Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Revolução e atraso na imprensa

JORNALISTA "EMBUTIDO"

Carlos Eduardo Pestana Magalhães (*)

A função de repórter "embutido" (embedded) nas forças armadas ianques e britânicas, durante a invasão do Iraque, foi muito dura, segundo o depoimento do correspondente Walter Rodgers, da CNN, à Folha de S.Paulo (24/4, pág. A 15). Na entrevista intitulada "Mostrar americanos mortos era proibido", diz repórter Rodgers, "embutido" no 7? Regimento de Cavalaria. Ele relata as dificuldades em pôr suas matérias no ar enquanto, dia e noite, "granadas e foguetes cruzavam nossas cabeças e o tiroteio ocorria ao nosso lado".

Ele fala também de como agia quando encontrava cadáveres. "Vimos muitos soldados iraquianos mortos. Tentava não olhá-los ou ao menos não fixar meus olhar neles. Se você fixa os olhos num cadáver, a imagem assombra você […] Vi muito mais mortos do que feridos". Não havia muito tempo para descansar ou dormir, nem água quente ou eletricidade. Tinha de dormir no carro, em montes de feno, sujo, mas "os combates eram eletrizantes". Para poder assistir de perto a esses momentos "eletrizantes" e transmitir ao vivo, Rodgers teve de assinar um contrato com o Pentágono. Qual era o conteúdo?

"Não me lembro de todos [os detalhes], mas diziam, basicamente, que não podíamos mostrar o rosto de um soldado americano morto. Éramos proibidos de revelar uma operação militar dos EUA antes do seu início. Não podíamos divulgar números exatos das forças norte-americanas etc. Todos pareciam justos e razoáveis."

E sobre as críticas de que as TVs americanas se pautaram pela versão do governo dos EUA? "Não usamos só informações do governo dos EUA. Estava na linha de frente. Divulguei o que vi. Essa era a vantagem dos ?embutidos?. Vimos batalhas, os fracassos e os sucessos. O processo dos ?embedded? foi revolucionário, realmente um avanço jornalístico", finaliza Rodgers.

Bem, essa entrevista revela muita coisa importante quanto ao conteúdo e à orientação que a mídia televisiva ianque teve neste conflito. Independentemente da experiência pessoal num conflito militar, da posição privilegiada de correspondente de guerra, jornalista é antes de tudo jornalista. Há regras específicas para a função de repórter, a questão da ética e da responsabilidade com a informação, o respeito à sociedade ? a informação jornalística é antes de tudo um bem social ? e à veracidade dos fatos.

Não parece ter sido exatamente isso o que aconteceu na cobertura da TV ianque neste conflito. A cobertura ao vivo de Rodgers, mostrando os avanços das forças armadas ianques, ficou nesse patamar: mostrou avanços e nada mais. O enfoque foi o do vencedor, dos "mocinhos contra os bandidos", dos valorosos e democráticos soldados do Tio Sam contra os demoníacos soldados iraquianos ? fedayns ou exército regular de Saddam ?, algo como uma partida de basquete da NBA. Cenas de guerra mesmo, só quando os soldados americanos entravam em ação.

Rodgers diz que mostrou não só os sucessos da frente de batalha, mas também os fracassos. Onde? Quando? Em que momento isso aconteceu? Não havia fracassos! As retiradas, quando foram informadas, eram táticas, nada mais. Afinal, os combatentes iraquianos estavam usando métodos, digamos, "não-convencionais" de luta ? uso de roupas civis, armadilhas para atraírem os soldados, tática de guerrilha, bombas humanas etc. ? e isso dificultava um pouco o avanço dos soldados da "democracia".

Ora, parece brincadeira essa argumentação. Que generais das forças armadas usem argumentos assim é o esperado. Afinal, é uma guerra. Da imprensa, dos jornalistas esperava-se outra postura. Usualmente, os "embutidos" reproduziam tais argumentos maniqueístas ? Bem contra o Mal ? e nada mais! Nenhum comentário, nada! Nenhuma postura crítica. Havia, de maneira clara em alguns repórteres e disfarçada em outros, um comportamento de torcida, de apoio aos avanços e às vitórias das forças armadas ianques e britânicas. É esse o papel de um jornalista? O fato de se estar na "linha de frente da batalha" justifica essa postura? Mostrar imagens é suficiente como informação?

Síndrome de Estocolmo

Um exemplo de que as informações transmitidas, ao vivo ou em tape, nem sempre correspondiam à verdade foi a batalha pela tomada da cidade de Basra, no sul do Iraque, pelas tropas britânicas. Os ingleses só conseguiram controlar tudo depois que Bagdá caiu de podre. Até então, a luta era dura e encarniçada. Prova disso foram as imagens que a TV britânica BBS mostrou da grande quantidade de armamentos iraquianos encontrados em diversos pontos da cidade, abandonados por soldados e fedayns. Pela quantidade, se tivessem sido utilizados os combates teriam continuado por mais um bom tempo. Sabe-se lá quantos soldados da rainha teriam morrido.

Rodgers afirma que não podiam mostrar rostos de soldados americanos mortos, mas podiam mostrar rostos e corpos dos iraquianos. Podiam informar o número de militares iraquianos mortos, fornecidos sempre por ianques e ingleses. E ele considerou razoáveis esses limites! Na pratica, o que ele estava fazendo era propaganda militar dos americanos, informando só o permitido e que ajudasse a manter o moral da população ianque e dos seus soldados. Isso é jornalismo?

A CNN, nas suas vinhetas de apresentação das notícias sobre o conflito, claramente usava imagens de exaltação das forças armadas dos EUA, mostrando equipamentos modernos em ação ? aviões, blindados, helicópteros etc. ? como se o conflito fosse mais uma etapa do "campeonato nacional de conquista do petróleo alheio". Jornalismo ou show?

O convívio diário de jornalistas com as tropas nem sempre é benéfico. Pode provocar algo parecido com a "síndrome de Estocolmo" (as vítimas criam vínculos emocionais com os bandidos), em que todos acabam desenvolvendo relações de amizade etc. E isso pode prejudicar o trabalho de um jornalista. Se essa forma de trabalhar a informação ? jornalista "embutido" ? for realmente revolucionária, como afirma Rodgers, então a veracidade da informação corre sério risco. E, assim, a credibilidade dos veículos de mídia vai, literalmente, para o fundo do poço. E sem credibilidade não existe imprensa. Muito menos imprensa livre, responsável e ética.

(*) Jornalista