JORNALISMO EM CRISE
Soraia Cury (*)
Caro professor Bernardo Kucinski. Foi com muita decepção e surpresa que li seu artigo de 1? de maio deste ano publicado no site Observatório da Imprensa [remissão abaixo]. A versão impressa me chegou às mãos por meio de uma colega igualmente indignada. A princípio decidi não responder, mas depois concluí que era meu dever como jornalista contestar grande parte das suas declarações absurdas a meu respeito e a respeito dos meus colegas.
O senhor sabe que o admiro imensamente como profissional da notícia, professor e ser humano. Não é segredo nem para o senhor e nem para a classe que esperei ansiosamente por suas aulas, pois tinha certeza de que aprenderia coisas novas, interessantes e polêmicas. De fato, no que se refere ao tema "Saúde e Cidadania", as discussões que tivemos em sala foram extremamente proveitosas; seu ponto de vista inflamado e engajado foi um alento nesses tempos de fabricação da notícia.
Porém, ficou claro nas primeiras horas de debate que o senhor é extremamente intolerante no que diz respeito a críticas ao seu pensamento. Inflama-se com grande facilidade, perde a calma e às vezes eleva a voz para os dissidentes. Não abre mão da sua opinião e considera as idéias divergentes inferiores e passíveis de todo tipo de crítica. Foi assim com a questão do direito ao aborto e sobre a prerrogativa de que "os jornalistas devem construir privadas". Tenho certeza de que o senhor se lembra.
Não pretendo debater aqui as questões filosóficas que o senhor levantou em seu artigo acerca da ética. Concordo com muitas afirmações. Porém, faço questão de refutar, ponto por ponto, as partes do texto que se referem a mim e aos meus colegas:
"Estava dando a penúltima aula de um curso de pós-graduação latu sensu denominado ?Saúde e cidadania?, de um módulo sobre jornalismo social. A aula tratava de ética. Minhas idéias provocaram uma reação alérgica imediata e muito forte que culminou com uma rebelião da classe."
Isso não é verdade. Não houve rebelião, mas reação a um tema posto em debate. A polêmica é sempre bem-vinda, o senhor não acha? Duvido que seja partidário daquele sistema antigo de ensino, em que os alunos ouvem calados e o professor discursa.
"O mote geral era o de que eu estava exigindo posturas irreais, que em todas as redações o jornalista tem que fazer o que o patrão manda, e o que a publicidade manda."
Ninguém disse isso. Pelo contrário. Apenas afirmamos que é muito difícil manter nosso ponto de vista em todas as matérias que fazemos, pois estamos inseridos num modo de produção da notícia extremamente capitalista e desumano. Além do mais, escrevemos para a elite, para os privilegiados, de acordo com o que essa faixa da sociedade espera ler. Ou o senhor acha que os sem-terra lêem jornais todos os dias? Foi nesse ponto que eu falei sobre a "grife Kucinski", comentário que o deixou extremamente abalado. Afirmei que nós, jovens profissionais, não temos a experiência e o prestígio que jornalistas como o senhor possuem. Não que isso nos obrigue a mentir, ser antiéticos ou vendidos, mas essa situação nos torna muito mais vulneráveis.
"E choveram os relatos pessoais de incidentes de supressão de matérias, de opiniões, de trechos e de pautas."
É verdade. As pessoas se sentiram compelidas (ainda que com exagero) a relatar seus casos pessoais, a "violência ideológica" a que são submetidas, a desilusão provocada pelo dia-a-dia da máquina de moer carne das redações. Acontece que, se não se sentissem vilipendiadas por esse cotidiano, tais pessoas não estariam cursando pós-graduação em Jornalismo Social. Essas pessoas acreditam na mudança, ainda que lenta, das atuais injustiças, por meio de seu trabalho.
"Foi então que eu me dei conta que aquela era uma das classes mais homogêneas que eu já havia tido: eram quase todos jornalistas em serviço ativo, nas mais diversas redações, desde a TV Globo até revistas técnicas setoriais. E quase todos na faixa dos 30-35 anos de idade, ainda jovens mas não novatos. A maioria já tinha uns dez anos de experiência nas costas."
