QUALIDADE NA TV
ENTREVISTA / DANIEL FILHO
"O bruxo volta a atacar. Na estante e no cinema", copyright Jornal da Tarde, 27/05/01
"Daniel Filho é um bruxo da televisão brasileira.
Tanto é que quando foi diretor da Central Globo de Produção e tinha sob sua responsabilidade 40% dos programas da emissora, pediu que tirassem de sua tevê ?aquela maquineta de fazer doidos?, referindo-se ao equipamento de medição de Ibope em real time (de minuto em minuto).
A parafernália era desnecessária para quem sempre conseguiu, intuitivamente, alcançar bons índices de público.
Idealizador de vários dos programas de maior sucesso na história da Globo – entre eles as minisséries Malu Mulher e Carga Pesada e a novela Dancin?Days -, já nos anos 70 Daniel anotava num papel a audiência que previa para cada uma de suas atrações. Raramente errava.
Depois de trabalhar na tevê por quase 40 anos, o diretor pode agora dedicar-se com mais intensidade à sua grande paixão: o cinema.
Diretor-artístico da Globo Filmes e um de seus fundadores, ele é produtor associado dos sete filmes assinados pela empresa, entre eles O Auto da Compadecida e A Partilha – esse último dirigido por ele e com estréia prevista para o próximo dia 8, em 150 salas de cinema.
O longa-metragem é um projeto antigo, perseguido com a obstinação característica de seu diretor, responsável, entre outros méritos, por reinserir na televisão o uso da película com a minissérie Confissões de Adolescente e o quadro A Vida Como Ela É, do Fantástico.
Tentando produzir A Partilha em plena era Collor, de hibernação do cinema nacional, Daniel foi aos Estados Unidos pedir asilo cinematográfico a produtores americanos.
Despertou o interesse das atrizes Amy Irving e Marsha Mason em atuar no filme, mas não conseguiu captar a verba necessária para rodá-lo.
Só dez anos depois de ter adquirido os direitos de filmagem, o diretor lança o longa-metragem, com Glória Pires, Lilia Cabral, Andrea Beltrão e Paloma Duarte nos papéis das irmãs que, ao dividirem a herança da mãe, compartilham alegrias e tristezas.
Durante pouco mais de uma hora, um simpático Daniel – em nada arrogante e autoritário, adjetivos que lhes são atribuídos – conversou com o JT sobre A Partilha, Ibope, Rede Globo e o livro O Circo Eletrônico (Jorge Zahar, 360 págs.), quase um manual didático sobre televisão, que acaba de lançar.
Leia os principais trechos da entrevista:
Jornal da Tarde – Você está se tornando o Chico Buarque do audiovisual, não?
Depois de ?Malu Mulher?, ?Confissões de Adolescente? e ?Mulher?, você aparece com ?A Partilha?, mais um trabalho sobre a personalidade feminina…
Daniel Filho – Fico muito feliz com a comparação! Acho que eu e Chico temos, realmente, uma coisa em comum: gostamos muito de mulher (risos). Elas são mais fascinantes, menos previsíveis que os homens. Para vocês, mulheres, um ?não? vem sempre seguido de um ?por quê??. Para nós, homens, um ?não? é simplesmente um ?não?! A Partilha é centrado na personagem Selma, que representa as mulheres comuns, donas-de-casa.
Ela não pára de agredir as irmãs porque tem a sensação de que ficou presa a um casamento enquanto as outras se divertiam: uma irmã vive em Paris, a outra tem uma liberdade sexual incrível, a terceira é uma profissional inteligentíssima… Essa sensação de que a própria vida é sem graça, e a dos outros muito melhor, é normalíssima. Todo mundo passa por um ?momento Selma?. E por isso se identifica com o filme.
Você já teve o seu ?momento Selma??
