OFJOR CI?NCIA
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TUBERCULOSE REDIVIVA
José Antonio Palhano (*)
Alberto Dines, mais que se utilizar de rica metáfora para propor uma reflexão a respeito dos recentes agitos de Davos e Porto Alegre (levou-nos todos a um revival da obra-prima de Thomas Mann, grata indução a um repeteco à cabeceira), foi de um timing jornalístico extraordinário no que toca a grave e atual questão de saúde pública, ao registrar o recrudescimento da tuberculose ("A Montanha Mágica, mítica. Macabra", Jornal do Brasil, 3/2/01 ? remissão abaixo). Mal que deveria a essas alturas milenares manter-se confinado às altitudes literárias do genial alemão, anda ora a pegar como se catapora fosse cá nesse nosso mundinho rasteiro, vergonha epidemiológica para africano nenhum botar defeito.
Atropeladas pestilentas como essa ? tem também a hanseníase ? têm merecido de todos nós apenas alguns espasmos conformistas, nos quais processamos pensatas que as justificam exclusivamente a partir do nosso crônico e incurável subdesenvolvimento. "Mazelas sociais" é expressão que se presta à perfeição para explicar as hemoptises, as cavernas e os óbitos decorrentes da tuberculose pós-moderna.
A coisa passa a complicar apenas quando se investe, preguiça macunaímica à parte, rumo às suas reais e científicas causas. Entre as quais certamente há que se valorizar os mecanismos da chamada resistência medicamentosa, arma terrível a que os micróbios de uma maneira geral lançam mão ? com eficácia invejável, diga-se ? a fim de enfrentar a barra dos tempos modernos. Entre eles, o Bacilo de Koch, ou BK, no jargão hipocrático. Vai daí que antibióticos e quimioterápicos são remetidos à aposentadoria precoce a um ritmo digno daquelas cambadas que compõem a chamada elite brasileira, políticos e demais chupanças que, disseminados nos outros poderes, parasitam e exaurem a nação. Em resumo, essas drogas tornam-se obsoletas em tempos cada vez mais mínimos e alarmantes.
A indústria farmacêutica, tão pródiga em suas tecnologias e tão célebre pelos seus hábitos corsários (frente aos quais por enquanto apenas o ministro José Serra não se ajoelha), trata então de se adequar a essa macabra e lucrativa mutação genética protagonizada pelos germes e, prontamente, jura à distinta e esfolada clientela ininterrupto e heróico combate aos mesmos. E dá-lhe então entupir os consultórios com caríssima, vagabunda e alienante literatura, à qual doutores pouco imunes à sua escancarada, solerte e impune malignidade sucumbem espetacular e febrilmente, intoxicados pelo marketing prenhe de novíssimas poções denominadas de "especialidades farmacêuticas". O rodízio pelo qual se apresentam essas novidades e alquimias, esperta e mercadologicamente batizadas, lembra bem o expediente de um badalado e concorrido motel.
Pereba chinfrim
Falando em remédios, vale a pena destacar a rifampicina, droga de primeiríssima linha no combate à tuberculose. Bem ao contrário de ter seu uso reservado à nobre e humanística missão de detonar o bichinho tão bem abordado por Mann em sua Montanha Mágica, a rifampicina, porém, foi incumbida de tarefas menos importantes. Manipularam-na em uma versão spray (Rifocina Spray, rifamicina SV sódica, frasco de 20 g, Hoechst, Marion Roussell, salvo alguma dessas incorporações modernosas que tanto galvanizam e bestificam nossos comentaristas econômicos).
Há anos vende como banana em fim de feira, para o estratégico combate a perebas, abcessos, unha encravada, bicho-do-pé, prego no pé e chulé, mordida de cachorro, de gato e de macaco, sarnas, bicheiras, bernes e pústulas em geral. Magnífica jogada de marketing, serve também para aumentar a resistência e loguinho o remédio pode virar vitamina do tal de BK, vulgo agente etiológico da tuberculose rediviva.
Antes que na denominada comunidade médica surjam vozes iradas questionando este raciocínio, que desemboca no uso torto e anti-social da rifampicina, convém lembrar, sem prejuízo do pendor pela polêmica e pelos academicismos de praxe, que caso realmente conhecêssemos a resistência antibiótica a fundo, não perderíamos tantos doentes vitimados por infecção hospitalar.
O bacilo da tuberculose, qualquer leigo bem o sabe, flana por aí tão lépido, faceiro, livre e virulento quanto os macróbios Luiz Estêvão e Jáder Barbalho (este último firme e forte na sua insana meta de carunchar o Senado até torná-lo semelhante a um pulmão escavado e murcho, ajudado pelos seus comparsas do PMDB e pela nossa vergonhosa passividade). Fazê-lo (o bacilo) cheirar suavemente a droga, que bem dosada pode matá-lo quando se aloja em pulmões e vísceras diversas, é algo que, convenhamos, foge até ao nosso realismo fantástico.
Aliás, vale lembrar que além da farra dos laboratórios, grassa no país outra gravíssima síndrome, conhecida como subdosagem de antibióticos, fruto de duas causas distintas: a monumental ignorância de médicos diplomados em escolas tecnicamente enfermiças e de mal semelhante secretado pelos balconistas que dão plantão (literalmente) nas farmácias.
A subdosagem, uma mania nacional, é a mãe de todas as resistências medicamentosas. Além, é claro, de se transmutar no bilionário e encantado caldo de cultura onde a indústria farmacêutica aplaca sua voracidade. Um picolé pasteurizado para quem for capaz de calcular quando uma tropa de Bacilos de Koch, pousada ou sobrevoando as imediações de uma pereba chinfrim, está ou não sob tratamento multiplicador e fortalecedor imediatamente após esta receber uma borrifada de Rifocina Spray. Com ou sem prescrição médica, no Brasil tanto faz.
