Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Saudades da agulha hipodérmica

MÍDIA ESTERILIZADA

Fernando Torres (*)

Em tempo de guerra, a imprensa pode ser vista sob duas óticas: como vítima do sistema governamental predominante ? afinal, está sob censura ?, ou como parceira oportunista, o que dispensa explicações. O fato é que o período pressupõe manipulação das informações, com o intuito de moldar a opinião pública.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1919) motivou o surgimento da primeira teoria crítica da comunicação de massa. A teoria hipodérmica pretendia indicar quais os efeitos provocados pelos mass media, em especial a propaganda. Alguns intelectuais até mesmo a definem como teoria da propaganda e sobre a propaganda.

Para compreender a teoria hipodérmica, faz-se necessário conhecer o contexto em que ela se insere. Com a Revolução Industrial (século 19), a sociedade ocidental sofreu profundas transformações: de comunitária passou a contratual. Inicia-se aí o conceito da sociedade de massa, formulado em 1830 pelo positivista Augusto Comte e aperfeiçoado por Herbert Spencer, Ferdinand Tönnies e Émile Durkheim, seus contemporâneos.

Psicologia behaviorista

Caracterizada pelo isolamento psicológico de seus membros, predominância da impessoalidade e da obrigação social forçosa, a idéia de sociedade de massa é de fundamental importância para o entendimento da teoria hipodérmica. Difere-se da massa do pão e circo romano, pois inclui em sua alienação a presença constante dos veículos de comunicação.

Enquanto a produção intelectual emergia, os mass media ampliavam seu alcance. Os governantes dos países em guerra, com destaque para britânicos e estadunidenses, viram nas novas instituições excelentes canais para divulgar suas idéias patrióticas e nacionalistas. Era necessário unificar as pessoas do mesmo país, torná-las comprometidas com a ideologia governamental.

A propaganda e o cinema mostraram-se irrepreensíveis para essa função. Discursos, cartazes, fotos, filmes e até mesmo noticiários telegráficos foram utilizados para manipular a opinião pública. Os cidadãos comuns foram persuadidos a amar sua pátria e odiar a do vizinho, a comprar a idéia da guerra. Para isso, os comunicadores se basearam em mentiras e distorções sensacionalistas. Funcionou.

Terminada a guerra, deu-se início a uma análise do ocorrido. Diante dos resultados obtidos e do conceito de sociedade de massa, chegou-se à conclusão de que qualquer conteúdo exibido pela mídia atingiria os indivíduos de maneira uniforme. Todos os receptores responderiam às mensagens midiáticas sem questionar ou sugerir visões diferentes ? como robôs.

Assim, enxergou-se a mídia como uma arma poderosíssima, capaz de moldar a opinião pública conforme os interesses do comunicador. Deu-se a essa idéia o nome de "teoria hipodérmica" ou "teoria da bala mágica". Ambos os termos remetiam à psicologia behaviorista ? bastaria injetar uma injeção no corpo para que este respondesse a seu efeito, ou metralhar um organismo para que este se debilitasse.

Mentiras e distorções

Obviamente, a teoria hipodérmica é por demais simplista para ser aceita sem restrições. Inexperientes no quesito "mídia", os primitivos teóricos da comunicação desconheciam o poder das diferenças individuais. Todavia, a teoria foi amplamente aceita: havia os indiscutíveis efeitos da propaganda na guerra.

Com o passar do tempo e a difusão das idéias a respeito dos mass media, os estudiosos abandonaram a teoria hipodérmica, considerando-a obsoleta. Seus postulados, porém, foram utilizados para a construção de novas teorias. Chegou-se ao consenso de que a mídia não poderia alcançar a mesma resposta de todos os receptores; poderia, sim, prever variadas espécies de comportamento.

Quanto aos efeitos resultantes da guerra, não houve uma resposta satisfatória para todos: alguns teóricos concluíram que haveria outras explicações para o resultado, desconhecidas até então; em contrapartida, outros estudiosos questionaram se a agulha proposta pela teoria hipodérmica realmente não foi injetada nos organismos.

Detenho-me nesta última premissa. É fato que os cidadãos do início do século 20 desconheciam as técnicas de persuasão da mídia. Até mesmo o termo "propaganda" não tinha o significado de hoje. Assim, não é ilógico conjeturar que as mensagens emitidas aos receptores realmente os levaram ao nacionalismo xenófobo e exacerbado.

Mas, e depois? Nos cenários de guerra criados pelo governo norte-americano, pode-se afirmar que os estímulos da agulha hipodérmica não foram tão eficazes na manipulação da opinião pública?

Apesar de já ter se tornado lugar-comum, é impossível não lembrar da Guerra do Golfo, quando as emissoras de televisão só exibiam o conteúdo permitido pelo governo norte-americano. Mentiras e distorções também aconteceram ali, como no caso das imagens das crianças kuwaitianas torturadas por Saddam Hussein, bem como a omissão do número de iraquianos mortos.

New York Timese Register

O mesmo aconteceu na recente guerra contra o terror. Até hoje se questiona a veracidade das imagens de palestinos comemorando o ataque ao World Trade Center. Todavia, o efeito veio como uma bomba: todo o mundo ocidental enxergou os Estados Unidos como a grande vítima e ofereceu apoio a Washington para o combate.

Seria ingênuo acreditar que a população norte-americana se deixaria levar em massa pela tendenciosidade de um único noticiário ou propaganda. Mas o mesmo não pode ser dito quando a esmagadora maioria dos veículos de comunicação estadunidenses são unilaterais e pró-guerra. Ao oferecer apenas uma opção aos receptores, a mídia os deixa expostos à agulha hipodérmica. O resultado final inclui posicionamento uniforme e adoção da mesma idéia a respeito do assunto. Funcionou uma vez, por que não funcionaria de novo?

O leitor atento viria me lembrar dos movimentos pacifistas ocorridos nas principais cidades do mundo, incluindo Nova York, San Francisco e Chicago. Mas eles estão funcionando? Bush retira suas tropas do Iraque, apenas por causa da "força" da opinião pública? Na verdade, os manifestos remetem mais ao rebelde festival de Woodstock (1969) do que a uma opinião antiguerra fortemente embasada. Virou moda ser pacifista; mas tamb&eacueacute;m é normal para o norte-americano voltar para casa e assistir o combate ao vivo pela televisão. Não há grande diferença em relação às guerras passadas.

No atual combate, dos 20 principais jornais norte-americanos, apenas dois se posicionaram contra o ataque ao Iraque ? a saber, o New York Times e o Register. O restante se restringiu a reproduzir a ótica governamental. Em noticiário que mistura propaganda com o fazer jornalismo não é difícil encontrar vítimas da agulha hipodérmica. Reza-se para que, ao menos, esteja esterilizada.

(*) Estudante de Jornalismo do Centro Universitário Adventista (Unasp) e editor da revista Canal da Imprensa <canaldaimprensa.com.br>