FOLHA E O EX-MINISTRO
Deonísio da Silva
O professor Paulo Renato Souza, ex-reitor da Unicamp (1986-1990) e ex- ministro da Educação nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), comenta a matéria que suscitou a manchete principal da edição da Folha de S. Paulo de 3/8. Como não poderia deixar de ser, em se tratando de opinião, seu texto foi acolhido na seção Tendências/ Debates (pág. A3, segunda, 11/8).
Foi ontem, portanto, que a apreciação de tão importante autoridade educacional "raiou sangüínea e fresca", à semelhança da madrugada nos versos de As Pombas, o conhecido poema do maranhense Raimundo Correia, o poeta que as funções de promotor e juiz atrapalhariam muito. Com efeito, a produção poética do ex-estudante de Direito no Largo São Francisco caiu ainda no esplendor dos 25 anos, idade em que foi nomeado promotor de Justiça, primeiro em São João da Barra e depois em São João do Príncipe. E aos 26 anos era juiz em Vassouras. Quem ganhou com isso foi o interior do Rio de Janeiro. Não sei se o homem ganhou, mas o certo é que o escritor somente perdeu, ainda que tenha publicado num pequeno jornal, O Vassourense, onde também escreviam Olavo Bilac, Coelho Neto e Alberto de Oliveira, entre outros. Hoje, é um dos poucos poetas de quem antigos alunos (do tempo em que o ensino não era tão democratizado, mas certamente de melhor qualidade) sabem versos de cor.
"Vai-se a primeira pomba despertada…/ Vai-se outra mais… mais outra… enfim dezenas/ De pombas vão-se dos pombais, apenas/ Raia sanguínea e fresca a madrugada…".
Aludo a esses versos não apenas porque o uso do cachimbo deixa torta a boca ? sou um homem de letras ? mas também porque, ainda que reconhecendo inegáveis avanços nas administrações do ex-reitor e ex-ministro, sempre me desconcertou a obsessão que Paulo Renato Souza tem com quantificações. Nele, o cachimbo entorta a boca para o lado dos números e não das letras. Algumas críticas de que são alvo suas duas gestões no MEC ignoram, às vezes até com omissões e maledicências, que ele tentou ? por vezes por ínvio caminhos, é verdade ? fazer com que a educação superior se expandisse, não apenas em quantidade, mas também em qualidade.
Com efeito, o MEC apoiou importantes programas de aquisição de livros, levando, aliás, em vários anos, o governo Fernando Henrique Cardoso a jactar-se de ser o maior comprador de livros no Brasil e um dos maiores do mundo, se consideradas todas as entidades sob a égide federal. Outra vez invoco um poeta, também da segunda metade do século 19, também estudante de Direito no Largo São Francisco. (Ontem, o Diretório Acadêmico XI de Agosto completou um século de existência! Coisa rara no Brasil. Quais as nossas instituições educacionais que se podem dizer centenárias?) São do não menos conhecido O Livro e a América, de Castro Alves:
"Oh! Bendito o que semeia/ livros… livros à mão cheia…/ e manda o povo pensar".
Mas se Paulo Renato Souza merece consideração e reconhecimento por sua política em favor do livro, no caso das universidades federais o legado é muito vulnerável e o panorama, desolador! O degredo do docente começa pela remuneração. Oferecer, como salário máximo, quantia inferior a US$ 1 mil a professores doutores, "cousa é que admira e consterna", como diria Machado de Assis. E envergonha as duas partes, acrescenta o signatário. E é arrasador para quem levou a docência a sério e dedicou quase a vida inteira à qualificação e à docência, aposentar-se com menos de US$ 1 mil! Neste ponto, aliás, o legado de FHC recebeu endosso do novo governo e, se o sucessor criticar o antecessor, será o roto a criticar o esfarrapado.
