Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Revolução de Veludo, parte 2

MONITOR DA IMPRENSA

REPÚBLICA TCHECA

Fabiano Golgo

Mais de 100 mil pessoas na Vaclavske Namesti (alameda Venceslau), a rua principal de Praga, enfrentando um frio de vários graus negativos, cantando, acendendo velas, liderados por dissidentes que passaram anos na prisão e artistas do Olimpo local… Revolução de Veludo? De certa forma, sim: parte 2. Desde a véspera do Natal as vielas medievais da capital tcheca, ganharam uma cor já sua conhecida: o povo, no bom sentido, botando o poder na parede. Protestam contra o que foi cunhado de "putsch" em sua TV pública.

Presentes no protesto todos os nomes ainda vivos que fizeram a Primavera de Praga de 68 e a Revolução de Veludo de 89. O descontentamento geral da população desta vez não foi contra o regime comunista, mas sim contra o vale-tudo da política capitalista. "O que está em jogo não são duas emissoras de TV, mas a liberdade de expressão e a integridade de nossa nação", alertou o diretor de cinema Milos Forman (Hair, Amadeus, O Povo Contra Larry Flynt). Contra políticos "que governam para si mesmos, alheios ao povo que os elegeu", segundo palavras do escritor Milan Kundera (A Insustentável Leveza do Ser), outro tcheco tentando achar uma solução para o impasse. A tenista Martina Navratilova, que passava os feriados de fim de ano em seu país de origem, se juntou ao protesto, pois não acredita que "em plena entrada no século 21 forças políticas queiram repetir a manipulação de informação que tanto nos maltratou nas últimas décadas".

Tudo surgiu depois que uma maquinação política arquitetada pelo ex-premier Vaclav Klaus levou à nomeação de um aliado seu para a concorrida e poderosa cadeira de diretor geral dos dois canais de TV pública, Ceska Televize 1 e 2. Para piorar, posto em prática em plena véspera de Natal, maquiavelicamente contando com um possível desinteresse da população, que estaria ocupada com as festividades, e o recesso do parlamento e outros órgãos que pudessem interferir.

O golpe foi dado da seguinte forma: um Conselho de Notáveis é responsável pela eleição do diretor geral da instituição. Esse conselho sempre fora formado por nomes conhecidos, universalmente respeitados, provenientes do espectro artístico e intelectual tchecos. Recentemente, sem grande alarde, um novo conselho foi nomeado pelo parlamento. A imprensa e o povo não prestaram muita atenção, pois o país se desacostumou ao abuso de sua mídia desde o fim da ditadura comunista.

Esse grupo de desconhecidos "notáveis" anunciam, em seguida, que Dusan Chmelicek, há apenas 11 meses na cadeira de diretor geral, teria sua cabeça cortada e eleições para o próximo a ocupar o cargo estavam abertas. Ninguém entendeu por que o jovem Chmelicek, que tinha dado continuação a já excelente produção de documentários, filmes, seriados e infantis, ao mesmo tempo que enriquecera o jornalismo da instituição, tinha sido demitido. Contudo, o que revoltou a população não foi a demissão de Chmelicek, mas a eleição do novo diretor geral.

Só para ilustrar, o processo de escolha tanto de Chmelicek quanto de seus predecessores aconteceu depois da cuidadosa leitura dos projetos dos candidatos à cadeira, geralmente grossos calhamaços abrangendo suas intenções com relação a todos os aspectos administrativos, financeiros e de programação. O processo de escolha mais curto se deu em 2 meses e 19 dias, em 1992.

No entanto, o novo diretor geral foi escolhido em 10 horas. Melhor, quebrando em miúdos: feito o anúncio da demissão e aberto o "concurso", 33 candidatos apresentaram seus projetos (muita gente de mídia, que sonha com o cargo, já os tinham prontos). Meras 8 horas mais tarde (entre 23h e 7h; será que os "notáveis" não dormiram naquela noite?), seis projetos foram selecionados como semifinalistas. Outras duas horas e eles já tinham escolhido um tal Jiri Hodac, intimamente ligado ao partido ODS, de Klaus. E ele não tinha apresentado projeto escrito algum!

