Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Roberto Pompeu de Toledo

TELEVIZINHO

"Saudade do televizinho", copyright Veja, 25/02/02

"Houve tempo em que havia o televizinho. Será que sobra algum televizinho? Será que sobra, até mesmo, quem saiba o que é televizinho? Televizinho era a pessoa que, não tendo televisão em casa, se aproveitava da do vizinho. O jovem leitor duvida? Acha que se está aqui inventando vocábulo exótico, só para fazer graça? Pois corra aos dicionários. A palavra ali está, tanto no Aurélio como no Houaiss. Os dicionários têm isso de bom: conservam as palavras em desuso como os sedimentos conservam os fósseis. Neles repousam, em sono esplêndido, palavras como bufarinheiro e alcouceira, mandrana e parvajola. Ou então, diriam os moralistas, palavras que, embora em uso, identificam práticas em desuso: honestidade, vergonha, intimidade, virgindade…

Quem viveu os primeiros anos da televisão sabe que o fenômeno da televizinhança não foi desprezível. Poucos tinham televisores em casa. Aos sem-TV, essa maioria de deserdados, restava correr à casa dos que a possuíam como os famintos correm aos sopões da caridade. O televizinho era um tipo social definido e reconhecido em seus direitos e sua individualidade. Os próprios apresentadores da TV se referiam a eles. Davam boa noite ?aos televizinhos?. Depois, ele desapareceu. Desapareceu como, por exemplo, a figura do agregado, tão popular nos romances do século XIX. O agregado, mal comparando, era um televizinho sem televisão.

As famílias livraram-se do agregado. Livraram-se em seguida, acrescente-se de passagem, do excesso de filhos e ficaram mais enxutas, para usar a palavra que lhes conviria se famílias fossem empresas – se é que não são. Mas, na medida em que, nos lares, se iam cortando os excessos, em matéria de seres humanos, iam-se, inversamente, multiplicando os aparelhos de TV. Ninguém mais deixava de tê-los. Nem mesmo os moradores de barracos. Triunfo! O televizinho de antes agora tinha seu próprio aparelho. Foi alcançado por ele, em seu avanço irresistível, como a maré, ao subir, alcança a praia toda. O vocábulo que o identificava virou forma sem conteúdo.

A era do televizinho coincidiu com os anos de inocência da televisão. Basicamente, tal inocência consistia na crença de que televisão era uma coisa, e vida era outra. O televizinho, assim como a amável família que o acolhia, olhava para aquela caixinha luminosa com deslumbramento, sim, mas também com suave distanciamento. Apreciavam seus truques como se apreciam os truques do mágico no circo, mas depois iam cuidar de suas existências. Reinava a ilusória impressão de que a TV ocupava um lugar determinado no mundo, um pedaço pequeno e restrito, de onde não tinha como extrapolar. Admitir o contrário seria convir com a hipótese absurda de o caleidoscópio proporcionar algo mais, na existência de uma pessoa, do que um divertimento ligeiro para os olhos. Ou de o gramofone ir além de produzir alguns breves instantes agradáveis – ou desagradáveis – para o ouvido.

Aquela inocente caixa de luz revelou-se muito mais que uma caixa de luz, porém. Revelou-se uma caixa de surpresas, caixa de Pandora, caixa-preta – escolha o leitor a caixa de sua preferência. Cedo transbordou para muito além de seu suposto lugar certo e determinado. Hoje se conhece todo seu alcance. Não é que a televisão tenha ocupado todos os cantos da vida. Essa também não deixa de ser uma visão ingênua. É outra coisa: a televisão tomou o lugar da vida. Substituiu-a. Engoliu-a e vomitou-se a si mesma no lugar.

No doce tempo do televizinho, ocorriam fenômenos que hoje parecem nada menos que prodigiosos. Enquanto a televisão tinha sua sede na sala do vizinho, o Carnaval era na rua e o futebol era no campo. Sim, meninos: o Carnaval era na rua e o futebol no campo! Aos poucos, tudo foi entrando TV adentro, como se aquela caixa tivesse um ímã, ou como se fosse um buraco negro a atrair a matéria cósmica à sua volta. Hoje, tanto o Carnaval como o futebol são na TV. Tire-se deles a TV, e será como cortar-lhes o ar. Não sobreviverão. E a eleição? No tempo do televizinho, a televisão ficava lá na sala, quieta, enquanto o comício era na praça. Eleição agora também foi sugada pelo campo gravitacional da televisão. Neste ano haverá Copa do Mundo e eleição. Se por alguma espécie de desgraça a televisão sumir do mundo, não haverá nem uma nem outra. Ou melhor, pode até haver, mas serão coisas de naturezas tão diversas das que nos habituamos que não merecerão os mesmos nomes.

