QUALIDADE NA TV
SANDYCES E LUANICES
"Sandy, a família e o balcão", copyright Valor Econômico, 17 a 19/11/00
"Dos 10 ou 15 minutos da entrevista com Sandy e Júnior, apresentada esta semana no ‘Programa do Jô’, não sobrou um fiapo de idéia, um sopro de inteligência, um arremedo de diálogo. Ao final, o vazio só não era mais completo porque o nada fora preenchido por toda sorte de produtos: um CD com quatro capas à escolha do freguês, um DVD prestes a ser lançado, uma temporada de shows e o suposto talento de Júnior como percussionista e dançarino.
Mas todos sabem que o produto principal é Sandy, de quem tudo parece aproveitável: a voz, a boca de dentes branquíssimos e sorriso alargado pelo desenho do batom, a tão alardeada virgindade e as sandálias abertas, que deixam à mostra os dedos do pé.
Foi desse ponto que Jô Soares começou a entrevista, comentando o anel que Sandy trazia num dos artelhos. A câmera demorou um pouco, mas logo veio o close do pé delicado em perfil. Pendia no ar como os pés de Lolita na abertura do filme de Stanley Kubrick, em que a ninfeta tem as unhas do pé demoradamente pintadas por Humbert Humbert, o homem de meia-idade que se apaixona por ela. Mas nem a comparação com Lolita presta. Sandy, à beira dos 18 anos, não tem nem de longe a densidade da personagem de Nabokov. Está embalada como puro fetiche para voyeurs desprovidos de drama e conflito, como ela.
A entrevista avança e a câmara procura manter sempre em quadro as pernas nuas, brancas e lisas, uma perna cruzada sobre a outra e a balançar suavemente. Pode parecer um jogo perverso, mas vão jurar que não é. Afinal, tudo é muito família no reino encantado de Sandy. A câmera volta e meia focaliza os pais, que, da platéia, acompanham orgulhosos a performance da filha.
Sandy foi construída meiga, bondosa, respeitosa, boa aluna, apegada à família e. virgem, condição que promete manter até o casamento. E produz muito dinheiro com os 6 milhões de discos vendidos em dez anos de carreira e as centenas de produtos que levam a sua marca. Tudo convertido em gado, cavalos e terras nas propriedades da família.
O clima familiar é complementado pela sessão de slides que expõe para milhões de telespectadores o processo de gestação e crescimento do rebento bem-sucedido: ainda bebê no colo do pai, aos 3 anos diante de microfones, aos 7 num estúdio de gravação, a primeira vez em que esteve num programa de TV até chegar a hoje, véspera da maioridade, quando se prepara para estrelar a próxima novela das seis.
Diante da imagem de Sandy e Júnior bebês, ao lado do pai que toca violão, Jô comenta que Chitãozinho, livre do corte de cabelo de mau gosto, parece remoçado. E arrisca uma explicação: o dinheiro. ‘A grana dá uma melhorada nas pessoas’, diz. Sandy desconversa: ‘Não adianta ter dinheiro, a gente não tem tempo de gastar.’ Entre orgulhosos e constrangidos, Chitãozinho e mulher olham para a platéia, que vive um momento de indecisão. Mas a claque puxa o aplauso, que começa tímido e termina caudaloso. Aplausos para o dinheiro!
Moral da história: diante do produto absoluto, só há espaço para a reverência e até mesmo os redutos supostamente mais críticos não passam de balcões de anúncio. O equivalente escrito da entrevista de Sandy é o depoimento da apresentadora Eliana publicado na edição deste mês da revista ‘Playboy’. São 12 páginas do mesmíssimo nada."
"A solidão de Luana", copyright Folha de S. Paulo, 12/11/00
"O leitor não se espante, mas há um quê de Greta Garbo em Luana Piovani. Numa era longínqua (1941), a atriz sueca, naturalizada norte-americana, derramou a frase improvável, que perturbou o mundo: ‘Quero estar só’. Não se tratava de marketing. A diva misteriosa, que fizera fama e fortuna no cinema, queria mesmo estar só. Por quê? Já naqueles dias, reivindicar solidão soava estranho.
Greta tinha 36 anos e vivia o auge da carreira. Por que, então, abandonar tudo? Ela, no entanto, abandonou. Fugiu dos holofotes e recolheu-se em um apartamento de Nova York. Jamais explicou as razões do sumiço prematuro. Morreu em abril de 1990, octogenária e ainda reclusa. Seus familiares não divulgaram a causa mortis nem o local exato dos funerais. A ‘Esfinge do Norte’ -apelido que recebeu justamente por cultivar nas telas ares enigmáticos- manteve-se esfinge até o fim.
