou mais, do que os seus companheiros de redação, os velhos amigos das peladas de sábado.

Nós choramos a perda. A cidade deve chorá-la também. Não apenas por solidariedade, mas porque foi igualmente ferida.

Somos todos vítimas. É nesse contexto que devemos reagir. Preste atenção, prezado leitor: Tim morreu porque era um de nós. Mas morreu por sua causa. (LUIZ GARCIA é jornalista)"