Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Resta um último cartucho

CONSULTA 417

Rogério A.B. Gonçalves (*)

Interessante como sempre é possível extrair algo que preste dos piores entulhos. No caso da Consulta 417 da Anatel não poderia ser diferente. Mesmo sendo uma das mais vergonhosas manobras corporativistas da história das telecomunicações do Brasil, a consulta pública acabou tendo seu lado bom, que foi demonstrar na prática o perigo que representa para os direitos dos cidadãos a concentração de poder em mãos de pessoas sem compromissos com o interesse público.

Quem participou das audiências públicas de Brasília e São
Paulo, requeridas pela Ouvidoria da Anatel, para esclarecer os vários
pontos polêmicos da minuta de regulamentação que substituirá
a também polêmica Norma 004/95, certamente deve ter saído
com a nítida impressão de que o show do doutor Edmundo Matarazzo,
uma espécie de pára-raios oficial da Anatel, foi apenas para cumprir
formalidades, pois a agência, como de hábito, não vai mudar
nem uma vírgula da minuta a partir das perguntas feitas pelos participantes
das "audiências públicas", que estavam mais para Show
do Milhão
do que para um debate entre pessoas dispostas a um consenso.

Também deve ter ficado bem claro para todos, que as 300 e poucas colaborações enviadas pelos usuários à Consulta 417 provavelmente terão o mesmo destino das 900 colaborações enviadas à Consulta 372, ou seja, a lata de lixo digital da Anatel.

Quem quiser conferir terá de esperar um pouco para poder comparar o texto da minuta com o texto final, que será apresentado para aprovação pura e simples do Conselho Diretor da Anatel, com casca e tudo. Porém, para saber quando ocorrerá a aprovação do texto da Consulta 417, os interessados ainda terão de descobrir previamente a agenda das reuniões do Conselho Diretor, que são realizadas mensalmente.

O pior de tudo é que, garantida pela Lei Geral das Telecomunicações (LGT), a regulamentação do Provimento de Acesso a Serviços Internet, mesmo batendo de frente com o Código de Defesa do Consumidor e com a própria LGT, depois de aprovada pelo Conselho Diretor da Anatel, vai virar lei e garantir a festa das bancas de advogados, com os milhares de novos processos que começarão a pipocar na Justiça, baseados em lucros injustificados, vendas casadas, prática de monopólio etc.

Isso nos leva à inevitável pergunta: como esta aberração jurídica da Consulta 417 pode ser aprovada?

"Representantes da sociedade"

Ao contrário das leis ordinárias, que tramitam no Congresso Nacional, as regulamentações e normas da Anatel, mesmo tendo força de lei, não são submetidas ao crivo de Comissões Legislativas, que servem para aperfeiçoar e corrigir os projetos de lei, evitando por exemplo, que as leis sejam conflitantes entre si.

No caso das regulamentações e normas da Anatel, o artigo 35 da LGT prevê que tarefas análogas às das Comissões Legislativas devem ser realizadas pelo Conselho Consultivo da agência. O único problema é que parece que esqueceram de avisar aos integrantes do Conselho Consultivo da Anatel que, embora não recebendo salário, o fato de ocuparem cargos no conselho os obriga a interagir com as decisões do Conselho Diretor da agência, requerendo informações, fazendo proposições e analisando os relatórios anuais. Caso não exista erro no sítio da Anatel, desde a criação da agência o Conselho Consultivo gerou apenas um documento, que mesmo assim resumiu-se a uma releitura da LGT.

Também evidencia-se perfil elitista quanto aos currículos dos conselheiros, o que, se por um lado é justificável devido ao teor das matérias que devem ser apreciadas por eles, por outro lado inibe ou até constrange que representantes dos usuários, sem tantos predicados, participem dele, mesmo não sendo obrigatória a certificação de curso superior.

Porém, o que mais chama a atenção na composição do Conselho Consultivo é o fato de presidentes em exercício de empresas diretamente interessadas nas decisões do Conselho Diretor da agência estarem ocupando cargos de conselheiros, como o Sr. José Fernandes Pauletti, presidente da Telemar, que consta como "representante das entidades representativas da sociedade", e do Sr. Cleófas Uchôa, presidente da Telebrasil (Tess), que, ironicamente, é descrito como "representante dos usuários de serviços de telecomunicações".