Os tchecos – que passaram 41 anos sob pesado controle ideológico comunista em sua mídia e antes disso 7 anos como alvos do planejamento direto da propaganda de Goebbels em suas rádios, jornais e até cinemas – prontamente repudiaram essa nova tentativa de um grupo político de manipular sua principal fonte de informação e entretenimento.

A redação do principal telejornal do país, imediatamente após o anúncio da escolha de Hodac, interrompeu a programação e fez um protesto através de um texto colocado na tela por dois minutos, sem som, avisando que a TV pública acabara de ser rifada em benefício de um partido político.

Chmelicek tinha preparado uma nova programação, que estrearia no dia 2 de janeiro, com 6 novos programas de jornalismo investigativo, 2 de debates com políticos e 2 de humor sobre os mesmos políticos. Esse, aparentemente, foi o motivo do golpe, pois o ODS vinha sendo a principal vítima das reportagens da Ceska Televize e pagou um preço alto pela exposição, perdendo feio nas eleições para o Senado em novembro último.

O conceito de TV pública é diferente do de TV estatal: não recebe fundos do governo. São sustentadas por algum tipo de contribuição da população, geralmente paga junto com a conta de luz (parecido com o que queria a TV Cultura em São Paulo, atacado pela Folha).

Os europeus levam muito a sério suas TVs públicas, por isso em poucas horas entraram na história a BBC, RAI, TFrance, TVEspana, ORF austríaca e ZDF e ARD alemãs. Manifestaram apoio à iniciativa dos jornalistas tchecos e repúdio à tentativa de alguma facção política botar a mão na instituição, que deve ser neutra. Da mesma forma fizeram, mais adiante, os Repórteres Sem Fronteiras, várias associações internacionais de jornalistas e o Comitê de Mídia da União Européia, mais o Solidarnosc (Solidariedade) polonês. O parlamento britânico dedicou ao caso uma sessão e um enviado. A CNN explicava aos americanos onde fica a República Tcheca (mais tarde até elucidaram que até 93 se chamava Tchecoslováquia, então fazendo um "divórico de veludo" e virando dois países), os jornais europeus escreviam que o povo tcheco mais uma vez dava exemplo de protesto pacífico e de cidadania. Aiden White, presidente da Federação Internacional de Jornalistas, veio à Praga, alarmado com o precedente, oferecendo apoio total aos "rebeldes". Jacques Rupin, o assessor para mídia de Jacques Chirac, chamou a tentativa de Klaus de "berlusconiana" e trouxe uma carta do presidente francês pedindo que os envolvidos não sujassem a imagem da República Tcheca na Europa, onde é tida como a nação mais ocidental e européia das do antigo bloco socialista.

Primeiras medidas

O primeiro passo de Hodac comprovou suas más intenções: nomeou, a poucas horas da ceia de Natal, uma tal Jana Bobosikova para o cargo de chefe de jornalismo. Ela era assessora de imprensa de Klaus, portanto um flagrante da tentativa óbvia de transformar o telejornalismo da Ceska Televize em máquina de propaganda do seu partido. Os jornalistas "rebeldes", mais uma dúzia de famosos artistas, intelectuais e ex-dissidentes acamparam no estúdio/redação para impedir a tomada das premissas por Bobosikova e sua equipe. É aí que a história esquenta.

Como Bobosikova não conseguiu entrar no estúdio, muito menos usar a redação e seus funcionários, prontamente demitiu 20 jornalistas, entre eles incluídos os 8 apresentadores de telejornal mais conhecidos e respeitados do país. A seguir, em estúdio alugado, prepara o noticiário da noite. A redação embarricada também preparou o seu. Quando chegou a hora dos tchecos sintonizarem em sua principal fonte de informação noturna, um susto: as imagens são interrompidas e entra um sinal pirata com o telejornal de Bobosikova. Hodac mudou a frequência da antena que distribui o sinal para todo o território tcheco e por meio dela botou no ar a sua versão das notícias. Mas 2 milhões (dos 10 milhões) de tchecos recebem pelo cabo ou satélite as imagens da Ceska Televize. As empresas de cabo e satélite se recusaram a transmitir o que foi batizado de Bobovisão e seguiram com a programação normal.

