Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Roberto Maciel

O POVO

"A manchete sobre o que não existe", copyright O Povo, 30/11/03

"Terça-feira, O Povo escolheu para manchete uma matéria a respeito de um estudo que indicaria um aumento da carga de impostos para a classe média. Seria uma boa escolha, julgando o cenário tributário brasileiro e a voracidade com que governos municipais, estaduais e federal avançam nos ganhos dos cidadãos. Basta rever fatos recentes – a tarifa do lixo criada pela Prefeitura de Fortaleza, o aumento da alíquota do ICMS sobre gasolina, telecomunicações e energia elétrica instituído pelo Governo do Ceará e as alterações pretendidas pela União para o Imposto de Renda – para considerar justa a preocupação da sociedade e, por extensão, seu reflexo na Imprensa. Mas o título no alto da capa do jornal era um erro crasso: ?Fim das deduções – Classe média vai pagar 23% a mais de imposto?. Deu-se ar de constatação ao que não existe ainda (o ?fim das deduções?) e ao que, dependendo de articulações na cúpula econômica do Governo Federal, pode não existir (?classe média vai pagar 23% a mais de imposto?).

Cálculos de uma entidade privada sediada em Curitiba (PR), o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), embasaram a matéria – da Agência Folha. Na página 19 da edição, o erro da capa se prolongava. O título da matéria principal dava conta de algo também inexistente e que só se mantém na pauta dos veículos de comunicação por força da especulação – inclusive da oposição ao governo Lula -, a nova tabela do Imposto de Renda: ?Fim das deduções – Nova tabela eleva carga tributária?. Como dizer que uma ?nova tabela eleva carga tributária?, se essa ?nova tabela? não existe ainda? O máximo que havia para aquele texto era a projeção do IBPT, uma simulação que tanto pode estar certa quanto errada.

Por fim, que credibilidade tem o IBPT? O leitor ficou sem saber, já que a entidade é pouco conhecida e somente no fim da matéria da página 20 (?Imposto de Renda – Quem ganha menos paga mais?) mereceu uma superficial explicação. Pesquisei as edições de 1997 a 2003 no Banco de Dados do O Povoe só encontrei uma menção, em 6 de outubro de 2002, em uma nota da extinta coluna Ondas. Não suponho que o IBPT não mereça crédito, mas, repito, não se tem dele, pelo menos na Imprensa local, referências suficientes.

Meia cobertura

No dia 19, quarta-feira, a página 17 do O POVO, na Editoria Política, trazia matéria com o título ?Prefeitura – BID só da (sic) empréstimo com mudança na lei?. O enfoque era um entrave burocrático, mas de reflexos políticos, que impedia o Município de Fortaleza de obter empréstimo de R$ 147 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) se não alterasse dispositivos da Lei Orgânica – a constituição da cidade – referentes às concessões de linhas de ônibus. A verba foi reivindicada para bancar obras em 2004. A notícia estava sendo publicada com atraso, já que o ?Diário do Nordeste? a havia registrado no dia anterior. Atraso, diga-se, difícil de justificar, já que O POVO, assim como os outros jornais locais, tem repórter destacado para cobrir o legislativo municipal. Pois a história se repetiu uma semana depois: quarta-feira passada, 26, o ?Diário? informou que a Câmara concluíra na terça a votação da emenda que muda as regras de concessão na área de transporte. O Povo não deu nada.

Levar furos ou impô-los à concorrência, já registrei aqui, é circunstancial. Acontece com qualquer órgão de comunicação. Só que no entorno daquele assunto pelo menos dois pontos que exigiam atenção redobrada: 1) A quantia que o BID creditará na conta Prefeitura representa quase seis vezes o que o Ministério da Integração Nacional repassou para o Dnocs aplicar em ações no Ceará. Ou 21 vezes a dívida não negociada da Universidade Federal do Ceará; 2) 2004 é um ano eleitoral.

O pouso forçado da notícia

Um avião da companhia Air France fez pouso de emergência em Fortaleza sábado passado. O caso foi manchete do ?Diário do Nordeste? na segunda-feira, em matéria com diferenças gritantes em relação à do O Povo. Vejamos o que se publicou:

No O Povo– Não se informou o nome da empresa dona do avião. Entrevistado, o comandante do grupamento dos bombeiros no Aeroporto, identificado como capitão Carvalho, não soube dizer o nome da companhia;

– O avião seguia de Paris para Recife. A pane em uma turbina teria gerado um ?alerta branco? em todos os aeroportos brasileiros – O Povo não explicou o que é ?alerta branco? nem sua posição na escala de segurança aeroportuária;

– Nenhum passageiro foi localizado. O mesmo militar também ignorava quantos eram e qual o paradeiro deles;

– Não se informou quantos tripulantes havia a bordo.

No ?Diário do Nordeste? – Informou-se que avião pertencia à Air France no texto e em fotos publicadas na capa e internamente;

– O avião ia de Paris para o Rio de Janeiro e o problema gerou ?alerta vermelho? – jarg&aatilde;o também não esclarecido;

– Os passageiros foram acomodados em hotéis em Fortaleza. Eram 256. Ainda no domingo, embarcaram em dois vôos da Varig e seguiram para seu destino;

– Foi informado que havia oito tripulantes.

O Povo errou seguidamente, conforme se pôde ver em matéria publicada na terça-feira. Tão malogrado quanto o vôo do avião da Air France foi o trato dado pelo jornal ao caso. E o leitor, este sim, a vítima do que nem se pode considerar matéria, mas desastre da notícia.

Um xou que não se viu

A apresentadora Xuxa fez show em Fortaleza sábado, dia 22. O Povo acompanhou e segunda-feira trouxe um bom relato sobre músicas, cenários, figurinos e animação do público. Só que shows como aquele não se limitam ao palco. Questões fundamentais ficaram ao largo: 1) Qual o público estimado? 2) Houve problemas no trânsito próximo ao Ginásio Paulo Sarasate? 3) Houve problemas de segurança? Quais foram os principais registros policiais? 4) Havia ambulâncias ou ambulatórios no local? Houve ocorrências? 5) Havia filas para comprar ingressos? Havia reclamações em relação aos preços? Havia cambistas?

Eram informações de primeira ordem. Por meio delas, pode-se ter noção de como estava o ambiente do evento ou sobre que estrutura é oferecida ao público em aglomerações como aquela. O problema é que se entranhou nos jornais locais uma cultura que impõe o vício da limitação, que fecha os olhos para elementos importantes em shows ou grandes eventos. O texto nem sempre é o devido, chega a se confundir com o que diria um espectador descompromissado de relatar fatos com rigor jornalístico. No episódio específico de Xuxa, perdoem-me os que vêem aqui algum traço de ironia, sobrou para o leitor o mundo da imaginação.

Encontro

Reuni-me terça-feira com alunos de Jornalismo da Fanor. Na pauta do encontro, as atividades dos ombudsmen da Imprensa, com ênfase particular – e evidente – nas do ombudsman do O Povo, função que completa agora em dezembro 10 anos de instituída."