HOUAISS vs. AURÉLIO
"Filólogo, gourmet e militante", copyright Jornal do Brasil, 30/08/01
"De acordo com a definição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, paixão pode ser definida como um ?grande entusiamo por alguma coisa?. No caso do homem que teve seu nome emprestado à nova obra, o entusiasmo foi mais abrangente, englobando desde a dicionarização das palavras do idioma ao apreço por uma exótica receita de sopa de verduras. Nos seus 83 anos de vida, Antônio Houaiss (1915-1999), filho de libaneses, nascido em Copacabana, destacou-se como um dos mais ativos intelectuais brasileiros.
Professor, ensaísta, enciclopedista, tradutor de uma das obras mais complexas da literatura moderna, Ulisses, de James Joyce, e membro da Academia Brasileira de Letras desde 1971, participou ativamente da política nacional, como diplomata, fundador do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Cultura durante o governo Itamar Franco (1992-1993). Dono de uma biblioteca de 8 mil livros, interferiu na literatura no Brasil com ensaios e críticas.
Houaiss ingressou na carreira diplomática em 1945, aos 30 anos, depois de aprovado pelo Instituto Rio Branco. Representou o Brasil em Genebra, São Domingos, Atenas e na Organização das Nações Unidos, mas acabou atraindo a antipatia do governo de Getúlio Vargas, que decidiu cassá-lo em 1952, devido a suas posições de esquerda.
Retornando ao cargo por decisão do Supremo Tribunal Federal, pôde exercê-lo até 1964, em Nova Iorque, quando teve seus direitos políticos cassados pelo regime militar. De volta ao Brasil, passou a trabalhar no Correio da Manhã, um dos principais focos de resistência à ditadura. Redigida por ele, seu texto contra a decisão dos militares é memorável, segundo o jurista e acadêmico Evandro Lins e Silva, 89 anos, que defendeu Houaiss no processo. ?Ele escreveu uma defesa de si mesmo que é uma obra-prima, capaz de honrar qualquer advogado?, avalia.
Afastado do Itamaraty, voltou-se para a carreira acadêmica, editando a Enciclopédia Delta-Larousse, de 1966 a 1970. ?Acredito que a cassação tenha feito bem ao Houaiss. Perdemos o diplomata mas ganhamos o grande filólogo?, afirma o engenheiro Francisco de Mello e Franco, 66 anos, um dos diretores do Instituto Antônio Houaiss.
Durante os anos 70 trabalhou para a elaboração de um vocabulário ortográfico, consolidando a reforma aplicada em 1971. Na década de 80, somou-se aos esforços para organizar o Partido Socialista Brasileiro, do qual tornou-se presidente em 1985. Seria candidato a vice-presidente da República durante as eleições de 1989, mas acabou impedido após sofrer um acidente. ?Exemplo de intelectual, Houaiss foi permanentemente militante, apesar da perseguição que sofreu no Itamaraty?, afirma Roberto Amaral, 60 anos, escritor e vice-presidente do PSB.
Mesmo exercendo todas essas atividades, sempre dedicava um tempo à culinária. Mestre na cozinha, chegou a traduzir e escrever livros de receita como Magia da cozinha brasileira, de 1979. ?Almoçar ao lado dele, fosse uma refeição comercial num restaurante do Centro ou um banquete em sua casa, era sempre um prazer. Um dos seus pratos mais famosos era uma sopa gelada de alface?, recorda o poeta Ivo Barroso, 70 anos.
Além de bom garfo, era fã de bebidas – escreveu A cerveja e seus mistérios -, mas só em idade avançada descobriu o popular produto dos alambiques nacionais.?Quase aos 80 anos, descobriu a cachaça, bebendo em Brasília. E passou a considerá-la uma das melhores bebidas do mundo?, recorda o poeta Lêdo Ivo, 77 anos.
Houaiss seguiu trabalhando até o fim da vida, apesar de debilitado por problemas de saúde, recorda Antonio Olinto, 82 anos: ?Quando organizamos o vocabulário da Academia, em 1997, ele foi até lá dar instruções ao grupo. Falou durante uma hora, sem interrupções, apesar de estar fragilizado pela baixa resistência física?. Mais uma prova de amor à língua portuguesa."