Para dar um toque poético na confusão toda, o cenário atrás dos apresentadores "embarricados" passou a contar com duas dúzias de integrantes da nata artístico-intelectual local que ficaram ali, de pé, durante os 40 minutos do telejornal, como símbolo e recado à nação de que a resistência estava sendo feita não por "bagunceiros", como passou a bradar o partido de Klaus, mas por gente séria e conhecida, muitos já veteranos na luta contra os abusos políticos. Essa cena se repetiu ao longo de 16 dias. Enquanto isso, Bobovisão colocou no ar 15 minutos da mais pura propaganda política pró-ODS.

Tem mais. No dia 25, depois que os funcionários do tal estúdio alugado se revoltaram e se recusaram a atender às ordens do dono da empresa, cruzando os braços e impedindo que Bobosikova lá gravasse, Hodac resolve a situação simplesmente tirando toda a programação do ar e em seu lugar um texto avisando que "pessoas não-autorizadas" estavam ocupando o prédio da emissora e que até o momento em que "as autoridades competentes tomem uma providência para sua evacuação" não haveria Ceska Televize para a população. Em plena noite de atrações especiais de Natal aguardadíssimas. É como se a Marluce tirasse a Globo do ar pouco antes do show do Roberto Carlos. Foi a gota d’água. Mais de 10 mil pessoas foram para a frente do prédio da TV protestar e oferecer seu apoio dos jornalistas entrincheirados.

Depois de 23 horas, sob imensa pressão, Hodac põe a programação no ar novamente, agora que já conseguira um novo estúdio – em uma emissora privada, a TV Prima. A sua festa não dura mais que uma noite, pois toda a equipe de jornalismo da TV Prima aparece de pé no cenário de seu principal telenoticiário e a apresentadora lê, em voz solene, que todos estão colocando seus cargos à disposição em protesto contra a decisão da direção da emissora de emprestar à turma de Hodac suas câmeras e dependências (já imaginaram os nossos coleguinhas das emissoras privadas colocando seu ganha-pão em perigo em solidariedade ao pessoal de outra emissora?).

A batalha passou a ser na tela. O pessoal da Ceska Televize passa a entrar no ar inesperadamente durante o dia, com gente famosa lendo palavras de protesto. Não demorava muito e Hodac jogava o texto em cima deles, interrompendo o sinal (mesmo que 20% da população pudesse ver tudo pelo cabo e satélite). A programação passou a ser cortada toda hora, substituída pelo que os tchecos logo apelidaram de "versão lida" da TV.

Nesse meio tempo, Hodac contratou uma empresa de segurança e colocou 12 brutamontes do lado de fora da porta do estúdio/redação, com a ordem de que quem saísse não poderia mais entrar. Quarenta e seis jornalistas, 2 diretores de cinema, 4 atores e 3 atrizes famosos, 2 escritores, um ex-dissidente e hoje senador, a faxineira ucraniana e um padre ficaram impedidos até de ir ao banheiro. Alimentação, bem como quatro vasos sanitários portáteis doados por uma empresa de ônibus, cigarros e até bebês (de três jornalistas) tiveram que entrar no estúdio/redação pelas janelas. A equipe recebeu tanta comida, trazida espontaneamente pela população, que teve que doar aos sem-teto. Sacos de dormir e colchões infláveis passaram a fazer parte do cenário do noticiário.

Mesmo com a indignação geral, com a presença diária, abaixo de neve, de milhares de pessoas em frente ao prédio sitiado e dos protestos de todos os políticos com exceção dos do ODS, não havia qualquer saída legal. O legendário jornalista e escritor Ludvik Vaculik, que, durante a Primavera de Praga de 1968 (período de liberdade de expressão liderado por Alexander Kubcek, sob o lema "socialismo com face humana", esmagado pelas tropas do Pacto de Varsóvia), escrevera naquele ano o manifesto 2000 Palavras, considerou o caso atual sério o suficiente para, com a mesma imortalizada máquina de escrever daquele episódio, escrever o 2000 Palavras no ano 2000, que passou a ser lido antes do início de todas as performances de teatro do país – imitando outra tradição tcheca de protesto já vista em 1938 (quando foram ocupados pelos nazistas), 1968 e 1989. Centenas de milhares de assinaturas foram recolhidas também nas ruas.

