DITADURA DERROTADA
“O general e o circo”, copyright Veja, 19/11/03
“E se o menino Ernesto Geisel, filho de pobres imigrantes alemães, tivesse seguido atrás do circo que um dia passou lá pelas lonjuras de Bento Gonçalves? O desejo de acompanhar o circo, despertado pelo encanto do elefante e dos saltimbancos, está relatado no recém-saído A Ditadura Derrotada, terceiro volume da majestosa e indispensável história da ditadura que vem sendo publicada pelo jornalista Elio Gaspari. Há muitas maneiras de reagir ao livro de Gaspari. Uma delas é imaginar-se num teatro do absurdo. Voltamos a um período em que arbítrio e desvario andavam juntos e, se não fosse a tragédia das mortes e torturas, mereceria ser lembrado pelo clima de comédia.
Tome-se o caso do americano Douglas Guy McNair. Um dia, enquanto se deixava cortar o cabelo no Salão Vogue, no centro do Rio, ele ousou manifestar ao barbeiro uma opinião crítica com relação à escolha do general Geisel – já havia muito desinteressado do circo, diga-se de passagem – para presidente da República. McNair não era um americano qualquer. Era vice-presidente da multinacional Atlantic no Brasil. Um major, Tancredo Bruno Porto, ouviu a inconfidência e tomou providências. Foi ao Clube Militar, ali perto, recrutou um funcionário e abordou o americano, anotando-lhe os dados e averiguando-lhe os documentos. O incidente resultou na convocação de McNair para explicar-se ao SNI, o famigerado Serviço Nacional de Informações. Era muita folga considerar que a cadeira de barbeiro lhe dava imunidade para externar a opinião que bem entendesse.
Para reforçar o clima de comédia havia o inesgotável repertório da Censura, amplamente citado no livro. Depois que o velho marechal Cordeiro de Farias deu entrevista elogiando o governo Castello Branco e criticando o de Costa e Silva, a Censura houve por bem proibir entrevistas ?cujo teor coloque em análise governos revolucionários de forma crítica, ou exaltação aos governos referidos?. A linguagem é capenga, mas dá para inferir que, se criticar era impensável, igualmente não se permitiria a ousadia de sair por aí fazendo elogios. Que atrevimento era esse?! Numa providência famosa, a Censura proibiu notícias sobre o surto de meningite em São Paulo. Em outra, proibiu menções à ?recessão econômica?. No mundo encantado proposto pelos censores não havia lugar para doenças nem apertos econômicos. Vistos com benevolência, eles seriam como produtores de enredos destinados a espargir bem-aventurança, povoados por fadas, anjos e finais felizes. De outra índole foi a determinação de proibir os filmes de kung fu, considerados um ?derivativo maoísta?. A proibição não atingia Geisel, que tinha nesses filmes os seus preferidos. Fica a interrogação: teria ele, por causa disso, em suas noites no Palácio da Alvorada, travado alguma solitária, desesperada e secreta luta contra o vírus do maoísmo?
Tratava-se de um regime em que a regra era cada general por si e a anarquia por todos. Enquanto um deles, Breno Borges Fortes, comandante do III Exército, planejava invadir o Uruguai, em caso de vitória da esquerda na eleição de 1971, outro, Humberto Mello, comandante do II Exército, festeiro e falastrão, dizia que o então ministro do Exército, Orlando Geisel, estava terminalmente doente e que ele, Humberto, iria para o seu lugar. Quem acabou doente foi o próprio Humberto, abatido por um distúrbio intestinal no palanque em que se recepcionava o presidente da Bolívia, em Mato Grosso. Quando perguntaram ao general João Figueiredo, chefe da Casa Militar, o que Humberto tivera, ele respondeu: ?Uma idéia?.
Era também um regime em que Ernesto Geisel, um ?general honrado?, como já em 1964 o qualificara o jornalista Márcio Moreira Alves, e a rigor merece ser qualificado até hoje, se metia em diálogos dignos da turma da Operação Anaconda. Uma vez, ele conversava com o tenente-coronel Pedrozo, seu chefe de segurança, sobre um grupo de pessoas vindas do Chile e presas no Paraná, já havia tempo. Pedrozo informou que todas tinham sido mortas. ?Tem gente que não adianta deixar vivo, aprontando?, argumentou. Geisel emendou: ?É, o que tem que fazer é que tem que nessa hora agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa?.