(*) Médico e jornalista
ASPAS
"A montanha mágica, mítica. Macabra", copyright Jornal do Brasil, 3/2/01
"Despencou dos Alpes e esborrachou-se na planície. Como no poema de Drummond, caiu verticalmente e transformou-se em notícia ? manchete, bulha. Era sinônimo de cura, sossego, salvação. Virou grife da discórdia, mal-estar, doença. E por força da dialética, sua negação nos antípodas (perto dos pampas) saiu igualzinha.
Em Davos estava internada a mulher de Thomas Mann, Kátia, tratando uma tuberculose recém-diagnosticada. O escritor passou com ela quatro semanas em maio-junho de 1912 no Sanatório da Floresta, cerca de 2 mil metros de altura. A Europa também estava febril, numa antecipação da Grande Guerra que começaria dois anos depois. Thomas teve uma febre por alguns dias, logo diagnosticada pelo médico do sanatório (de olho num novo paciente) como inflamação dos tubérculos pulmonares. Outros médicos ridicularizaram o parecer. Thomas não tinha coisa alguma, Katia curou-se dois anos e alguns sanatórios depois. A doença da mulher, o equívoco que confundiu a vida com morte e aquele soberbo cenário nos píncaros do mundo acionaram o enredo para A Montanha Mágica, publicado em 1924, Nobel da Literatura em 1929.
Hans Castorp, o protagonista, converteu-se em paradigma daqueles tempos confusos. O jovem engenheiro naval vai visitar um primo internado em Davos, acaba contagiado pela tísica e lá passa sete anos, perambulando entre a saúde e a enfermidade, paixões e enterros, febre e lassidão, tropeçando entre o romantismo idealista, o niilismo e o anarquismo revolucionário. Curado, acaba alistando-se para lutar na guerra. Não está obsoleto, continua sendo o protótipo da perplexidade, ingenuidade e perturbação.
Thomas Mann queria pintar um painel satírico da burguesia européia naquele fim de época. A mão pesada daquele alemão do Norte acabou produzindo um esgar sarcástico – pontual e atemporal. Diz ele no preâmbulo: ?…acontece porém com a história o que hoje em dia também acontece com os homens, e entre eles, não em último lugar, com os narradores de histórias: ela é muito mais velha do que os (seus) anos…? (da tradução de Herbert Caro, Nova Fronteira, 801 pgs., 1980).
Zauber, em alemão, é mais do que magia: pode ser bruxaria, encantamento, fascinação, ilusão. Mito. A tuberculose era um mito. Doença insidiosa, terminal para aqueles que não podiam tratar-se em clima seco e pagar uma superalimentação, a ?fraqueza do peito? corroía a resistência enquanto a febre constante produzia falsa sensação de excitação. Combinadas, consomem a vitalidade (daí consumption em inglês).
Hans Castorp, como a doença que o rodeia e o infecta, desliza pelos diferentes estágios de malignidade, pelos diferentes refeitórios da clínica de Davos (todos fartos em proteínas), influenciado pelos mensageiros das idéias daquele tempo, até assistir a um estúpido e fútil duelo entre dois deles.
Depois de 1945 (quando efetivamente acabou a Grande Guerra começada em 1914), com a descoberta da hidrazida e do coquetel de antibióticos, Davos deixou de ser estação de cura para converter-se em estação de esportes de inverno, resort do jet-set internacional. Há 31 anos abriga um evento comercial-promocional apropriado ao cenário e a seus freqüentadores. Entra quem pode pagar, fala quem precisa aparecer.
Se antes Davos era um esconderijo onde se enfrentava a morte, hoje é um dos trampolins da Sociedade dos Espetáculos, grande circo das lantejoulas retóricas. Intitula-se fórum mas não tem representatividade nem legitimidade. Não decide, não tem responsabilidades nem direitos. Passarela, pódio e palco para os que detêm o poder. Ou pretendem detê-lo (valem os dois sentidos do verbo). Se ganhou dimensão, credite-se à ingenuidade ou leviandade daqueles que vão beliscar as sobras do banquete anual e com elas fingir que estão acompanhando o que se passa no mundo.
O anti-Davos ao rés-do-chão, o Fórum Social de Porto Alegre, foi um happening na direção inversa, evento promocional como a sua antítese: festeiro, badalado e prenhe de contradições. Seu evento máximo ? a destruição de uma experiência científica legal ? equivale à queima de livros proibidos pela Inquisição. Ou à demolição do telescópio de Galileu.
A vedete, o próspero criador de cabras José Bové, apresentado como líder ?camponês?, é o lídimo representante do conservadorismo e do reacionarismo dos pequenos e médios agricultores da Europa Ocidental. Despreocupados com a fome no mundo ou a inclusão das massas dos imigrantes da África ou Ásia, são exemplos da neoxenofobia tão nociva quando o neoliberalismo. Querem subsídios mas não querem que nós subsidiemos nossas exportações. São contra a União Européia, querem fronteiras e arame farpado – querem guerras.
O fato de Bové detestar a Monsanto não o qualifica como líder progressista. Seus companheiros de palanque não abriram a boca contra a odiosa Bombardier, o novo polvo canadense. Abominar hambúrgueres é prova de bom gosto gustativo, assim como a preferência pelo delicioso chèvre produzido por suas cabras. Não é diploma de sobriedade política.
A tuberculose, doença de artistas e marginais, voltou a ser um dos flagelos da humanidade. Para enfrentá-la já não se precisa de Davos ou Campos do Jordão. A montanha mágica, mítica, macabra, com todos os seus símbolos, pede efetiva contestação e, não, contrafação."
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