Já. Quando saí da Globo para me dedicar à produção independente (entre 1991 e 1996) . Me sentia atraído pelo mundo dos independentes e quando caí nele vi que era uma fantasia. Fora da Globo não fui ouvido. Tanto é que acabei voltando para lá para conseguir realizar meus projetos. O Sai de Baixo, por exemplo, ofereci ao Silvio Santos, ele não quis. A Vida Como Ela É foi oferecida a várias pessoas, ninguém quis. Modéstia à parte me considero um dos bons criadores da televisão, um incentivador de novas linguagens, e não fui ouvido.
?O Circo Eletrônico? é seu segundo livro. Assim como o primeiro, ?Antes que me esqueçam?, não traz revelações sobre os bastidores da Globo, ao contrário do que se esperava. Não há o que revelar?
É uma coisa doida toda essa expectativa… Vou dizer o quê? Que o Roberto Marinho não usa cueca? Sei lá, eu é que não uso cueca (risos)! Não existe nada que não tenha sido especulado, tudo é muito claro na Globo porque a emissora é muito visada. Não há esqueletos nos armários. No livro eu conto o que sei sobre tevê e falo da maneira como aprendi: fazendo.
Você anunciou que pretende criar um programa de ?Premières Brasileiras? na tevê. É possível produzir um filme nacional inédito por semana?
Estou sendo audacioso. É realmente muito difícil encontrar um bom texto semanalmente. Vamos nos associar a tevês e produtoras estrangeiras para ter em mãos scripts já prontos. O filme feito para a tevê é algo que o americano sabe fazer, pois a base da televisão dos Estados Unidos foi o cinema. São filmes de uma hora e meia mais ou menos, com poucos personagens e poucos cenários, mais rápidos de se fazer.
Mas por que comprar roteiros americanos? O Brasil sabe fazer tevê tão bem – não poderia então produzir filmes para a tevê?
Sabemos fazer novela muito bem. Mas são gêneros diferentes. A representação em novela tem outro timing, o autor escreve seis capítulos por semana, não há tempo de revisar esses textos e por isso muitos sentimentos que deveriam ser mostrados são ditos. A novela é muito dialogada. É claro que temos vários autores que poderão se dedicar aos filmes para a tevê, mas é preciso passar por um processo de aprendizagem. Olha, o que eu já fiz de seriado no Brasil… o primeiro sitcom foi A Grande Família, nos anos 60! Acho que só consegui acertar a mão realmente, balancear bem toda a estrutura dramática, em Mulher, que é super-recente. Digo isso para mostrar que o aprendizado é algo demorado.
Mas em que ?Mulher? foi mais bem-sucedido do que os outros?
Eu me lancei o desafio de contar três histórias diferentes em 45 minutos. E consegui. Estou me referindo a ritmo.
Nunca se falou tanto em Ibope como hoje. A tevê está se tornando refém da audiência?
O Ibope é muito mais discutido nos jornais do que dentro da Globo. Os números divulgados não refletem a opinião real do País porque são medidos só na cidade de São Paulo. Os programas popularescos apontados como sucesso são centrados em São Paulo e por isso têm Ibope alto. Mas vá checar quanto rendem no Nordeste! O problema é que esses números podem influenciar os patrocinadores e com isso a televisão tende a se centralizar ainda mais no eixo Rio-São Paulo ou até só em São Paulo. É uma pena. Há grandes talentos fora dessas cidades, além de uma riqueza cultural que merece ser mostrada.
E quanto às produções da Globo Filmes? Vão mostrar o Brasil por inteiro?
Sim. Filmamos O Auto da Compadecida no sertão. Não dá pra fingir que o Rio é a Bahia! O Jorge Furtado vai rodar um longa-metragem em Porto Alegre. Eu me preocupo em buscar o diferente, fazer coisas que não estão sendo feitas. A cinematografia brasileira está mais habituada a chamar de bons filmes aqueles que são mais contundentes com a realidade social brasileira. São produções que precisam ser feitas, mas tem que haver filmes para outros tipos de público."
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