Lei estuprada

O ex-dissidente e hoje presidente Vaclav Havel, de mãos atadas por causa de seus limitados poderes, entra em rede nacional lembrando aos que (ODS) gritavam que a coisa toda fora feita estritamente dentro da lei, que "há a letra da lei e o seu espírito. Este foi estuprado".

No dia 3 de janeiro, 10 dias adentro da batalha pela TV, 100 mil pessoas lotam a rua principal de Praga em protesto. A pressão leva a uma convocação extraordinária do parlamento, que estaria de férias até fevereiro.

As 21 horas de discussões levam à decisão de eleger um novo Conselho de Notáveis, desta vez com verdadeiros notáveis. Só que o processo legal leva pelo menos 30 dias, então os deputados e senadores pedem a Hodac que renuncie ao cargo (os políticos não têm poder para cortar-lhe a cabeça e o "conselho", dominado por membros obedientes ao ODS, se recusa a fazê-lo, mesmo com a imensa insatisfação pública). Hodac se recusa, o conselho idem. A guerra parecia sem fim. Só que Hodac sofre um colapso nervoso e vai parar no pronto-socorro. Lá fica por 4 dias.

Nesse meio tempo, a imprensa disseca a vida dele. Descobrem que Hodac trabalhara como repórter para um periódico comunista nos anos 70, no período batizado pelos russos de "normalização", onde Leonid Brezhnev, através de uma cartilha com esse título, projetou uma mídia pesadamente ideológica, cujo objetivo era criar uma nova geração de tchecos e eslovacos. A tal normalização foi concebida por causa da Primavera de Praga de 68 e posta em prática pelo eslovaco Gustav Husak, o presidente, marionete do Kremlin. A acusação geral passou a ser que Hodac pretendia fazer um processo de normalização em benefício do ODS. Hodac emigrara para a Inglaterra em 81 e lá trabalhou no serviço em tcheco da rádio BBC Internacional. Mas nunca passou de seu cargo de assistente de redação. Chegou a mudar seu nome para George Hodac e adquiriu cidadania britânica. Tudo isso alimentou o dia-a-dia dos tchecos desde a véspera do Natal. Não havia outro assunto no país.

Finalmente Hodac renunciou, inesperadamente, na tarde de quinta-feira, 11, meia hora antes de uma segunda manifestação com dezenas de milhares de tchecos acontecesse.

A situação ainda não foi resolvida. A equipe que veio com Hodac ainda não renunciou. Os jornalistas não estão mais presos no estúdio/redação somente porque os próprios 12 brutamontes da empresa de segurança particular viraram a casaca.

Bobosikova parou de enfiar goela abaixo de 80% dos telespectadores sua Bobovisão, depois que não encontrou NENHUM estúdio que quisesse lidar com ela. É realmente um episódio que amalgamou a nação.

Absolutamente toda a imprensa européia cobriu cada passo da saga. No Brasil, nada. Uma notinha na Folha quando 100 mil pessoas foram à ruas, apenas. Talvez porque os figurões que tomam decisões nas redações e editorias estejam de férias. Talvez porque estagiários não saibam onde fica a República Tcheca (um deles, de um jornal de Porto Alegre, me disse que a "Tchecoslovênia" não era do interesse brasileiro). Talvez porque as páginas da seção internacional dos jornais sejam tão pequenas que só comportem o cotidiano de Israel, USA e algumas notinhas. Talvez porque nossa imprensa seja voltada ao umbigo e aos Estados Unidos, onde as atenções do noticiário internacional se resumem a… Israel.

Ou talvez porque realmente o protesto de uma nação pequena, ex-comunista, em defesa da neutralidade e independência de sua mídia seja algo tão alienígena para nossas mentes, tão acostumadas com o dedo dos políticos não só na TVE, como também em toda a imprensa (que depende de verbas publicitárias do governo) que nem entendamos do que se trata. Cem mil pessoas nas ruas por causa da interferência do partido da vez na mídia? Só na Europa.

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