Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Retaliação, democracia e barbárie

MOTIVO & JUSTIFICATIVA

Marcio Santim (*)

Não é meu intuito, neste artigo, enveredar-me pelas infinitas suposições acerca dos motivos que poderiam levar uma organização terrorista a assolar um país com arrojados atos de terror. Mas gostaria de frisar o óbvio quase não compreendido de que motivo é bem diferente de justificativa.

Na transmissão das informações do ataque terrorista, grande parte da mídia fez escassa alusão a esta diferença, favorecendo um tratamento sinonímico entre ambos. Exatamente por estarem implicitamente conjeturados, a apresentação dos fatos perante a opinião pública assumiu obscura conotação, dando margem a interpretações calcadas num sentimentalismo patriótico erradicado de lampejos racionais.

Procurar descortinar motivos não é o mesmo que buscar justificativas para a lastimável e repugnante chacina suicida presenciada pelo mundo no histórico 11 de setembro de 2001. Homicídios e atentados a pessoas, grupos ou nações apenas se justificam hipocritamente no plano de certas ideologias. Ideologias que na maior parte das vezes servem para anular a subjetividade, aglutinando-a numa forma absoluta de pensamento, valor e crença que suprime quaisquer sentimentos de culpa que poderiam advir da concreção de atos criminosos.

Se não houver separação racional entre essas concepções, estaremos fadados a uma análise passional, impelida por uma compreensão parcial e fragmentada dos fatos. Apartando justificativas (nada justifica a violência) de motivos, estaremos aptos ao início de uma análise que englobe os desencadeadores inerentes ao trágico acontecimento, tornando-os inteligíveis dentro de uma realidade sóciopolítico e econômica que não diz respeito apenas aos EUA, mas a todo o mundo.

Numa uma analogia com a linguagem clínica, seria uma investigação que não fosse restrita apenas aos sintomas, mas que abordasse principalmente as causas visando a cura definitiva. Penso que tal comparação é cabível, se considerarmos o ocorrido como sintoma exacerbado de uma patologia social mundial.

Como demonstram os veículos jornalísticos, infelizmente os aliados e simpatizantes do país vítima do atentado, ditos democráticos e civilizados, estão apenas se mobilizando para a descoberta dos responsáveis e para a conseqüente retaliação ? ou seja, o objetivo é identificar os agressores para poder lhes dar o troco numa moeda mais forte, o dólar.

Em última instância, apesar dos inúmeros malabarismos ideológicos usados para justificar a atitude reativa que fatalmente virá, será a barbárie paga com outra barbárie. Em outras palavras, um regresso aos tempos do olho por olho, dente por dente.

Rancores e orgulhos

Para conquistar a opinião pública mundial, alguns dos principais governos do mundo ? vocalizados pelos veículos de comunicação de massa ? têm atribuído a tal retaliação a finalidade de salvaguardar os princípios democráticos. Com isso, pressupõe-se que a vingança, a irracionalidade e e força são os sustentáculos desse sistema de organização social.

Será que o antídoto para manter a democracia é a própria barbárie? Para responder a esta questão é imprescindível saber qual o tipo de democracia que se quer defender e em nome de quem fazê-lo. Poder-se-á falar em uma democracia mundial diante da miséria global, da fome, analfabetismo, trabalho escravo e desigualdades sociais abissais?

Retaliações violentas seriam uma prática paradoxal partindo de nações democráticas, e mostrariam descaradamente a face oculta da democracia que atualmente temos. Longe da promessa de igualdade entre os povos que hipoteticamente seria proporcionada pelo desenvolvimento científico e tecnológico, temos um mundo hostil que acentua a cada momento o desequilíbrio social e a dicotomia dominador/dominado. E quando esse sistema de alguma forma é contestado, tende a mostrar explicitamente seu lado irracional.

Tal paradoxo consiste numa contradição inerente aos princípios democráticos, tão ardentemente defendidos por sociedades que recriminam atitudes retaliadoras aos delinqüentes ? como, por exemplo o linchamento ? em nome de uma justiça formalizada e pautada por esses mesmos princípios.

E o direito internacional? Não seria destinado a resolver e punir crimes contra a humanidade, como estão sendo tratadas as atrocidades cometidas pelos antigos governantes iugoslavos na guerra da Bósnia?

Penso que temos nitidamente presente a questão de dois pesos e duas medidas; e, se rancores e orgulhos continuarem falar mais alto, ficará difícil o processo de uma real democracia.

Uma ofensiva nos mesmos moldes por parte dos norte americanos e aliados poderá trazer reflexos indesejáveis no interior das sociedades civis desses países, numa tonalidade definitivamente imperativa de fazer justiça com as próprias mãos, com juros e correção monetária. Isto certamente aumentará ainda mais a violência social instalada. E a mídia precisa estar atenta a isso.

(*) Psicólogo

    
    
                     
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