CASO ENRON
Arnaldo Dines, de Nova York
A última moda em voga nos meios de comunicação nos Estados Unidos é usar o colapso da empresa de energia Enron para demonstrar o despreparo profissional dos jornalistas na cobertura da vida econômica do país. Bode expiatório sempre oportuno, ainda mais quando pego de surpresa por um escândalo empresarial, o jornalista não é de todo isento de culpa. Mas, modismos à parte, a verdade é que o ângulo da discussão não passa de um subterfúgio ineficaz, elaborado para desviar a atenção pública das responsabilidades e benefícios dos próprios meios de comunicação no episódio em questão.
Como o mágico de festinha de aniversário, os analistas de mídia tiraram do fundo da cartola uma lista preventiva de desculpas esfarrapadas, com o objetivo de vestir o comercialismo da imprensa americana sob uma roupagem de mera ignorância profissional e, conseqüentemente, de inocência perante possíveis desdobramentos judiciais do caso da Enron. Com isto, tentam manter o manto de invisibilidade sobre a falha maior da imprensa: a doutrina editorial de fofoca econômica, praticada indiscriminadamente nas seções de economia e negócios, sob o nobre disfarce de reportagem financeira.
O que ninguém se atreve a pedir é uma guinada de 180 graus nesta pseudo-análise, com uma investigação da relação da imprensa com os analistas econômicos empregados pelos grandes bancos e casas de investimentos. Esta parceria, sim, é diretamente responsável pela surpresa pública e governamental diante do colapso da Enron, já que a imprensa vinha funcionando voluntariamente como instrumento de divulgação das previsões mirabolantes e fictícias desses analistas.
É indiscutível que existe uma conivência entre esses dois parceiros. As entrevistas com os analistas econômicos são as grandes atrações tanto nos canais de notícias financeiras da CNBC, Bloomberg e CNNfn como nas seções de economia dos principais jornais e revistas. Com suas projeções especulativas baseadas em gráficos semi-astrológicos, legiões de economistas muito bem-pagos da Lehman Brothers, Goldman Sachs e Bear Stearns poderiam converter qualquer ateu a acreditar na capacidade da Enron de negociar contratos de exploração de gás natural no inferno.
E qual o papel do jornalista nestas entrevistas? Menor do que o do cameraman ou do dono de banca de jornal, pois a postura editorial ditada pelos chefes de redação e produtores de televisão é de franquear o espaço impresso ou o tempo dos microfones, sem contestar ou investigar as declarações.
Caça contumaz
O outro lado da moeda é que, enquanto a crise da Enron criou uma situação constrangedora para as editorias de economia, criou também uma oportunidade de ouro para as editorias nacionais. A dura realidade enfrentada pelos meios de comunicação americanos é que a euforia pública decorrente do sucesso militar relâmpago no Afeganistão começou a apresentar sinais de esfriamento já no início do ano.
Após boa parte dos seguidores de Osama bin Laden e do mulá Omar terem encontrando Alá no fundo de suas cavernas, a fonte mágica das manchetes subitamente secou. As audiências dos canais de notícias e a circulação de jornais voltaram aos níveis pré-11 de setembro, e as desculpas para edições especiais das revistas se esvaziaram.
O pouco que sobrou, também não decolou. As desventuras dos ex-terroristas da al-Qaeda e do Taleban que desfrutam agora da hospitalidade da base militar americana em Cuba? Ou as travessuras de John Walker Lindh, o jovem traidor americano? Infelizmente para a imprensa, depois do alarde inicial nenhum destes assuntos acabou rendendo muito.
Até alguns velhos personagens já não vendem tanto. Saddam Hussein, por exemplo, passa a maior parte do tempo olhando para o céu, achando que qualquer passarinho é um míssil ianque, enquanto que Yasser Arafat continua trancado em seu quarto e sala em Ramalah, com vista privilegiada para os tanques israelenses. Ou seja, nada de novo no mundo.
O que a imprensa precisava urgentemente era de um bom e velho escândalo para ocupar as primeiras páginas. Mas em contraste com a orgia jornalística dos anos de Bill Clinton, a rigidez moral da atual administração republicana não permite grandes expectativas nessa área.
Foi portanto com grande alívio que os editores-chefes saudaram a entrada em cartaz do longa-metragem da Enron, e sem perder tempo partiram para a contumaz caça desenfreada e desnorteada às bruxas. O primeiro passo foi tentar estabelecer uma conexão com a Casa Branca, a partir de dois telefonemas dados por um executivo da companhia para um membro da administração republicana. O probleminha é que os contatos haviam sido sumariamente rejeitados, tornando a especulação uma mera ficção.
Especulação doida
Fim da história? De jeito nenhum. A seguir vieram as contribuições da Enron às campanhas políticas de membros do Congresso. Mais um problema, pois as contribuições eram legais e foram feitas indiscriminadamente tanto para democratas como para republicanos, o que demonstra o pragmatismo da filosofia especulativa da empresa.
Qual o próximo passo? As transmissões ao vivo em cadeia nacional da última superprodução conjunta da imprensa com o establishment político de Washington: as audiências no Congresso sobre a Enron. O detalhe é que como estas audiências não têm finalidade ou mesmo validade legal, acabam prejudicando as investigações criminais do Federal Bureau of Investigation (FBI) e do Securities and Exchange Commission (SEC). Mas para os políticos é uma chance imperdível de aparecer com cara de sério na televisão e mostrar serviço aos seus eleitores.
Enquanto isso, os analistas econômicos continuam aparecendo impunemente nas redes de televisão, nos jornais, revistas e na internet, com poder absoluto de ditar a pauta editorial. Os mais beneficiados são os empregadores destes analistas, mestres na arte de usar a imprensa para faturar uns trocados na especulação doida dos mercados. E os mais prejudicados são os investidores individuais, condenados perpetuamente à condição de pobre-coitados por terem cometido o erro supremo de acreditar em informações fornecidas pela imprensa.