A VOZ DA ELITE
Samir Thomaz (*)
O jornalista Cláudio Abramo costumava dizer que o Brasil é um país de canalhas. Referia-se, obviamente, a essa "veneranda" elite que temos, que há 500 anos chafurda no cinismo e na hipocrisia, sob os auspícios da ideologia de plantão e do reacionarismo de uma Igreja que agora sofre a concorrência dos evangélicos neopentecostais para ver quem dá o passo mais retrógrado. Isto sem falar nos militares, que depois de terem sido feitos de soldadinhos de chumbo pela Inglaterra na Guerra do Paraguai, na já longínqua década de 60 do século 19, sempre deram o ar da graça no cenário político ? no momento, permanecem ocultos, a eterna ameaça potencial.
Essa santíssima trindade da cena brasileira ? o establishment econômico-político, a religião e os militares ?, quando consubstanciada na camada espírito de porco da sociedade brasileira, sempre teve seus arautos. E, naturalmente, a mídia, espaço por definição de debate público e expressão de idéias, para o bem e para o mal, constitui o meio em que vicejam esses porta-vozes do poder estabelecido, seja ele visível ou invisível.
Há coisa de 15 anos, Paulo Francis era o representante do conservadorismo hediondo mais em evidência na mídia nacional. Escritor mediano, ex-trotskista, Francis escrevia de Nova York e tinha à disposição uma página inteira no caderno Ilustrada da Folha de S.Paulo, de onde provocava a antipatia da esquerda e fazia raiva a leitores mais esclarecidos. Seu esporte preferido era pegar no pé do PT, acirrar polêmicas e espezinhar negros, homossexuais e nordestinos ? o que o fazia campeão de cartas à redação da Folha. Exponho aqui duas pérolas suas, só para molhar o bico dos que não o conheceram: "A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuição maior do que toda a África nos deu até hoje". Ou: "A função das universidades é criar elites, e não dar diplomas a pés-rapados". Também fazia aparições no Jornal da Globo, mas ali pegava mais leve, apenas esmerando-se em cultivar seu estilo histriônico, uma espécie de contraponto cômico ao reaça que ele se revelava no texto impresso.
Manhattan Connection
Atualmente, o vassalo de plantão mais visível do pensamento reacionário atende pelo nome de Diogo Mainardi e escreve semanalmente na revista Veja ? o vade-mécum da elite brasileira e de uma certa classe média, adepta do alpinismo social a qualquer preço. Antes de Veneza, e agora do Rio de Janeiro, ele destila seu veneno contra Lula e o PT, é partidário da polêmica pela polêmica, não disfarça que sente ojeriza por tudo o que diz respeito ao Brasil e aos brasileiros e é o campeão de cartas que chegam à redação de Veja. Imagino que muitas dessas cartas sejam contra o que ele escreve, porém nunca vi publicada uma que fosse contra. As que saem na seção de cartas são sempre a favor, não raro o alçando à condição de polemista e articulista incomparável, genial, lindo, maravilhoso, entre outras heresias. Esta semana, por exemplo, ele escreveu que os filhos dos pobres no Brasil "aprenderiam muito mais se ficassem o dia inteiro assistindo Scooby-Doo na televisão" e que "os pobres deveriam ser pagos para manter seus filhos em casa".
O que Paulo Francis e Diogo Mainardi têm em comum? A julgar pelo início de suas carreiras, pouca coisa. Paulo Francis abriu seu caminho com o próprio punho, à custa de um inegável talento. Diogo Mainardi também tem seu quinhão de talento, mas se valeu e muito da comodidade de ser filho do publicitário Ênio Mainardi, que lhe deve ter aberto muitas portas. Nosso articulista também se arvora a ficcionista, mas ainda não alçou grandes vôos. E, se publica pela Companhia das Letras, para nós, que sabemos como as coisas funcionam no Brasil, fica sempre a impressão de que também ali pode ter pesado o dedo de papai Ênio. O tempo dirá.
Como cineasta, Diogo Mainardi tem experimentado algumas decepções. Pelo menos foi o que se depreendeu de um de seus artigos, em tom melancólico, reclamando da má acolhida que a crítica dedicou a um de seus filmes, feito em parceria com o irmão Vinícius. Parece que papai não pôde fazer muita coisa nesse caso. Mesmo com Vinícius tendo afirmado em entrevista que ele e Diogo tentaram "resgatar a gramática básica do cinema, estilo John Ford, sem qualquer movimento de câmera, truques ou malabarismos, opção estética que reforça a temática do filme". Detalhe interessante: nos releases do filme é realçado o fato de que a obra foi feita "com recursos próprios" em sociedade com João Paulo Diniz (!).
Mas estou me desviando do assunto.
De resto, Francis e Mainardi têm muito a ver, embora o segundo não reúna, até pela diferença de idade, metade da cultura que tinha o primeiro. O que me chama a atenção no caso de Diogo Mainardi, e já chamava no caso de Paulo Francis, é como o preconceito, se não de fato, pelo menos aparente, serve de trampolim para jornalistas ascenderem na carreira. Mainardi acabou de assinar contrato como comentarista do Manhattan Connection, glamouroso programa exibido aos domingos pelo GNT. Vai substituir, ora veja, Arnaldo Jabor. Logo Jabor, que esbanja indignação e dignidade, e cuja ética às vezes se sobrepõe à formatação asséptica que se exige dos articulistas em vídeo ou na imprensa escrita.
Produção de bílis
O que sobra em Jabor falta em Mainardi: perplexidade eivada de ética. Diogo Mainardi também vive perplexo, basta ler sua coluna semanal em Veja. Mas a impressão que fica é que aquele jogo de palavras muitas vezes fora de contexto não passa de uma saborosa diversão para ele, que se diverte com a desgraça diária do povo brasileiro. Existe um certo sadismo em sua voz. Diferente de um Elio Gaspari quando se refere ao povo como "patuléia" ou ao Brasil como "pindorama". Em Gaspari sobressai a compaixão; em Mainardi, um ódio mal dissimulado.
Quando ironiza um show de Gilberto Gil na Favela da Rocinha, nosso oriundi fustiga de uma sentada a miséria, a negritude e a música brasileiras, três aspectos compósitos de nossa realidade, colocando-as no mesmo saco e conferindo-lhes um caráter de causa e efeito. Quando desdenha a linguagem de Lula está desdenhando o próprio povo brasileiro em suas nuanças lingüísticas. Quando zomba do diploma do Senai de nosso presidente está troçando de uma instituição de que se valem muitos jovens para alcançar um nível mais condigno de vida. Diogo Mainardi certamente não sabe o que é isso. Nunca deve ter precisado freqüentar uma escola do Senai na vida. Papai sempre proveu tudo.
Enfim, poderia citar outros exemplos, mas é melhor parar por aqui. Sua página semanal já basta para aumentar nossa produção de bílis. E agora teremos de vê-lo ao vivo e em cores semanalmente no Manhattan Connection, entornando seu ressentimento por ter nascido brasileiro. De uma coisa, porém, não podemos acusar nosso enfant terrible: de não ser coerente com o que pensam seus pares bem-nascidos. Ele serve de fio condutor na mídia dos preconceitos e do desprezo que nossa elite nunca disfarçou sentir pela rafaméia. Nada contra. Ele é o que é, não há muito o que fazer. O que incomoda é vê-lo premiado por isso.
(*) Editor e escritor, 39 anos