Olhos baços
Mas é preciso louvar a iniciativa da Folha de S. Paulo e a coragem do ex-ministro vir a público e alimentar a controvérsia. Que outros ponham lenha nessa fogueira, pois temas assim complexos merecem mais do que poucos e exíguos artigos. E certamente mais do que limitar-se apenas a números e quantificações, quando o terreno é minado. De todo modo, soa freudiano que o ex-ministro jamais aluda a números nas poucas vezes em que comenta a remuneração de docentes. Talvez seja o trauma da devastação que a greve das universidades federais fez na sua então nascente candidatura ao Palácio do Planalto, quando seu nome era posto como alternativa a José Serra, o candidato escolhido que, vencedor na convenção do PSDB, foi derrotado por um candidato que se jactou de caber a alguém, sem curso superior, arrumar a universidade. E que até agora não fez nada para recuperá-la.
Pobre Brasil! Sai governo, entra governo, e o ensino superior segue sempre na direção para onde tem caminhado nas duas últimas décadas. A persistirem os sintomas, sem que sejam administrados os remédios conhecidos, nosso destino são as cucuias.
Para finalizar, outros números indicam quadros discrepantes. Portadores de diplomas de curso superior, alguns deles justamente de História, num país em que o passado é tão insuficientemente conhecido, foram candidatos a lixeiros no Rio! E O Estado de S. Paulo (11/8, pág. A1) deu uma daquelas notícias que bastam ao bom entendedor, por mais que se compareçam ouvidos moucos ou olhos baços diante do informado. Em manchete de primeira página estava lá ontem: "Desemprego faz concurso público bater recorde". Ano passado, houve 543 mil inscritos para 600 vagas em concurso para policial rodoviário federal. Estima-se que o próximo, cujo edital vai sair neste agosto, vai oferecer 2.200 vagas e poderá chegar a 1 milhão de concorrentes. Neste ano do Senhor de 2003, outro concurso, o de técnico previdenciário, ofereceu 2.275 vagas. Teve 567 mil inscritos.
Campus de concentração
O governo federal oferece R$ 5,3 mil como salário inicial a um auditor da Receita Federal. Para um docente nas universidades federais, com o agravante de dele exigir-se o título de doutor, o salário inicial corresponde, sem os penduricalhos, a 25% desse valor! Se em regime de 20 horas semanais, cai para algo em torno da quantia que hoje recebe uma empregada doméstica, de quem pelo menos nenhuma dona-de-casa ousaria exigir curso superior, quanto mais mestrado ou doutorado. E às vezes a patroa é professora universitária para poder manter a empregada.
Em resumo, os números também explicam, é claro. Mas outros números explicam outras coisas. Um governo que oferece a auditores federais em início de carreira um salário 400% superior ao oferecido a professores universitários diz bem ao que vem. Ensinar não é prioridade. Arrecadar, sim. As discussões da carga tributária passam por tais caminhos também. E ainda não deu tempo de comentar o salário dos professores do ensino fundamental, que recebem menos do que os docentes universitários.
O ensino público ia mal. E por enquanto nada mudou. Mas reconheça-se em nome da indispensável isenção: o programa de livros é louvável e tomara que tenha prosseguimento.
E que dizer da afirmação do ex-ministro que serviu "olho" para o artigo na Folha: "Nosso sistema de ensino superior é hoje maior, melhor e mais competitivo que há oito anos"?
É verdade, professor doutor Paulo Renato Souza. No caso dos docentes, todos estão tentando competir para ver quem pode chegar já à aposentadoria. Durante suas duas gestões à frente do MEC, muitos professores abandonaram as universidades federais em busca, não apenas de salários dignos no ensino privado, mas de simples condições indispensáveis ao trabalho de um intelectual que diferissem daquelas que fizeram e ainda fazem do campus, um campus de concentração. Lá, os docentes têm muitos deveres e poucos direitos. Aliás, não têm sequer o direito de receber o que ganharam em ações na Justiça. Pois o governo federal perde, mas não paga.