De onde o senhor tirou essa informação? Eu tenho 24 anos (na época tinha 23). Meus colegas têm, em média, 26 anos, o que dá cerca de quatro anos de experiência profissional. Eu, por exemplo, estou há apenas três anos no mercado de trabalho. Se bem que experiência e ética não são diretamente proporcionais. Se havia profissionais que trabalhavam desde em TV até em revistas setoriais, onde está a homogeneidade?
"Era a revolta de uma categoria toda contra a exigência de uma ética."
Será que o senhor pensou nas conseqüências morais de nos taxar de antiéticos? O que o senhor imagina que nossos amigos e parentes sentiram quando leram tal afirmação? Ninguém se revoltou contra a exigência de uma ética. Que eu saiba, dissemos que a ética deve ser a do ser humano, a da pessoa socialmente engajada, seja jornalista ou não. O que dissemos foi que o senhor tinha uma visão ingênua e maniqueísta da profissão.
"Perguntei a eles qual a diferença entre um médico que mata e um jornalista que mente? Ofendidos, não responderam."
Respondemos sim. Dissemos que não havia diferença, que ambas as posturas estavam erradas, que havia uma lei e esta deveria ser cumprida. Talvez um dos grupos tivesse se posicionado contra essa afirmativa, mas a grande maioria da classe concordou com ela.
"Disse a eles que navegar é preciso, viver não é preciso, ou seja, ninguém precisa ser jornalista. Também não gostaram. Responderam que tinham sim o direito de serem jornalistas sem precisar ser éticos. Por necessidade de sobrevivência. Não sendo deles a culpa e sim do sistema, tinham esse direito."
Que generalização perigosa e mentirosa! Ninguém em sã consciência diria isso! Todos estávamos lá para aprender a manter a esperança e a ser profissionais melhores. Se achássemos que não podemos fazer nada e que não é nossa culpa, não estaríamos pagando R$ 440 por mês para adquirir instrumentação suficiente para lutar contra o atual sistema.
"Finalmente disse a eles que eu não estava ali para fazer julgamentos morais, mas que eu só podia ensinar na escola uma ética, a do jornalismo livre e comprometido com o interesse público, que se desenvolveu nos melhores tempos do jornalismo ocidental."
Que eu me lembre, o senhor disse que só podia nos ensinar a ser éticos mas que, se quiséssemos, o senhor nos ensinaria a ser malandros, a sobreviver, a ganhar dinheiro com o jornalismo. Aquilo me deixou extremamente chocada, tanto pela intransigência como pela violência com que tais palavras foram ditas. Havia raiva naquela afirmação, baseada sim num julgamento moral que se mostrou totalmente equivocado.
"Disse também que era um equívoco pensarem que a violência intelectual que cada um deles sofria no dia-a-dia das redações não teria conseqüências de longo prazo. Disse que era um equívoco banalizarem essa situação."
Todos sabemos da dificuldade de manter nossos pontos de vista no cotidiano, mas nunca banalizamos ou aceitamos tal situação.
Gostaria também de lembrar que o senhor chamou seus amigos de "bostas" porque eles "não fizeram história", ou seja, não conseguiram ter uma grife própria. Que espécie de pessoa ética trata seus amigos assim? Se eles lhe desgostam tanto não deveria considerá-los amigos, certo? Se seus alunos também não têm grife, seriam eles todos uns bostas? Para que ensinar, então? Qual o sentido de falar às paredes? É claro que o senhor não acredita em tais generalizações, do contrário já teria parado de dar aulas. Seguindo o seu raciocínio, essa seria a postura ética a tomar: se recusar a fazer parte de um sistema educacional corrompido e mercantilizado.
Gostaria também de afirmar que esta carta não tem a intenção de ser desrespeitosa, mas apenas retrata o meu ponto de vista sobre afirmações que considerei injustas. Espero que o senhor possa me responder e ressalto que continuo admirando o seu amor pelo jornalismo e a dedicação com que abraça e sempre abraçou a profissão. Atenciosamente,
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