Tudo era segredo. Psiu, não se pode dizer… Não se podia dizer, mas Geisel já estava praticamente definido como o próximo presidente desde março de 1971, três anos redondos antes da posse. Era assim o sistema eleitoral vigente. Geisel escolheu o sucessor com mais antecedência ainda. No dia mesmo em que assumiu a Presidência, trazia o preferido ?na mochila?, como diz Gaspari. Era o general Figueiredo, que enquanto isso mataria o tempo na chefia do SNI. Escreve Gaspari: ?Na noite de 15 de março de 1974, quando o novo chefe do SNI entrou na recepção do Itamaraty com seu uniforme de gala (…) já era o candidato do presidente que acabara de ser empossado?. Se o menino Ernesto tivesse fugido atrás do circo… Sim, teria menos tragédia a embeber-lhe a biografia. Mas, sim, teria igualmente menos comédia. O regime era insuperável também nesse item.”
“O saldo da ditadura”, copyright Folha de S. Paulo, 13/11/03
“O regime militar (1964-1985) demorou para se extinguir. Nunca foi deposto, mas se prolongou por dez anos de ?distensão? até desembocar em mais uma transição à brasileira, quando já não havia praticamente ninguém que o defendesse. Tudo indica que com ele se tenha encerrado o ciclo de intervenções do Exército na política brasileira.
Alvo de um descrédito que se acumulou por tanto tempo, a ditadura militar foi alvo também de um esquema maniqueísta, inverso, mas semelhante ao maniqueísmo que ela própria incentivou. A imagem que ficou foi a de um despotismo de generais que suprimiu as liberdades, governou contra o povo, matou e torturou quem resistia.
Isso é verdade, mas não toda a verdade. O regime militar se instalou, no Brasil e em outros países latino-americanos, num período em que a Guerra Fria se radicalizava no Terceiro Mundo exatamente porque a paridade militar entre os Estados Unidos e a União Soviética havia congelado a geopolítica no norte. Lutava-se no sul.
Direita e esquerda se afastavam das regras da tolerância democrática. Os antagonismos acumulados em 1964 quase fatalmente desaguariam em ditadura -se não a dos generais, a do varguismo de esquerda. Os generais só intervieram quando a luta de classes foi levada ostensivamente para os quartéis, ameaçando a essência da corporação, a disciplina.
Nos primeiros anos de ditadura, a débil oposição veio principalmente de vertentes liberais cuja atuação ainda era admitida, pois os grupos de esquerda estavam desarticulados e sofriam feroz perseguição. Foi a partir de 1968 que uma nova geração de oposicionistas se organizou em facções clandestinas para mover luta armada contra o regime.
Essas facções não pretendiam restabelecer as liberdades. Seu modelo confesso era o leninismo, hoje desacreditado, mas na época uma das duas grandes opções para quem se dispusesse ao engajamento político. Caso sua aventura militarista tivesse êxito, é quase certo que teriam imposto uma ditadura de partido único no país.
O quadragésimo aniversário de sua implantação, no ano que vem, será ocasião propícia para reavaliar o significado histórico do regime de 64. Manteve o Brasil na órbita do Ocidente enquanto completava sua industrialização. Adiou o enfrentamento das disparidades sociais, que se acentuaram, fugindo pela tangente do crescimento acelerado.
Mas esses aspectos se referem ao julgamento político, pois o julgamento moral está sendo promovido na sequência de livros em que Elio Gaspari vem esmiuçando, com documentação implacável, os dois nervos do problema: o emprego da tortura como meio de repressão e a indisciplina na base do próprio aparelho repressivo.
Ficou demonstrado que a cúpula do regime, inclusive o presidente da ?abertura?, apoiava a política de extermínio de opositores sob custódia do Estado, adotada em meados do governo Médici. E que o governo dos militares tinha por base um subterrâneo de desmandos e desordem. É difícil que qualquer revisão histórica possa reverter essas condenações.”