Estado quase caótico

Considerando-se o item IV do artigo 35 da LGT, que dá poderes
ao Conselho Consultivo de requerer informações ao
Conselho Diretor da agência, parece bastante irregular a condição
de conselheiros da Anatel de presidentes de empresas de telefonia,
pois o cargo claramente favorece seu acesso a informações
privilegiadas. Em julho de 2002, o juiz da 2? Vara Federal de Pernambuco
concedeu liminar a uma ação movida pelo MPF daquele
estado, determinando o afastamento do Sr. José Fernandes
Pauletti do cargo de conselheiro da Anatel. Esta notícia
pode ser lida no endereço <http://www.tribuna.inf.br/anteriores/2002/julho
/13/noticia.asp?noticia=economia08>. Não sei o que aconteceu
depois disso pois, de acordo com o sítio da Anatel, o Sr.
Pauletti permanece conselheiro até hoje.

Para quem queria saber o motivo do não-agendamento de audiências públicas para a Consulta 417 na região da Telemar, parece que finalmente pintou a resposta. A leitura das atas das reuniões do Conselho Consultivo da Anatel passa a impressão de que não há debates sobre os procedimentos da agência, e que elas são realizadas somente para cumprir formalidades legais. Exceto pelas prestações de conta, aparentemente os demais assuntos são discutidos de forma superficial, inexistindo questionamentos e requisições de documentos que seriam normais neste tipo de fórum.

As atas também insinuam que os dirigentes da Anatel não dão a devida importância aos atos do Conselho Consultivo, pois é muito comum que não permaneçam durante todo o tempo nas reuniões, devido a outros compromissos que marcam para o mesmo dia em que elas são realizadas.

Certamente a inoperância do Conselho Consultivo contribui bastante para o atual estado quase caótico da estrutura da agência, principalmente pela não-utilização das prerrogativas legais do item IV do artigo 35 da LGT, o que acaba favorecendo a prática de manobras corporativistas por dirigentes da agência, mais atentos aos interesses econômicos de determinados segmentos do que aos direitos dos cidadãos, a quem deveriam ter o dever moral de servir.

Discussão, afinal

Com o Conselho Consultivo da Anatel deixando de cumprir suas tarefas fundamentais de dar consistência legal aos atos da agência, regulamentos casuísticos e cheios de cláusulas conflitantes com a legislação vigente, como a minuta da Consulta 417, acabam sendo transformados em leis que invariavelmente ferem profundamente os direitos dos usuários dos serviços de telecomunicações.

A Ouvidoria da Anatel publicou seu relatório semestral, no qual expõe
de forma imparcial os sérios problemas estruturais da agência
e como eles afetam seriamente os direitos dos usuários. O
documento pode ser acessado em <http://www.anatel.gov.br/Tools/frame.asp?link=/conheca
_anatel/ouvidoria/relatorio_ouvidoria_2002.pdf>.

Para completar, vai aqui uma informação relevante: no dia 16 de fevereiro de 2003 ocorrerá a substituição dos seguintes integrantes do Conselho Consultivo da Anatel:

1) Antônio Flávio Testa ? Representante do Senado Federal

2) Gilberto Kassab ? Representante da Câmara dos Deputados

3) Roque Sebastião Lage ? Representante do Poder Executivo

4) Júlio César Campos Silva ? Representante das Entidades Representativas dos Usuários

Caso não apareça mais nenhum presidente de telefônica ou preposto deles para usurpar os cargos não-remunerados que devem ser destinados a pessoas identificadas com causas ideologicamente corretas, creio ser esta uma excelente oportunidade para que a Anatel dê início ao amplo processo de correções estruturais proposto no relatório da Ouvidoria, utilizando as prerrogativas legais do Conselho Consultivo, garantidas pela LGT, bastando sensibilizar o presidente Lula para a escolha de pessoas dispostas a trabalhar pelo desenvolvimento das telecomunicações em nosso país, em vez de apontar tecnocratas que só desejam incluir mais uma linha em seus intermináveis currículos.

Quem sabe assim, o Dr. Matarazzo finalmente discuta com alguém o teor da regulamentação da Consulta 417, até que não paire mais nenhuma dúvida sobre sua legalidade. Quem sabe não seria este o último cartucho?

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