Dito o que, chegamos aos programas de TV como o chamado de Big Brother. O Big Brother original, do romance 1984, de George Orwell, espionava os cidadãos de modo tão sufocante que a vida ficava irrespirável. O Big Brother de hoje é o contrário. Sem a presença dele, sem seu olho benfazejo, aí sim é que a vida some. Estou na TV, logo existo. A vida é representar para a câmara, e representar para a câmara é a vida. Estar na TV, mesmo que seja a troco de nada, sem ter nada a dizer, nem habilidade a demonstrar, eis o programa supremo da existência. O televizinho ficaria intrigado. Hesitaria em voltar à sala onde reinava aquela caixa."

 

EUA, GUERRA & FALSIDADE

"EUA estudam divulgar informações falsas", copyright Folha de S. Paulo, 20/02/02

"A revelação de que o Pentágono cogita divulgar informações falsas para influenciar a opinião pública internacional acirrou atritos dentro do governo dos EUA e elevou o temor de que militares americanos possam ter acumulado um poder excessivo depois de 11 de setembro.

Segundo o ?New York Times?, o plano foi elaborado pelo Escritório de Influência Estratégica, grupo criado pelo Pentágono depois dos atentados para convencer a opinião pública no Oriente Médio e na Ásia que os EUA não estão em guerra contra o islã, mas contra o terrorismo.

Entre as propostas sugeridas pelo escritório estaria a de ?plantar? informações verdadeiras e falsas nas agências de notícias estrangeiras por meio de pessoas que não tenham laços óbvios com o Pentágono. Outra envolve o envio de e-mails para jornalistas, líderes civis e estrangeiros para promover a visão americana ou ataques a governos inimigos. Os autores dessas mensagens não seriam militares americanos, mas pessoas e empresas supostamente desligadas do governo dos EUA.

O plano não seria executado apenas em nações inimigas, mas também em países aliados dos EUA no Oriente Médio, na Ásia e até na Europa ocidental.

Embora a idéia não tenha ainda passado pelo crivo do presidente George W. Bush, a divulgação de sua existência provocou uma reação de indignação pública de vários especialistas e críticas veladas de funcionários do governo.

?A proposta provavelmente foi vazada para a imprensa por alguém que pretendia inviabilizá-la?, disse à Folha Stephen Hess, especialista em propaganda e governo do Instituto Brookings, em Washington. ?Felizmente, o vazamento indica que ainda há pessoas sensatas trabalhando dentro do governo. Esse tipo de idéia nos faz desconfiar de todas as informações que recebemos.?

Os principais adversários da proposta no governo são as autoridades do Departamento de Estado e funcionários regulares do departamento de comunicação do Pentágono.

Nos últimos meses, o Escritório de Influência Estratégica criou um conflito de competência ao assumir um papel de divulgação tradicional de agências civis, principalmente o do Departamento de Estado. Além disso, ao sugerir campanhas secretas de desinformação no exterior, o escritório também passou a ocupar o espaço de atuação da CIA.

O porta-voz do Departamento de Estado, Richard Boucher, disse conhecer a existência e o trabalho do escritório do Pentágono, mas se negou a discutir suas funções. Indagado sobre a política de informação do Departamento de Estado, ele disse: ?Nós fornecemos informações precisas e verdadeiras?.

Ontem, a subsecretária para comunicação do Pentágono, Victoria Clarke, não negou nem confirmou a existência do projeto. ?O trabalho do escritório (de Influência Estratégica) está em andamento e seu mandato ainda não está claro.?

Métodos heterodoxos

O escritório é chefiado pelo general-de-brigada Simon P. Worden. Desde que o escritório foi criado, sob a comoção dos atentados de 11 de setembro, Worden e outros responsáveis pelo grupo nunca esconderam a disposição de usar métodos heterodoxos nem o fato de que passaram a cumprir uma missão estranha às atribuições regulares dos militares.

?O escritório emprega todos os instrumentos dentro do Departamento de Defesa para influenciar o público estrangeiro?, disse recentemente Thomas A. Timmes, um ex-coronel do Ex&eacuteacute;rcito e assessor de Worden. ?O Departamento da Defesa tradicionalmente não faz essas coisas.?

Philip Taylor, especialista inglês em propaganda militar, explicou que a divulgação de informações falsas por militares é uma tática antiga, mas quase sempre limitada aos campos de batalha.

No entanto o novo escritório montado pelo Pentágono inova ao sugerir o uso da mesma tática contra populações civis de países estrangeiros. Além disso, a sugestão de que a missão seja estendida para nações aliadas transcende objetivos militares.

Se o plano do Pentágono for aprovado e executado, não será a primeira vez que um órgão do governo americano terá usado uma campanha deliberada de desinformação envolvendo jornalistas. Em 1986, durante o governo de Ronald Reagan, o então porta-voz do Departamento de Estado, Bernard Kalb, renunciou em protesto contra uma campanha deliberada para que mentisse. A campanha fora elaborada pelo então secretário de Estado, George Shultz, para justificar os ataques militares dos EUA à Líbia."