Luana Piovani, bela e alta como as suecas, não chegou a dizer que desejava estar só. Mas disse algo parecido: ‘Quero dar um tempo. Vou fechar para balanço’. Com apenas 24 anos, a atriz e modelo paulista reclamava de que já sentia o peso da superexposição à mídia -novelas na Globo, desfiles, capas de revista, peças de teatro, namoros públicos. Daí, o anseio de pegar as malas e desaparecer.
À semelhança de Greta, escolheu ocultar-se em Nova York. Mais precisamente, em Manhattan, onde mora há três meses e pouco. A ilha, aliás, continua sendo o refúgio predileto da misantropia chique. Ermitões, casmurros e náufragos de boa cepa adoram se abrigar em Manhattan. Deixam a algazarra do Rio ou de São Paulo e lançam-se à outra selva de prédios. As buzinas e sirenes daqui não gorjeiam como lá.
Ocorre que mil olhos observam o exílio de Luana. A moça decidiu compartilhar a intimidade do degredo com a platéia, a mesma que a oprimia antes da viagem. Em um site (www.terra.com.br/luanany) e um programa semanal da MTV, revela o que pensa, vê e escuta no esconderijo nova-iorquino. Instalou, inclusive, webcams dentro do próprio apartamento, que funcionam 24 horas por dia e transferem as cenas para a Internet (funcionar é força de expressão; não raro, problemas técnicos interrompem as transmissões).
As câmeras da MTV também trabalham à larga. Acompanham Luana constantemente, em casa ou nas ruas, e captam imagens à maneira dos vídeos domésticos. Nutrem fetiche pela informalidade, pelo corriqueiro.
Juntos, os conteúdos do site e do programa compõem, sem dúvida, um certo retrato de época.
Há descobertas: uma loja que vende cookies decorativos; uma agência do correio na Times Square que tem filas tão extensas ‘quanto as da Bahia’; uma vela com formato de Buda.
Há desafios: comer ervilhas e lentilhas. ‘Grãos nunca foram o meu forte. Mas a ervilha dos Estados Unidos é muito melhor que a brasileira. E lentilha, se bem preparadinha, pode ser gostosa, sim’.
Há surpresas: encontrar Giulia Gam por acaso, passeando pela cidade. ‘Oi, querida!’
Há angústias: enfrentar a máquina de lavar louças quebrada, que produz ‘uma água preta, gosmenta e de cheiro insuportável’.
Há confidências: ‘Às vezes, nem eu me aguento’.
E há fotos, dezenas de fotos: Luana de ressaca, de toalha, de jeans rasgado, de bicicleta, de maiô, de óculos vermelhos. Luana cabisbaixa, Luana com medo, Luana só sorrisinhos.
Esfinge às avessas, a Greta Garbo brejeira vai desfilando por Manhattan sua solidão ensurdecedora.
Vai, ainda, usufruindo dos dois tipos de fama que, hoje, os meios de comunicação proporcionam: a das estrelas e a das pessoas comuns. Conhecidíssima no Brasil, quase ninguém a percebe em Nova York. Ela entra e sai de onde bem entende sem que a incomodem. Pode, portanto, documentar-se sob a pele banal dos anônimos. Não existe, nesse sentido, nenhuma diferença entre o site de Luana e o de outra garota qualquer. Ambos exploram o filão da vida ordinária convertida em espetáculo.
Transitando do Olimpo às searas comezinhas, a modelo – tão falante, tão desprendida – acaba por criar ilusões de proximidade naqueles que a espiam. Temos mesmo a impressão de que Luana nos pertence.
Impressão que a discreta Greta Garbo também despertava. Em um longo poema dedicado à atriz sueca, Carlos Drummond de Andrade denuncia-se confuso. Acha que aprisionou a musa. Confessa que viu 24 dos 27 filmes em que Greta atuou. Julga-os todos seus. ‘Contei-os: 24 filmes americanos. Meus.’
É somente na última estrofe que o poeta volta, triste, à realidade. Constata: ‘Agora estou sozinho com a memória/ de que um dia, não importa em sonho,/ imaginei, maquiei, vesti, amei Greta Garbo./ E esse dia durou 15 anos./ E nada se passou além do sonho,/ diante do qual, em torno ao qual, silencioso,/ fatalizado,/ fui apenas voyeur’."
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