O POVO
"O Povo não ouviu o povo", copyright O Povo, 5/10/03
"Há um embate entre Governo do Estado e setores da sociedade. No dia 16 de setembro, o governador Lúcio Alcântara enviou à Assembléia Legislativa mensagem contendo Projeto de Lei Complementar que aumenta de 25% para 27% a alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de oito itens: 1) bebidas alcoólicas; 2) armas e munições; 3) embarcações esportivas; 4) fumo, cigarros e demais artigos de tabacaria; 5) aviões, ultraleves e asas-deltas; 6) energia elétrica; 7) gasolina; 8) serviços de comunicação. O acréscimo, segundo o texto oficial, sustentaria o Fundo Estadual de Combate à Pobreza. Ninguém da oposição, e mesmo aliados do Governo, se dispõe a questionar a necessidade do Fundo ou a pertinência de mais imposto sobre os cinco primeiros pontos. São, inquestionavelmente, supérfluos. Os três últimos é que geram discordâncias. Ao contrário dos demais, nenhum é dispensável, nenhum é luxo, nenhum é restrito a quem tem renda alta. Mais ainda: qualquer aumento do tributo referente a energia elétrica, gasolina ou serviços de comunicação ? sobretudo a telefonia ? terá como conseqüência natural a elevação de preços ao consumidor. Isso é um desfecho histórico.
No dia 17, O Povo não trouxe nada sobre o assunto. Levou, o que se chama do jargão da imprensa, um furo da concorrência. Mas conseguiu recuperar as perdas e desde o dia 18 tem feito uma relativamente ampla cobertura sobre a proposta e suas repercussões. Escrevo ?relativamente ampla? porque, excluindo avaliações nas colunas Política e Vertical S/A, na seção de Artigos e a do Editorial do dia 25 de setembro (?Secando as fontes?), o jornal tem se restringido aos gabinetes. Discursos de deputados, análises vacilantes ? ora contrárias, ora favoráveis ? de empresários, reuniões entre representantes do Governo e de entidades classistas são a tônica das matérias. E a sociedade, que vai pagar a conta, o que pensa disso? E o cidadão de classe média, que compõe a grande massa de leitores do O Povo, o que acha? O jornal, por mais esdrúxula que a omissão possa parecer, não atentou para isso. Do dia 18 de setembro, marco zero da cobertura do O Povo sobre a questão, a este sábado, 4, só uma pessoa que não é político, empresário ou gestor público teve opinião publicada: o motorista Lucival Policarpo, em Economia, na edição de segunda-feira, 29. Mais nada. E isso é pouco, muito pouco. Ao povo não foi, ainda, dado o direito de se expressar sobre o que lhe pesa no bolso.
Participarão num instante
Domingo passado, 28 de setembro, uma pequena matéria intitulada ?Lions Clube promove evento para idosos?, na Editoria Fortaleza, apresentava erros assustadores. Os grifos a seguir são meus: ?Mais de 500 idosos que são atendidos por 23 clubes do distrito L-4 do Lions Clube, em Fortaleza, participarão ontem do evento Viva Terceira Idade? e ?Durante o evento foram sorteados brindes e os idosos participarão de dança de salão?. Extremamente incomodado, apontei a falha para a Redação. Quarta-feira, fui informado de que a matéria havia sido escrita vários dias antes da publicação, daí o verbo ?participar? estar no tempo futuro, e que só se pôde aproveitá-la para o domingo. O deplorável deslize aconteceu, segundo a Redação, na atualização do texto.
Qualquer que seja o motivo, a falta de uma revisão mínima acabou pondo o jornal em má situação e, conseqüentemente, prejudicando o leitor ? que, no mínimo, espera do produto que consome um inarredável compromisso com a qualidade. Grave, no entanto, é que erros desse gênero não são raros. No dia 13 de setembro, na mesma Editoria, a matéria ?Apartamento no Meireles é destruído após incêndio? continha derrapada semelhante: ?Até documentos de trabalho (…) numa instante teriam sido destruídos pelo fogo?. Aliás, nesse caso o leitor teve motivos para começar a se engasgar pelo título. A não ser que outro desastre tivesse ocorrido após a ação do fogo, o correto seria ?Apartamento no Meireles é destruído por incêndio?.
Criticar não é suspeitar
Cabe ao jornalista o direito de suspeitar? O não como resposta se torna óbvio pela natureza da atividade, mais vinculada à crítica do que a outro senso. No entanto, quarta-feira passada, ao analisar nota da Prefeitura de Fortaleza sobre a suspensão pela Justiça de uma licitação para comprar merenda escolar para as escolas municipais, a coluna Política, assinada pelo jornalista Fábio Campos, trazia a seguinte observação: ?É obrigação do jornalismo ver com olhar suspeito (grifo meu) e crítico tudo o que a Prefeitura faz?. Para fundamentar o que havia escrito, o colunista acrescentou: ?O histórico de certas ações da gestão municipal determina a atitude de vigilância redobrada. Nem é preciso aqui relembrar que o dinheiro da merenda das crianças miseráveis já serviu para comprar ônibus de banda de forró?.
Não visto nem gostaria de vestir a toga de advogado do diabo, mas o que se nota é um pré-julgamento indevido a partir de uma frase mal construída, não condizente com o paradigma de isenção construído pelo O Povo. Não nos cabe emitir sentenças prévias ou ?olhares suspeitos? sobre entes privados ou públicos ? sejam prefeituras, governos estaduais ou federal, judiciário ou legislativo ? nem sobre pessoas físicas. Atribuir isso ao jornalismo é, pelo menos, uma informação errada ao leitor. O ?olhar suspeito?, repetindo o que escrevi no comentário à Redação na quarta-feira, ?não é uma atitude isenta, desapaixonada, racional?. Por fim, ?contamina qualquer análise que se faça e a faz automaticamente perder a força junto ao leitor?.
Ainda a propósito disso, vale registrar o que escreveu ao colunista e me autorizou a reproduzir aqui a professora Adísia Sá, primeira ombudsman do O Povo e referência nacional no ensino da Ética Jornalística: ?Obrigação do jornalismo é ver com olhar crítico tudo o que acontece ao seu redor. Jamais olhar suspeito. Olhar crítico diz tudo: isenção, responsabilidade, eticidade. Olhar suspeito é preconceituoso, enviesado, dirigido. Ao jornalista não compete suspeitar e sim criticar, no sentido exato da palavra?."